'Saga' de desempregada de 62 anos por carne acaba com 3 quilos de carcaça e pele por R$ 12
Para não passar fome, famílias vivem uma saga em busca de doações, sobras e alimentos que antes eram jogados no lixo.
Um quilo de linguiça por R$ 18. Peito de frango por R$ 15,99, pé a R$ 7,99 e pescoço, R$ 5,29. A passadeira Lindinalva Maria da Silva Nascimento, de 62 anos, olha todas as opções na vitrine do açougue, mas todas são muito caras para os R$ 20 que ela tem para comprar carne para ela, o marido, um filho e dois netos comerem durante uma semana.
A BBC News Brasil a acompanhou em quatro açougues no Itaim Paulista, bairro do extremo leste de São Paulo, onde ela mora. Depois de quase duas horas, ela encontrou a única proteína animal que conseguiu comprar com R$ 12 para a família: 3 kg de carcaças e peles de frango.
Lindinalva trabalhava como passadeira em uma confecção no Bom Retiro, no centro de São Paulo, a cidade mais rica da América Latina. Com a chegada da pandemia, em 2020, foi dispensada, segundo ela, por fazer parte do grupo de risco.
Desde então, está desempregada e com a geladeira vazia.
"Antes da pandemia, a gente comprava alcatra à vácuo. Para quem estava acostumado a trabalhar, entra em pânico numa situação dessas. Eu tinha a geladeira lotada de carne. Hoje, tem uns frascos de óleo feito com osso de boi e pele de frango e um coentro congelado que meu vizinho doou", diz chorando à reportagem, ao lado da geladeira aberta.
Uma das pessoas que também a ajudam é a Maria Amélia, presidente da associação Canto Nascimento, que distribui cestas para famílias pobres do bairro. "Sempre me dá um mantimento quando estou desesperada", diz Lindinalva à reportagem.
Peregrinação por sobras
A perda generalizada de renda e emprego, a alta da inflação, além dos constantes aumentos dos combustíveis e do gás, arrastou multidões para a pobreza. Com tanta concorrência em busca de sobras para colocar o mínimo de comida no prato da família, Lindinalva passa o dia em uma peregrinação em busca de açougues e avícolas que vendem ossos e carcaças de aves.
"Muitos dizem que não vão mais vender os ossos e que estão em falta. Mandaram eu passar aqui de novo umas 17h ou 18h para eles arrumarem uns ossos para eu comprar", disse depois de sair de um açougue perto da casa dela.
Lindinalva explica que, tanto os ossos quanto as peles de frango que ela compra, custam cerca de R$ 4 cada quilo.
"Os ossos eu cozinho e depois tiro os pedacinhos de carne que sobram para a gente se alimentar. Aproveito para colocar no feijão para ficar um gostinho de carne. Ontem foi assim. Com R$ 12 já dá para comer dois dias. Verdura não dá mais para comprar, está muito caro", afirmou.
Já a pele do frango, ela conta que frita numa panela sem óleo. A gordura que acumula no recipiente, Lindinalva guarda em potes vazios de maionese e de requeijão para depois fritar outros alimentos e usar no preparo de outras refeições.
O aumento no número de brasileiros passando fome passou de 10,3 milhões em 2018, para 19,1 milhões em 2020 (quase 10% da população), o que representa um crescimento de 85% em dois anos. Essa alta ainda não reflete a piora da crise, agravada pela pandemia no Brasil.
Essas pessoas fazem parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivem com algum grau de insegurança alimentar — quando uma família diz ter preocupação com a falta de alimentos em casa ou já enfrenta dificuldades para conseguir fazer todas as refeições. Esse número corresponde a 55,2% dos domicílios do país, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado pela Rede Penssan.
A renda da família de Lindinalva é composta pela aposentadoria que ela recebe, no valor de R$ 1.200, dos bicos do marido como pintor (R$ 800) e do Bolsa Família, de R$ 200, recebido pelo neto.
Por outro lado, a família gasta R$ 600 todos os meses com aluguel e R$ 200 para comprar os remédios. Com pouco dinheiro, a rotina da família tem sido de escolhas diárias. No mês de outubro, ela deixou de pagar as contas de luz e de água para poder comprar um botijão de gás.
"Foi muito triste passar três dias sem gás. Deixei de pagar a água e a luz para comprar um botijão que custa R$ 110. Comprar uma fruta, verdura ou doce, nem pensar. Antes, eu tinha o congelador cheio de carnes e legumes. A geladeira tinha couve, tomate, cebola, era fartura. Hoje, ela está vazia e só tenho uma cebola na fruteira", diz chorando à reportagem.
Em 2021, o consumo de carne bovina no Brasil deverá ser de 26,4 quilos por pessoa, uma queda de quase 14% em relação a 2019, ano anterior à pandemia, e de 4% ante 2020.
Esse é o menor nível registrado para consumo de carne bovina no país em 26 anos, segundo a série histórica da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), com início em 1996.
Até agosto, as carnes acumulavam aumento de preço de 30,8% em 12 meses, bem acima da alta de 9,68% da inflação geral, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Lindinalva disse que já tentou de tudo para voltar ao mercado de trabalho, mas não consegue um emprego desde que foi demitida no início da pandemia. Só na última semana, ela disse ter distribuído 20 currículos.
"Eu estou desesperada. Não sei mais o que fazer. Eles dizem que não tenho mais idade para trabalhar e que precisam de pessoas mais novas. Eu sou uma ótima funcionária, vou trabalhar até doente e não reclamo de nada. Eu só queria uma oportunidade", afirmou.
Dados da consultoria Kantar mostram que, em 17% dos lares brasileiros, ao menos uma pessoa perdeu o emprego em 2021. Destes, 80% eram das classes C, D e E.
A taxa teve uma melhora em relação ao final de 2020, quando 28% disseram que ao menos uma pessoa foi demitida.
Sopa de sobras
Os relatos de fome e desespero em busca de uma alimentação se multiplicam em todo o país.
Todas as tardes, dezenas de pessoas formam uma fila na porta de uma associação no centro de Recife, capital de Pernambuco. Minutos depois, cada uma delas deixa o local carregando um copo plástico com um caldo quente. A sopa é feita com as sobras de refeições doadas por um restaurante da região.
A empregada doméstica Maria do Carmo Santana, de 57 anos, disse que recorre à doação todos os dias porque não teria condições de fazer três refeições em casa.
"Meu marido é pintor e o trabalho dele mal paga as contas. Recebo R$ 150 de Bolsa Família que mal dá para comprar o gás, então a gente depende da ajuda dos outros, principalmente de quem mora na nossa comunidade", diz.
Ela, que vive com o marido em um barraco no Beco do Esparadrapo, diz que a refeição é a salvação para a família não passar fome.
"Com essa sopa, eu faço uma refeição a menos em casa. Hoje tem arroz, macarrão e salsicha. Agora, vou só comprar um pão para comer à noite. Meu marido é pintor e o salário dele mal paga as contas da casa, então quanto menos a gente cozinhar e gastar gás, melhor", disse à BBC News Brasil.
O Instituto Casa Amarela Social é um dos que ajudam famílias pobres de Recife, distribuindo cestas básicas e refeições. O grupo faz diversas campanhas para arrecadar doações.
O G10 Favelas, grupo que reúne as 10 maiores comunidades do país, criou uma central de arrecadação para ajudar famílias de baixa renda de todo o país.
A alta de preços da carne começou antes da pandemia, puxada pela demanda da China, cujo rebanho suíno foi fortemente afetado pela peste suína africana.
A tendência foi acentuada no ano passado pela alta do dólar, que estimula as exportações, reduzindo a oferta do produto no mercado interno.
Pesaram ainda a seca, que piora a qualidade do pasto e aumenta a necessidade de uso de ração, elevando o custo de produção; e o menor abate de fêmeas, que são retidas pelos pecuaristas para produzir novos animais, aproveitando a alta de preços.
Com a somatória desses fatores, o resultado tem sido o sumiço da carne vermelha no prato dos brasileiros mais pobres. Isso forçou pessoas no Brasil inteiro, como a Lindinalva e a Maria do Carmo, a terem apenas as sobras como opção.