Site ajuda a pagar contas atrasadas - dos outros
Garrafa no Mar une quem não tem dinheiro para quitar boletos a 'anjos' desconhecidos que os socorrem
RIO - Desempregada, Maria da Guia Santana via as contas de água se acumularem. Eram cinco boletos e poucas as perspectivas de conseguir o dinheiro para pagá-los. Na internet, encontrou uma solução que parecia boa demais para ser verdade - e era. Um projeto que se propõe a ajudar pessoas em dificuldades financeiras a pagar suas contas básicas de consumo - sem ter que dar nada em troca.
A paraibana de João Pessoa acessou o site do projeto Garrafa no Mar e cadastrou as cinco contas de água em atraso, com valores que variavam de R$ 40 a R$ 54. "Quando recebi o e-mail do projeto informando que uma delas estava paga, já senti uma emoção tão grande que chorei e ri agradecida", relata.
A iniciativa, que visa pagar contas de água, luz, gás e telefone, foi idealizada no início da pandemia pelo carioca Alexandre Caruso, que trabalha em uma aceleradora de startups. Com bronquite, ele integra o grupo de risco para covid-19, o que o obrigou, na época, a ficar em casa.
"Eu estava lendo uma matéria de uma revista eletrônica e vi que garrafas são jogadas ao mar até hoje para saber onde elas chegam, seu alcance, sua velocidade, quem respondeu, etc. Então tive esse estalo: imagina se as pessoas pudessem colocar suas contas básicas de consumo - porque muitas perderam sua fonte de renda - numa garrafa, e ela aparecesse paga", relembra.
Anjos
A ideia é simples. Quem precisa de ajuda se cadastra, cria um pequeno perfil e registra o código de barras das contas mais urgentes. Depois, só precisa torcer para alguém - de qualquer parte do mundo - decidir pagar.
A iniciativa é tocada por pessoas físicas de todos os cantos, sem nenhum auxílio público nem de empresas. As contas são pagas por pessoas desconhecidas, com uma condição financeira um pouco melhor. São os chamados "anjos".
A tecnóloga de alimentos Luciana Cabral, que também trabalha com educação financeira, é um desses "anjos". Moradora de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, ela ficou, em suas palavras, com "uma pulga atrás da orelha", no dia em que conheceu o site do projeto, que funcionava como um aplicativo, não tinha um responsável conhecido ou alguma grande empresa ou entidade que o respaldasse.
Ainda assim, arriscou. "Escolhi o boleto de menor valor, de R$ 25 e alguma coisa. Pensei: se for verdade, ótimo, estarei ajudando alguém. Se for golpe ou mentira, só perderei os R$ 25. Claro que ninguém gosta de ser enganado, mas naquele momento fazia sentido para mim encarar o risco", recorda. Após o pagamento, Luciana recebeu um e-mail de agradecimento e, depois, manteve contato via redes sociais com Caruso. Ao perceber que o Garrafa no Mar era legítimo e que de fato ajudava quem estava em dificuldades, Luciana colaborou com o pagamento de mais algumas contas.
"A pandemia escancarou diferenças, me senti uma privilegiada por ter emprego e salário garantidos", diz Luciana. "Vi muitas iniciativas importantes de doação de alimentos, mas pensei: será que essas pessoas têm água? Têm eletricidade para manter uma geladeira? Como vão cozinhar se não tiverem gás? O projeto complementa isso."
Contas pagas
O dinheiro doado não passa pela mão de ninguém, nem dos endividados, nem de Caruso. Tudo o que é preciso fazer é copiar o código de barras da conta e pagar. E os resultados têm sido surpreendentes. O Garrafa no Mar chegou ao início de 2022 com quase meio milhão de reais em contas pagas.
Até o fim da primeira semana de janeiro, a iniciativa contava com 1.667 doadores e 1.872 beneficiados - alguns deles chegaram a ter mais de uma dezena de contas pagas. Dados levantados pela plataforma mostram que a maior parte delas é de boletos entre R$ 100 e R$ 200, mas há quem precise de ajuda para pagamentos menores, de até R$ 20. Apesar de não ser tão comum, muitas contas mais altas também são pagas.
Hoje, o Garrafa no Mar está em vias de ter CNPJ. Isso permitirá que empresas de tecnologia ajudem no projeto e, quem sabe, que outras se engajem na iniciativa. Caruso lembra, por exemplo, que só quem recebe gás encanado tem conta de gás, mas há milhares que precisam comprar botijão. "Quem sabe alguma companhia de gás não oferece meios de se adquirir vouchers para isso?"