'Um bebê sem colete tem chance quase zero de sobreviver': 1 em cada 5 mortos em acidente de barco é criança
Entre 2000 e 2015, 202 vítimas de até 9 anos morreram afogadas em incidentes do tipo; naufrágios ocorridos no Pará e na Bahia nesta semana deixaram seis crianças mortas.
Sentada na maca de uma ambulância, Milena Monteiro, de quatro anos, parecia não entender bem o que tinha acontecido. A travessia de lancha que fazia em companhia da mãe, da avó e do irmão Davi Gabriel, de seis meses, acabou antes que a família chegasse a Salvador.
O naufrágio da embarcação Cavalo Marinho I, ocorrido na manhã desta quinta-feira na Baía de Todos os Santos, deixou pelo menos 18 mortos. Milena não tinha ferimentos aparentes e, atendida pelos médicos, esperava sem chorar pelo pai. A menina ainda não sabia que o irmão não tinha sobrevivido ao acidente.
Segundo o coordenador de urgência do município de Salvador, Ivan Paiva, a equipe médica tentou reanimar o bebê Davi Gabriel por mais de uma hora, mas ele não resistiu. A imagem da criança sendo carregada às pressas pelos bombeiros se tornou um símbolo da tragédia.
"Sem colete, nesta idade, em um mar agitado, a chance de sobreviver é praticamente zero. Criança sempre tem que estar portando colete", disse o médico. Além de Davi, ao menos mais uma menina, de três anos, ainda não identificada, morreu em decorrência do acidente. Milena teve alta do hospital no início da noite desta quinta.
Dois dias antes, quatro crianças morreram no naufrágio de um barco de transporte de passageiros na cidade de Porto de Noz, no Pará. Ao todo, já foram confirmadas 21 vítimas.
As seis mortes de crianças nos acidentes da Bahia e do Pará nesta semana evidenciam uma realidade trágica. Crianças de até 9 anos são 18% das vítimas de afogamento em acidentes de barco no Brasil - ou 1 em cada 5. É um percentual muito superior ao de mortes de crianças em acidentes de transporte em geral, de 3%.
'Crianças não sabem colocar colete sozinhas'
"As crianças são mais vulneráveis nessas condições porque não sabem nadar nem se proteger. Elas não vão colocar o colete salva-vidas sozinhas, é preciso que alguém vista nelas. Mas quando ocorre um acidente, é tudo muito rápido, não há tempo de fazer isso. Não é igual avião, em que o adulto coloca o colete em si e depois na criança. É outra realidade", afirma o professor Hito Braga de Moraes, doutor de engenharia naval na Universidade Federal do Pará.
O risco não é apenas a falta de coletes, segundo o capitão Janderson Lopes, do Corpo de Bombeiros do Amazonas.
"Durante um afogamento, no momento de desespero, as pessoas se agarram em tudo que veem pela frente e podem afundar umas às outras. Isso é outro risco para as crianças. O ideal é que os pais estejam sempre com filho perto - o que é difícil, porque na Amazônia temos viagens muito longas, de dias", relata .
Para reduzir o risco, o professor e o bombeiro recomendam que as crianças estejam com coletes salva-vidas o tempo todo durante o transporte por embarcações.
Entre 2000 e 2015, 202 crianças de até 9 anos morreram afogadas em acidentes de barco. Dessas, 23 vítimas tinham menos de um ano, 96 tinham entre 1 e 4 anos e 83, entre 5 e 9 anos. O número de vítimas de todas as idades é de 1.102. Os números são do Ministério da Saúde.
O perigo para crianças é maior justamente no Norte e Nordeste, onde o transporte fluvial faz parte do cotidiano das cidades e as viagens costumam se estender por muitas horas.
"Na Amazônia, as pessoas levam crianças de barco para o hospital, para a escola, para visitar parente. Além disso, as viagens demoram muito, às vezes dias. Então, é muito comum que as crianças pequenas acompanhem os pais nessas viagens. Quando tem acidente, costuma ter morte de criança", explica Moraes.
Foram 107 mortes de crianças no Amazonas e 44 no Pará entre 2000 e 2015. Na Bahia, quatro.
'Aqui na Amazônia as pessoas não usam colete'
O coronel Alexandre Costa, mergulhador do Corpo de Bombeiros do Pará, precisou retirar quatro corpos de crianças do rio Xingu nos últimos dois dias. O naufrágio, que ocorreu na noite de terça na cidade Porto de Noz, matou ao menos 21 pessoas. O barco tinha cerca de 70 passageiros.
O bombeiro, que tem dois filhos pequenos, afirmou que está evitando pensar nas crianças que retirou do rio. "Se você fica lembrando, não consegue trabalhar. Se você não se prepara para coisas como essa, fica paralisado. É tudo muito triste", disse.
Segundo Costa, as quatro crianças estavam sem colete salva-vidas no momento em que os corpos foram resgatados.
"Aqui na Amazônia as pessoas não usam colete. É uma questão cultural, que passa de pai para filho. As pessoas andam muito de barco e nunca imaginam que um acidente possa acontecer", disse.
O capitão Marco Antonio Calmon Gama, mergulhador do Corpo de Bombeiros de Amazonas, também lembra com pesar de um resgate de que participou há cerca de quatro anos.
Uma canoa a motor saiu da comunidade de Tupé, na região de Manaus, para levar crianças para tomarem vacina no município vizinho de Iranduba. Mas o barco virou. Avó, mãe e três crianças morreram afogadas. Apenas o condutor do barco conseguiu sobreviver.
"Nós só conseguimos encontrar o corpo da senhora idosa. A profundidade passa de 100 metros. Sempre quando tem criança envolvida a gente fica mais chocado, desolado, pensando nisso por muitos dias."
'Vi o povo pedindo colete e eles não deixam pegar'
Para o funcionário público Ricardo Santana, pai de duas meninas, uma de 9 anos e outra de 12, a sensação era de alívio pela própria sobreviência, mas de dor e revolta pela insegurança da travessia, que costumava fazer com frequência.
"Atravessei aqui na semana passada. Graças a Deus o tempo estava bom. Eu perdi uma amiga, professora, pessoa cheia de vida! Poderia estar eu e minhas filhas."
Segundo Santana, nem adultos nem crianças costumam usar coletes ali. "Você viaja e não é obrigado a colocar o colete, independente de como esteja o tempo. Tem gente que não sabe colocar. Não recebe instrução", afirma.
Lilian Castro, que nasceu e foi criada na Ilha de Itaparica, também costuma fazer a travessia para ver a família quando consegue uma folga entre as faxinas que realiza na capital baiana. Ela conta que não se sente segura.
"Eu já vi o povo pedindo colete e eles não deixam pegar. Fica preso. Quando eu vi o que aconteceu, chorei muito, porque poderia ter acontecido comigo também", relata a jovem de 28 anos, que tem um filho de dois.
Coletes e navegabilidade
O uso de colete salva-vidas não é obrigatório, mas de acordo com Jacinto Chagas, o presidente da Associação dos Transportadores Marítimos da Bahia (Astramab), responsável pela operação das embarcações, havia colete suficiente para todos os passageiros transportados nesta quinta pela Cavalo Marinho I.
"As embarcações, embora algumas já tenham uma certa idade, são vistoriadas regularmente. Se a Capitania dos Portos vê que não tem condições, ela retira de tráfego", argumentou.
Chagas acrescentou ainda que o mar estava em condições de navegabilidade nesta quinta-feira (24).
A estimativa é de que, em baixa estação, entre 4 mil e 5 mil pessoas façam o trajeto marítimo não apenas entre Salvador e a Ilha de Itaparica, mas também Morro de São Paulo. De acordo com a Astramab, não há registro de acidentes nesta proporção há pelo menos 50 anos.
Flávio Almeida, capitão de fragata do Segundo Distrito Naval, informou que a Marinha do Brasil vai instaurar um inquérito sobre o naufrágio.
"Nos últimos anos, nós não temos um registro de acidente com tantas vítimas. Está sendo instaurado um inquérito que vai efetivamente nos permitir ter a certeza do que aconteceu. A embarcação vai ser periciada, serão ouvidas as testemunhas e a gente vai ter um quadro efetivo do que motivou este acidente lamentável", explicou.
Quatro navios e outras cinco lanchas, além de 130 militares, estão envolvidos nos trabalhos.
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