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Tragédia em Santa Maria

Segurança que desmaiou durante incêndio diz que Kiss não estava lotada

12 set 2013 - 16h16
(atualizado às 19h20)
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Doralina Machado Peres atuava como segurança da Kiss
Doralina Machado Peres atuava como segurança da Kiss
Foto: Luiz Roese / Especial para Terra

Após mais de 60 depoimentos colhidos no processo criminal da tragédia da Boate Kiss, o tempo que cada sobrevivente fica à frente do juiz Ulysses Fonseca Louzada é cada vez menor. Nesta quinta-feira, mais seis sobreviventes compareceram ao fórum de Santa Maria (RS) para falar sobre os acontecimentos do dia 27 de janeiro, quando aconteceu o incêndio que causou a morte de 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas. Uma cliente e uma ex-segurança da casa noturna não usaram, juntas, nem uma hora para seus depoimentos.

Dos seis sobreviventes que falaram hoje, um não estava dentro da casa noturna na hora do incêndio. Mesmo assim, um segurança que cuidava da área dos fumantes, do lado de fora, junto à calçada, depôs na condição de “vítima”.

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Doralina Machado Peres, que atuava como segurança da Kiss, foi a segunda a falar nesta quinta-feira. Ela relatou que, logo que começou o tumulto, ainda tentou entrar no mesmo ambiente do palco, mas que o público vinha todo na direção contrária. Por isso, desmaiou.

“Fiquei sabendo que fui tirada por um colega (segurança). Só acordei 10 dias depois no hospital”, contou Doralina, que trabalhava na Kiss havia dois anos e oito meses. Na visão dela, a boate não estava muito lotada na noite do incêndio e havia condições de circulação dentro da casa noturna. 

A primeira a falar nesta quinta-feira foi a frequentadora Flávia Benvenutti, que conseguiu sair relativamente rápido da boate, na madrugada do incêndio, acompanhando o fluxo de pessoas. “Saí porque eu peguei o caminho do pessoal saindo junto. Tu não conseguias caminhar, ia sendo levada. Tu não enxergavas nem se quem estava do teu lado era homem ou mulher”, relatou Flávia.

A primeira a falar nesta quinta-feira foi a frequentadora Flávia Benvenutti
A primeira a falar nesta quinta-feira foi a frequentadora Flávia Benvenutti
Foto: Luiz Roese / Especial para Terra

Era a segunda vez em que Flávia ia à Kiss. Antes do incêndio, ela chegou a sair da boate com uma amiga que foi trocar os sapatos que usava. Essa primeira saída, na opinião dela, pode ter facilitado para que soubesse o caminho em direção à porta na hora do tumulto. A jovem apresentou a comanda que recebeu na casa noturna na noite da tragédia.  Ela destacou, em seu depoimento, que não circulou muito pela boate no dia 27 de janeiro, porque não era possível, pois “havia muita gente”.

Segurança que não estava dentro da boate depõe como sobrevivente

O depoimento do segurança Francisco de Assis Pereira Félix, 55 anos, foi o primeiro da tarde desta quinta. Ele relatou que, no dia 27 de janeiro, era a terceira vez que ele trabalhava cuidando da área de fumantes em frente à Kiss. Mesmo do lado de fora, Francisco contou que, por causa da fumaça, ficou com lesões no pulmão e irritação na garganta, precisando passar por tratamento médico.

Sobre a madrugada do incêndio, Francisco lembra que ouviu um “estouro” e viu diversas pessoas saindo da Kiss. Ele escutou ainda alguém dizer que “a boate estava pegando fogo”. De acordo com o segurança, havia quatro homens e quatro mulheres na área de fumantes naquele momento, e ele pediu que todos deixassem o local.

Francisco trabalhava na boate Absinto, que era de propriedade de Mauro Hoffmann, sócio da Kiss e réu no processo criminal. Naquela noite, ele estava fazendo um “bico” de segurança no local a convite de Éverton Drusião, dono da empresa que era responsável por esse serviço na Kiss.

O segurança também disse que, no momento em que as pessoas começaram a sair da boate em desespero, ele já “tirou a correntinha” da área de fumantes para todos poderem passar. “Aquelas grades (da área de fumantes) não atrapalharam em nada. O que atrapalhou foram as grades lá dentro”, sustentou Francisco, referindo-se aos guarda-corpos perto da porta de saída, na parte interna da Kiss.

No dia 27 de janeiro, segundo Francisco, a boate Absinto já tinha entrado em “férias coletivas”. Por isso, ele estava livre para poder trabalhar na Kiss. Questionado pelo advogado Mário Cipriani, que defende Mauro Hoffmann, o segurança relatou que, naquela casa noturna, os funcionários recebiam orientações da empresa terceirizada para situações de tumulto e incêndio.

O advogado Leonardo Santiago, que é um dos representantes do réu Elissandro Spohr, o Kiko, que também era sócio da Kiss, pediu ao juiz Ulysses Fonseca Louzada que ficasse registrado seu protesto pelo fato de Francisco ser ouvido como vítima, mesmo que ele não estivesse dentro da boate. Leonardo foi acompanhado por outro defensor, Mário Cipriani, em seu registro.

O jovem Erick Alberni Pampuch, 26 anos, que depôs após Francisco, deu uma versão diferente do segurança a respeito das barras de contenção da área de fumantes. Ele contou que sua maior dificuldade para deixar o local foi justamente por causa desses obstáculos. Erick relatou que chegou a ficar preso nas barras, ao ser empurrado pela multidão que vinha atrás dele. 

O depoimento de Erick foi motivo de um bate-boca entre o assistente de acusação Jonas Espig Stecca e o advogado Mário Cipriani. O defensor de Mauro Hoffmann reclamou de uma pergunta costumeira que o colega faz às vítimas sobre o tipo de piso que havia na pista de dança da Kiss, por considerar o assunto pouco relevante para o processo.

Erick acrescentou ainda que acompanhou uma mulher, que seria paramédica, confirmando que as pessoas colocadas no estacionamento em frente à Kiss estavam todas mortas. Porém, ele não viu o momento em que a retirada de vítimas de dentro da boate foi interrompida.

O último depoimento desta quinta foi de Rafael Lago Busanello. Sobre o dia da tragédia, ele não relatou nada de diferente em relação aos testemunhos de outras vítimas. Rafael lembrou que, antes do incêndio na Kiss, a turma dele da faculdade promoveu uma festa na boate em que “não tinha limite de ingressos”. “Recebemos cerca de 800 ingressos e tinha mais as listas de aniversários. Na noite dessa festa, tinha umas mil, 1,1 mil pessoas. Estava mais cheio que no dia do incêndio”, lembrou Rafael.

Na tarde desta quinta, outra vítima que depôs foi Bruna Pilar da Silva. Ela pediu que a imprensa fosse retirada do Salão do Tribunal do Júri enquanto ela falava.

Em Santa Maria, estão previstos mais depoimentos de vítimas nos dias 19, 24, 25, 26 e 27 deste mês. A próxima audiência iria ouvir seis sobreviventes, mas serão somente quatro, pois a defesa de Mauro Hoffmann desistiu de duas pessoas que havia arrolado. Haverá também audiências para ouvir vítimas nas cidades gaúchas de Rosário do Sul, Uruguaiana, Horizontina, Passo Fundo, Quaraí e Caxias do Sul.

Respondem ao processo criminal pelas 242 mortes e os mais de 600 feridos os sócios da Kiss, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, o vocalista da Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos (o único réu presente na audiência desta quinta) e o roadie da banda, Luciano Bonilha Leão. Eles são acusados por homicídios qualificados com dolo eventual (doloso) e tentativas de homicídio qualificado.

Apreensões feitas na Kiss são retiradas do salão das audiências

Por solicitação do advogado Omar Obregon, que defende o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, as apreensões feitas na Kiss foram levadas nesta quinta-feira para um local mais reservado. Elas ficavam, durante as audiências, no Salão do Tribunal do Júri.

O defensor alegou que poderia haver riscos à saúde com a presença daquele material. O juiz Ulysses Louzada comentou que irá pedir um parecer do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) sobre as apreensões feitas no boate. Foi essa instituição a responsável por recolher o pó residual na boate e o mandar para uma análise que constatou a presença de 17 produtos químicos.

Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos
Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissando - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

Fonte: Especial para Terra
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