SP: 2 anos após ocupação, Cracolândia transforma ruas do centro em favela
Após megaoperação da PM, região está mais degradada e com barracos de usuários; comerciantes do centro de São Paulo reclamam de assaltos
Uma mulher aparentando seus 50 anos cambaleia com uma garrafa de cachaça em direção a um carro da Polícia Militar. Conversa com o motorista e volta para a rua, falando coisas desconexas. Perto dali, em algo que se assemelha a um barraco - mas, certamente, pior -, um homem acondiciona papelotes brancos em um saco plástico transparente sem qualquer cerimônia.
Favelas brasileiras: onde vive 6% da população
Pelos quarteirões seguintes, um jovem sem os dentes vem pedir dinheiro ao fotógrafo em um tom pouco amistoso: é o "pedágio" para ficar ali. Caminhar pelas calçadas, quando é possível, é um permanente desvio de obstáculos dada a quantidade de fezes (e cheiro de cola, e cheiro de urina) por todo canto.
Dois anos depois de uma ação de ocupação das Polícias Civil e Militar, essa é a região da Cracolândia, o centro de São Paulo, nos dias atuais. É como se a megaoperação policial tivesse ficado restrita a um passado longínquo bem naquele que era considerado o coração da venda e consumo de drogas: as imediações da alameda Dino Bueno com a rua Helvétia.
Não apenas viciados, mas catadores de papelão e sem teto também dominam a região. Com a operação de ocupação, em janeiro de 2012, casarões abandonados que eram "mocós" para venda e consumo de drogas foram demolidos.
'Eu não tenho a liberdade que os viciados têm'
Moradores, comerciantes e outros trabalhadores da região, no entanto, disseram ao Terra que, nos últimos três meses, não apenas a favelização tomou conta do local, como usuários voltaram mais agressivos. Nesse contexto, relataram, aumentou a quantidade de furtos e assaltos.
"A impressão que fica é que veio a operação em janeiro de 2012, a coisa degradou tudo de novo, mas a PM não pode fazer nada - se um infeliz desses 'nóias' entra na minha loja, eu também não posso fazer nada", reclamou o comerciante Márcio Matias, 42 anos, dono de um restaurante na rua Glete - a cerca de 100 metros dos barracos.
De acordo com Matias, que já teve o estabelecimento furtado e roubado quatro vezes nos três últimos anos, a sensação de quem vive ali "é a de uma prisão". "Eu não tenho a liberdade que esses viciados têm, estou preso aqui. E se quiser passar com meu carro por uma dessas ruas, tenho que implorar para que ele não seja riscado", relatou. "Quem fica aqui, bastam seis meses para pensar em mudar", concluiu.
A mulher do comerciante, Clotilde Cavalcanti, 40 anos, contou que, semanas atrás, um dos moradores da Cracolândia roubou o celular dela de dentro do balcão do restaurante. "No começo, era mais tranquila a relação; depois da ocupação e da demolição dos imóveis, eles retornaram mais agressivos", declarou.
Alunos de escola estadual são assaltados
Funcionária de um salão de estética na mesma rua, a atendente Caroline Carrati, 19 anos, desabafou: "É triste ver que tem todo um trabalho para tirar esses usuários de drogas, mas que não existe uma evolução dele", constatou. Para a jovem, os viciados "voltam e ficam por opção deles próprios".
A analista Fabiana Passaretti, 33 anos, faz uso da van que a seguradora em que ela trabalha disponibiliza aos funcionários, no fim do dia, até a estação de metrô mais próxima (Luz). Mesmo assim, ela diz não acreditar que seja escolha dos usuários viver na condição em que vivem. "Não tem como estar jogado na rua por opção", avaliou.
Já uma funcionária da Escola Estadual João Kopke, que preferiu não se identificar, contou que "é comum chegar criança aqui que teve mochila ou celular roubados". "Antigamente não era assim, não, era no máximo um ou outro trombadinha. Mas aumentou muito a quantidade de viciado, e de viciado que rouba para sustentar o vício - a gente só não vê o governo se mexer", lamentou.
Prefeitura diz ter ampliado atendimento em 2013
Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que "é da prefeitura" a atribuição de retirar os usuários de drogas das ruas, ainda que o Estado disponibilize leitos para internação.
Já a prefeitura de São Paulo, por meio de nota, disse ter ampliado a presença na Cracolândia em 2013 "com uma série de ações de saúde pública que reforçam a importância do acompanhamento dos usuários na região".
"Só neste ano, a prefeitura subiu de quatro para 16 o número de equipes de saúde do Programa Consultório na rua na Cracolândia. As equipes atendem cerca de 400 pessoas por dia na região; destas, cerca de 45 são encaminhadas para equipamentos de saúde e assistência social, como o Centro Integrado de Reinserção Social De Braços Abertos", diz a nota, segundo a qual, ao todo, "as equipes do Programa Consultório na Rua realizaram 40 mil abordagens e 60 mil atendimentos na região de janeiro a outubro de 2013".