CNV atesta que médicos e hospitais foram usados para tortura
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) ouviu nesta segunda-feira depoimentos que denunciam a participação de médicos em torturas e o uso de instalações hospitalares pelas forças de repressão da ditadura militar.
Parentes do engenheiro mecânico Raul Amaro Nin Ferreira, preso em agosto de 1971 por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no Rio de Janeiro, relataram que ele foi morto dias depois no Hospital Central do Exército (HCE), no bairro Benfica, zona norte do Rio de Janeiro, onde também passou por sessões de tortura.
Sobrinho do engenheiro, o arquiteto Felipe Carvalho Nin Ferreira levantou toda a documentação sobre o caso, no Arquivo Nacional e nos arquivos públicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, ao lado do pesquisador Marcelo Zelic, do grupo Tortura Nunca Mais. Felipe lembra que o tio era ligado ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), mas não vivia na clandestinidade.
“O caso do Raul foi muito documentado pela própria repressão. Ele passou 12 dias preso e só de documentos oficiais foram mais de 300 páginas. De tudo o que a gente pesquisou, sem dúvida, o mais chocante foi encontrar um ofício do Comando do Exército, encaminhando dois oficiais para interrogarem o Raul um dia antes dele morrer, e o interrogatório foi feito dentro de um hospital. O Raul já estava há oito dias hospitalizado, já se esperava que ele estivesse tendo uma melhora, então o que aconteceu com ele dentro do hospital foi, sem dúvida, uma coisa chocante, que tem que ser esclarecido”, declarou Felipe.
O caso já havia sido apresentado à Comissão Estadual da Verdade, do Rio de Janeiro, em dezembro do ano passado, e no dia 11 de agosto os parentes de Raul apresentaram parecer do médico legista Nelson Massini, que comprova a tortura dentro do HCE. A análise foi feita comparando as marcas e ferimentos que ele tinha quando foi internado com o laudo da necrópsia, além de depoimento de enfermeiros que trabalhavam no local.
Também depôs hoje o médico Luiz Roberto Tenório, torturado pelas equipes do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) no Rio de Janeiro, em 1972. Ele diz ter sido preso por participar de um esquema médico de apoio aos militantes de esquerda feridos, e foi examinado pelo médico militar Ricardo Agnese Fayad, general reformado do Exército, que verificava se a tortura aos presos políticos podia continuar, ou se deveria ser interrompida para evitar a morte.
“Em uma das sessões de tortura eu vim muito mal e um amigo que estava preso comigo começou a exigir a presença de um médico, quando chegou era o doutor Ricardo Fayad, que foi meu colega na faculdade durante seis anos. Num primeiro momento pensei, com ingenuidade, que ele iria avisar (a minha família) onde eu estava. Mas ele disse ao torturador que poderia continuar me torturando, que ele já me conhecia a um tempo e não tinha problema nenhum."
Tenório relatou ter ouvido de outros presos a mesma situação, de serem avaliados por um médico para atestar as condições físicas para continuar com a tortura. Fayad compareceu à CNV no dia 8 de setembro, mas se negou a prestar esclarecimentos, não respondendo a nenhuma pergunta dos membros da comissão.
Tenório afirmou também que presos muito debilitados foram levados para o HCE, onde havia ordens para não tratar os pacientes. “Eles iam para o hospital para morrer. Não tratar também é uma forma de tortura”, emendou.
Além disso, Tenório diz que médicos legistas eram usados para encobrir o verdadeiro motivo da morte de pessoas torturadas. “Conheci alguns médicos legistas comprometidos com o regime militar. Toda vez que indagávamos sobre o laudo, eles falavam que não tinham nada a ver com isso, porque o protocolo pedia uma segunda assinatura, que não era dada por quem fez a necrópsia. Eles sempre eram o segundo a assinar, não tinham feito a necrópsia, então isso ficou sem apuração”, explicou.
A integrante da CNV Rosa Cardoso diz que o conjunto de depoimentos consolida uma versão de uso sistemático de métodos, que caracteriza o crime contra a humanidade praticado durante a ditadura militar. “Para a gente ter crimes contra a humanidade é preciso ter algumas características. Uma delas é que haja uso sistemático de alguns métodos de graves violações de direitos. Isso se configura de uma maneria muito clara. E o uso dessa questão é escabrosa, que é o uso de hospitais e de médicos para monitorar as condições de resistência de uma pessoa para torturá-la mais”, acrescentou.
Amanhã, a CNV faz diligência de reconhecimento no Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca, que abrigou o DOI, onde foi torturado e morto o deputado Rubens Paiva. Na parte da tarde, está marcada visita ao HCE com parentes, sobreviventes e testemunhas das violações ocorridas no local para colher depoimentos in loco.