Familiares hostilizam procurador em evento sobre a Boate Kiss
Os advogados da Associação dos Familiares das vítimas apresentaram novos indícios que serão anexados ao processo
Representantes do Ministério Público (MP) foram pressionados, questionados e até hostilizados por familiares das vítimas da Boate Kiss, na noite deste domingo, durante o congresso realizado para lembrar um ano da tragédia, na cidade de Santa Maria. O subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do MP, Marcelo Dorenelles, foi indagado sobre por que o Ministério Público arquivou o processo de improbidade administrativa contra a prefeitura, apesar dos indícios apresentados no inquérito policial.
A tragédia da Boate Kiss em números
Veja como a inalação de fumaça pode levar à morte
Veja relatos de sobreviventes e familiares após incêndio no RS
Veja a lista com os nomes das vítimas do incêndio da Boate Kiss
"O senhor conhece a lei?", "eu lhe empresto meus óculos para que possa ler", foram algumas das colocações feitas pelos familiares. "Aceitamos todas as críticas, inclusive as injustas que venham dos senhores. Não vamos questionar nenhuma, reconhecemos o sentimento, a dificuldade que vocês enfrentam...", disse Dornelles, sendo que ao final afirmou que houve "desrespeito".
Os advogados da Associação dos Familiares das vítimas apresentaram também informações sobre licenças e documentação da boate, ao que Dornelles pediu que as informações fossem formalizadas para que obtivessem caráter oficial. "Se precisa de um fato novo para rever (a denúncia), esta aqui o fato novo", disse o advogado Luiz Fernando Smaniotto.
Atualmente, o MP aguarda novas informações que devem constar em dois inquéritos policiais, a serem concluídos em fevereiro, para decidir se o processo será arquivado ou não.
Durante o evento Dornelles justificou a decisão do Ministério Público, de abril, logo após a conclusão do inquérito que indiciou 16 pessoas, de não denunciar a prefeitura por improbidade administrativa, dizendo que a decisão foi tomada com base nas informações das quais dispunham.
"Sofremos com isso, estamos partindo para a troca de farpas entre familiares e Ministério Público, e nós tínhamos que estar juntos... o problema é o desencontro de informações técnicas, jurídicas, de sentimentos que se envolvem, porque existem vários tipos de responsabilidade, tem a responsabilidade política... aqui se cobrou que se postulasse a acusação criminal do prefeito, mas não há elemento que o vincule ao fato diretamente, a responsabilidade política... você colocá-lo em um processo a responsabilidade técnica com provas, nós não tivemos como, e podem ter a certeza de que procuramos...", justificou, dizendo ainda que "era mais fácil pegarmos todos os indiciamentos e mandar para o poder judiciário e poderíamos estar aqui sendo aplaudidos de pé", disse.
No final do encontro, os familiares começaram a se exaltar, e gritos por justiça, além de outras impropérios surgiram em meio a plateia deixando o clima tenso. Foi feita apenas uma pergunta ao procurador, que não soube responder a indagação. Disse apenas que iria marcar uma reunião para conversar sobre as novas provas apresentadas pelos advogados da entidade que representa os pais.
Dornelles saiu durante uma apresentação artística, e usou uma porta lateral alternativa. Segundo a assessoria de imprensa do Ministério Público, ele não evitou jornalistas e familiares, falando com todos na porta principal da Unifra.
Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.
Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.
Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.
Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.
Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.
A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.
No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.
Indiciamentos
Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.
O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.
Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.
Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissandro - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.
Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.