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'Um Brasil evangélico pode ser menos conservador', diz pesquisador

Para antropólogo, classe média é preconceituosa e desconhece realidade dos pentecostais

19 out 2020 - 15h11
(atualizado às 15h59)
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Em pouco mais de uma década, o Brasil será um país de maioria evangélica. Em 1970, os evangélicos eram apenas 5% da população; atualmente, são um terço. Neste ritmo, a previsão é de que em 2032, o catolicismo deixará de ser a religião prevalente - uma realidade que já se impõe nas periferias dos grandes centros urbanos.

A transição do catolicismo para o chamado cristianismo evangélico em menos de 50 anos é um movimento religioso inédito no mundo e tem impactos profundos na política, nas instituições e na vida das pessoas.

Mas o fenômeno ainda é muito pouco compreendido pela elite e pelos políticos, sobretudo de centro-esquerda, segundo o antropólogo Juliano Spyer, autor do livro Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam, que chega às livrarias nesta semana pela Geração Editorial, com apresentação de Caetano Veloso.

Em entrevista ao Estadão, Spyer diz que a classe média brasileira é "preconceituosa" e tem uma visão estereotipada e negativa dos evangélicos. Na análise do antropólogo, um Brasil de maioria evangélica não será necessariamente um País mais conservador.

"A classe média é preconceituosa. Os cristãos evangélicos são 65 milhões de pessoas. Será que todas elas são picaretas, manipuladoras e fundamentalistas?", questionou o antropólogo. "Existem mais nuances do que a gente geralmente conhece. Tenho a impressão de que, por meio do cristianismo evangélico, o Brasil poderia ser um país mais próspero, menos radicalmente religioso."

O antropólogo Juliano Spyer, autor do livro 'Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam'
O antropólogo Juliano Spyer, autor do livro 'Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam'
Foto: Divulgação / Estadão

Por que o senhor resolveu estudar os evangélicos? Em geral o senhor trabalha com mídias sociais....

Não sou especialista em religião. Este não foi o assunto do meu doutorado. Mas foi um assunto que surgiu quando estava fazendo pesquisa de campo para o doutorado (na University College, London) e descobri um Brasil que eu nunca tinha habitado. Normalmente, antropólogos, assim como jornalistas, imagino, frequentam favelas, periferias, exploram alguns lugares. Mas uma coisa é ter uma experiência exótica, outra é habitar o lugar. E foi dificílimo, inclusive emocionalmente. É tudo muito diferente do que sempre estive acostumado. Até o ruído é diferente. A maneira como as relações sociais se dão, a religiosidade muito intensa, a sexualidade muito intensa. Me senti um estrangeiro em meu próprio País. (O antropólogo passou 18 meses morando em uma comunidade pobre no município de Camaçari, na grande Salvador, fazendo uma pesquisa sobre uso das mídias sociais em populações carentes).

Como foi essa experiência?

Sem desprezar os muitos problemas, temos que considerar o quanto essas igrejas produzem um serviço que o Estado não dá conta ou para os quais a sociedade brasileira não se mobiliza. A motivação desse livro é falar, para as pessoas do meu círculo, que existe muito mais complexidade e valores a serem levados em conta em relação a esse fenômeno. A conversão também é um ato inteligente, e não apenas de fé, que traz benefícios à vida do brasileiro mais pobre. No final dos 18 meses, descobri que várias das pessoas da igreja evangélica com quem me relacionava tinham participado de organizações criminosas e sido presas. E eram ótimos pais, esforçados, generosos. É a principal maneira para reinserir na sociedade pessoas que estiveram envolvidas com violência, com drogas. O cristianismo evangélico produz esse tipo de mudança. O sujeito para de beber, para de bater na mulher, estimula o filho a ir para a escola, cria relações familiares de parceria, de cooperação. A igreja estimula essa transformação, você não vai mudar de vida quando morrer, você pode mudar de vida agora. Pode parecer simplório, mas oferece um senso de auto-estima, cria um contexto para grandes transformações. E a igreja te oferece apoio e uma rede de afetos para fazer isso - porque, muitas vezes, as pessoas se afastam dos antigos amigos e até da família.

O Brasil é o primeiro país a passar por uma transição religiosa desse porte em tão pouco tempo?

Se houve outro, não conheço. O Brasil é um país comparável com poucos por conta da sua dimensão e povoamento. É muito extenso, muito misturado, nem com os Estados Unidos podemos comparar. E esse fenômeno da transição religiosa é muito particular. Não se viu algo assim nem na Rússia revolucionária. A França teve um processo muito intenso e muito sangrento, mas ao longo de 300 anos entre protestantes e católicos. Os EUA tiveram uma presença católica no Sul, mas que não se compara populacionalmente com a presença protestante. Não houve uma transição religiosa. O pentecostalismo não é um fenômeno exclusivo do Brasil, ele está presente em vários lugares, como China, Índia, Estados Unidos. Mas não em números tão expressivos e com consequências tão rápidas para o destino do País.

O conservadorismo evangélico se equipara ao conservadorismo católico?

Olhando de fora, o catolicismo e protestantismo parecem ser inimigos, mas aqui no Brasil pelo menos, há muitas similaridades. O conservadorismo do governo ecoa muito o conservadorismo católico. Pode reparar que ninguém se diz católico ou evangélico. Tem protestantes históricos, católicos da Opus Dei. Na verdade, são grupos cristãos conservadores.

Quais as principais diferenças entre um país de maioria católica e um país de maioria evangélica?

O cristianismo evangélico é um desdobramento do protestantismo. Então há uma ambição de transformação da vida presente e imediata (não no paraíso), um interesse maior por empreender.

Mas o País não será mais conservador?

O meu entendimento é que o conservadorismo está muito ligado à vulnerabilidade. Então, quando essas famílias, que não são proprietárias de terras, mas muito enraizadas no local de nascimento, com vínculos familiares fortes, migram para a cidade grande elas ficam muito vulneráveis. Milhares de pessoas chegaram a São Paulo e foram morar em bairros muito, muito distantes, onde o posto de saúde fica longe, não tem delegacia, a escola é distante, a igreja católica é só no centro da cidade. O conservadorismo, essa busca por regras muito específicas e rígidas, responde a esse momento de vulnerabilidade, em que as pessoas precisam se agarrar em alguma coisa. Acho que o conservadorismo tem a ver com o quanto as pessoas vão sentir mais ou menos urgência de se segurarem em algum lugar. Para Gilberto Velho, um dos maiores antropólogos do Brasil, o fenômeno social mais importante do século XX foi a migração de nordestinos para as grandes cidades. Nos anos 50, o Brasil era apenas 30% urbano. Cinquenta anos depois, somos 80% urbano. E é isso que perpassa esses grandes fenômenos, um País que deixou de ser rural e se transformou num Brasil das grandes periferias, onde, nas palavras do (jornalista) Caco Barcelos, as pessoas moram 'para lá da fronteira da cidadania', onde estão mais expostas e são mais vulneráveis. E elas se encontram em um lugar para cultivar sua religiosidade, na igreja evangélica, no culto pentecostal.

Em relação às pautas ditas morais os evangélicos são mais conservadores...

Acho que precisamos olhar para as coisas de forma separada, para não estereotipar. O protestantismo é muito mais cheio de nuances do que o catolicismo, do mais conservador ao menos conservador. O principal grupo do Brasil é o pentecostal, que é mais conservador em relação às pautas morais, como aborto, casamento gay, a questão das drogas. Mas existem evangélicos progressistas. O pastor Henrique Vieira, em entrevista a Caetano Veloso para o Mídia Ninja, faz uma reflexão interessante sobre como as igrejas pentecostais vêm sendo desmerecidas, mas são o único espaço de fala que as pessoas mais pobres têm. Ali, eles não são empregados, funcionários, não estão de uniforme. Eles têm nome, podem chorar suas perdas e recebem ajuda.

Mas a bancada evangélica não é mais conservadora?

A bancada evangélica não é a bancada dos evangélicos. O exemplo mais conhecido é o de Marina da Silva (que, embora seja evangélica não se alinhava à bancada evangélica quando foi parlamentar). Existem mais nuances do que a gente geralmente conhece, mesmo dentro da própria bancada. Uma estrutura ganha poder que se desdobra em muitos ângulos, que passa a se reproduzir e tomar conta do espaço público. Mas passa a se pautar pelos líderes das igrejas, não por seus eleitores. Esse é o fenômeno triste e que merece atenção: até que ponto atuam em benefício das pessoas que votaram neles? A bancada acaba se aproximando de outros grupos conservadores da elite do Brasil, como a bancada da bala, a bancada do boi, os interesses da igreja, da moral e se distanciando imensamente das pautas que favorecem o grupo que os elegeu, que são os pobres, como o combate à corrupção. A gente precisa refinar o nosso entendimento para separar esse termo tão amplo, evangélico, que se aplica a tudo e se transformou quase em um xingamento, para olhar para o projeto de poder de determinadas igrejas. É um grupo que é diferente da gente em termos de visão de mundo e valores. Mas essas coisas estando separadas, vamos conseguir lidar com ele de forma interessante. A mídia tem parte nisso; a maioria das notícias critica ou demoniza os evangélicos. Invasão e destruição de terreiro é crime, lógico, mas não dá para culpar um grupo tão extenso, múltiplo e variável. Essa mistura de preconceito com discordância acaba fortalecendo os grupos mais conservadores.

O senhor frequentou os cultos?

Cheguei com todos os preconceitos, achando que era tudo fanatismo e manipulação. Mas quando comecei a assistir, como observador, vi que é interessante, é divertido. O pastor é um excelente contador de histórias, várias outras pessoas contam as suas histórias. É uma teologia que fala sobre a sua vida, sobre as coisas que estão acontecendo, não é algo abstrato. Não é uma experiência intelectualizada, tem muita emoção. E ainda tem música, louvor. São três horas que passam voando. E foi uma grande descoberta olhar para aquilo e achar interessante do ponto de vista performático.

Do ponto de vista da performance nos cultos, há algumas similaridades com as religiões de origem africana, a despeito de eventuais manifestações preconceituosas, não?

A Assembleia de Deus é a única tradição cristã em dois mil anos fundada por negros, que ocuparam uma igreja abandonada em Los Angeles, nos EUA. Desde o início, uma característica marcante é o convívio interrracial. E ela não foi dispersa pelo mundo, a partir dos EUA, por missionários, não foi um projeto. Foi algo espontâneo e chegou muito rápido ao Brasil. E isso tudo aconteceu em um mundo em transformação, da criação das periferias.

Um terço dos eleitores evangélicos votou em Haddad nas eleições de 2018, é muita gente....No livro o senhor fala das dificuldades da esquerda de compreender e lidar com os evangélicos.

Sim, é muita gente. E determinadas pessoas são homofóbicas, ou defendem a criminalização, mas não porque são evangélicas. O grupo é bem maior do que isso. Ai quando Haddad chama o bispo Macedo de charlatão, os grupos de mulheres da Universal que estavam trabalhando a sua campanha dentro da igreja perdem o argumento para ganhar votos para o candidato. "Como vou votar em alguém que é contra a gente?" A classe média é preconceituosa. A minha tentativa de contribuição é no sentido de identificar o fenômeno, mostrar o tamanho que ele tem, e criticar onde pode criticar, por exemplo, na instrumentalização das igrejas para a eleição de determinados candidatos -- uma crítica que existe dentro das igrejas. São 65 milhões de pessoas. São todas picaretas, manipuladoras, fundamentalistas?

E esse preconceito existe dentro dos partidos de esquerda?

Existe essa resistência, principalmente por parte dos partidos com vínculos com o marxismo, que tem toda uma argumentação associada à ciência, em que Marx diz que a religião contraria os interesses da libertação das pessoas. E aí o fato de a igreja não condizer com visões progressistas em relação às questões da sexualidade cria uma antipatia essencial. Mas essa é uma visão centrada na própria lógica.

Como assim?

O brasileiro das camadas médias e altas acha que o pobre é uma versão dele mesmo só que sem dinheiro. Como se pensassem da mesma forma. A antropóloga Cláudia Fonseca diz que o Brasil lembra muito a África do Sul do apartheid, em que ricos e pobres interagem em apenas dois momentos: no café da manhã, quando conversa com a empregada, e na hora do assalto. Há um afastamento do mundo social. As relações de amizade e os vínculos de confiança são muito limitados. Em termos de convívio e troca conhecemos muito pouco desse outro Brasil, onde prospera o cristianismo evangélico. E esse grande Brasil, que não é a USP, a Unicamp, a Vila Madalena, o Leblon, precisa ser abraçado.

Então o senhor acha que não há o risco de o Brasil se transformar em Gilead (o país teocrático e extremamente conservador descrito no livro "O conto da aia", de Margaret Atwood)?

A gente vê o conservadorismo florescendo no resto do mundo. Na Inglaterra a igreja está em extinção, as igrejas anglicanas estão vazias, abandonadas. E é um país que teve um movimento claro em direção ao conservadorismo. Esse conservadorismo foi expresso na linguagem da imigração, no "não queremos mais imigrantes". Na minha modesta opinião, o conservadorismo em vários lugares do mundo está desprendido da religião e da religião cristã evangélica. Acho importante frisar e sublinhar que o evangélico médio tem sim, uma visão conservadora. Mas o que estou tentando dizer é que esse conservadorismo pode ser mais interessante e complexo do que conseguimos enxergar a distância. Essa maré conservadora do mundo está muito mais associada a questões macroeconômicas, a perda de empregos, a empresas que estão se transferindo para a China, essa sensação de abandono das camadas médias, do que com a religião. Tenho a impressão que, por meio do cristianismo evangélico, o Brasil poderia ser um país mais próspero, menos radicalmente religioso

Como isso seria possível?

O pentecostalismo traz disciplina e o entendimento de que você não precisa ser quem você nasceu para ser, que você pode ser o que você quiser. Que você pode estar no crime ou no crack, mas pode deixar de estar. E ele vai estender a mão para você, vai te ajudar a estudar.Então talvez um efeito curioso do crescimento do cristianismo evangélico seja o fomento de uma nova classe média educada, de pessoas que transformem suas vidas a ponto de não se sentirem tão vulneráveis a ponto de terem que abraçar a religião de forma tão intensa.

Estadão
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