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Tragédia em Santa Maria

À polícia, padre alega que livro sobre Kiss é baseado em 'diz que diz'

Lauro Trevisan depôs à Polícia Civil e ressaltou que livro é uma obra de ficção e espiritualidade

22 abr 2013 - 19h45
(atualizado às 20h05)
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Padre foi ouvido pela polícia para esclarecer detalhes sobre afirmações feitas em livro, nesta segunda-feira
Padre foi ouvido pela polícia para esclarecer detalhes sobre afirmações feitas em livro, nesta segunda-feira
Foto: Luiz Roese / Especial para Terra

Por quase duas horas, o padre Lauro Trevisan foi ouvido na 1ª Delegacia de Polícia Civil de Santa Maria (RS), na tarde desta segunda-feira, para esclarecer questões relativas ao livro que escreveu sobre a tragédia da boate Kiss. Em seu depoimento, o religioso disse que a parte da obra que fala que pessoas vivas foram transportadas no caminhão que levava os corpos das vítimas da casa noturna para o Centro Desportivo Municipal, no dia da tragédia, foi um relato com base em “conversas de rua” e em “diz que diz”.

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O padre chegou à 1ªDP por volta de 14h, acompanhado pelo advogado Bráulio Marques. O delegado Sandro Meinerz, responsável pelas investigações complementares da tragédia, chegou à delegacia cerca de 20 minutos depois, quando Lauro Trevisan já estava sendo ouvido por um escrivão.

Na saída, às 15h55, Trevisan disse que não tinha interesse em criar polêmica com o livro Kiss: uma Porta para o Céu e que, com a obra, pretendia levar para o mundo “uma lição de amor à vida, de respeito à vida, de fraternidade e de solidariedade”. “Não há nenhum interesse em criar polêmica. O meu interesse é dar uma elevação espiritual, é dar a Deus, que, no momento de sofrimento, é a grande força para a humanidade e para aqueles que estão sofrendo”, declarou o padre.

<p>Autor foi ouvido por afirmações feitas em livro </p>
Autor foi ouvido por afirmações feitas em livro
Foto: Divulgação

O advogado Braulio Marques, que acompanhou o padre durante todo o depoimento, ressaltou que a obra é um livro “de alegorias, de espiritualidade, de autoajuda”. Sobre o trecho polêmico, já retirado em uma segunda edição, ele disse que “não se trata de situação real”.

“O que tem ali é uma informação informal, de ouvir falar, de “diz que diz”. Isso é conversa, não se sabe se aconteceu ou não, mas se conversa isso. São conversas sem nenhum fundamento de verificação”, relatou Marques. O advogado acrescentou que Trevisan não mencionou o nome de alguém que tenha falado em pessoas vivas no caminhão. “Ele fala sobre as conversas de rua e não tentou atingir a memória das vítimas. São coisas de ouvir dizer, não se sabe quem disse. Mesmo que soubesse, não teria como dar nomes sem autorização das pessoas”, concluiu Marques.

Por enquanto, de acordo com o delegado Sandro Meinerz, a Polícia Civil não abriu um inquérito sobre o caso, pois está só levantando informações para esclarecer se houve alguma conduta criminosa. Segundo Meinerz, o padre disse que o livro é uma obra de “ficção e espiritualidade”. “O padre disse que não tinha a intenção de fazer uma denúncia ou contestar o trabalho de atendimento, que não se tratou de uma situação real”, afirmou Meinerz.

Ainda nesta semana, o delegado pretende ouvir alguém da Associação de Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), que encaminhou um ofício para a Polícia Civil contestando trechos do livro. Integrantes da AVTSM chegaram a falar que a obra causou um “adoecimento psicológico coletivo”.

Trevisan deixou um exemplar de Kiss: uma Porta para o Céu com o delegado, e agora a obra será analisada. “Quando a associação se manifestou, no ofício constam alguns trechos do livro que pareciam imputar condutas criminosas a algumas pessoas. Agora, vamos examiná-lo. Pode ser que, em um contexto, isso não se concretize”, comentou Sandro Meinerz.

A parte polêmica a que o delegado se refere ficava na página 5 da primeira edição: “No auge da balada celestial, o Pai perguntou se alguém queria voltar. Dois ou três disseram que sim e foram encontrados vivos no caminhão frigorífico que transportava os corpos ao Ginásio de Esportes”. Esse trecho foi retirado da segunda edição da obra.  

O delegado reafirmou que a jornalista e escritora Celina Fleig Maier também será chamada para depor, até sexta-feira, por ter feito um relato semelhante em carta para o jornal A Razão, de Santa Maria. Na carta, publicada na última quarta-feira, dia 17 de abril, a jornalista, que mora em Santa Maria, sai em defesa do livro de Lauro Trevisan e conta que também ouviu relatos semelhantes: “Conversando com uma enfermeira, ela foi categórica: também ouviu falar em pessoas vivas amontoadas no caminhão, onde corpos eram empilhados. E, mais, perguntou-me se havia algum médico no local para atestar as mortes. Havia?”. A AVTSM também pediu investigações à Polícia Civil sobre o relato de Celina.  

Polícia segue investigando responsabilidades

Enquanto isso, a Polícia Civil segue fazendo investigações para atender aos pedidos feitos pelo Ministério Público (MP) na denúncia sobre a tragédia. Cerca de 40 pessoas já foram ouvidas. Todas atuaram como prestadores de serviços, funcionários ou seguranças da Boate Kiss.     

Nessa fase, que está quase no fim, a Polícia Civil quer saber se Angela Aurélia Cellegaro, irmã de Elissandro Spohr, sócio da boate Kiss, e Marlene Terezinha Callegaro, mãe dos dois, tinham poder de mando e de veto nas decisões relativas à contratação de show pirotécnico, reformas da boate, instalação de espuma para isolamento acústico e lotação da casa noturna. No papel, as duas são as proprietárias da boate.

Os depoimentos também serviram para subsidiar a investigação sobre a atuação dos seguranças. O Ministério Público pediu para a Polícia Civil esclarecer a atuação deles no sentido de impedir a saída das pessoas após o início do fogo.

Ainda nesta semana, a investigação passará a ouvir servidores da prefeitura para saber detalhes sobre a atuação do secretário de Controle e Mobilidade Urbana, Miguel Passini, e do chefe da fiscalização da pasta, Beloyannes Orengo de Pietro Júnior. O MP quer saber se foi pedida a eles pelos bombeiros a suspensão das atividades da boate, após o termino da validade do alvará de prevenção a incêndio.

As conclusões serão enviadas para o MP somente depois que todas as investigações forem concluídas. Os promotores tinham dado 10 dias para que o trabalho fosse terminado. O prazo se encerrou na última sexta-feira, mas a Polícia Civil ainda não tem previsão de quando terminará as investigações complementares. 

Incêndio na Boate Kiss

Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 241 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos

Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissando - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

Fonte: Especial para Terra
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