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CNV: veja relatos de estupro e 'tortura sexual científica'

11 dez 2014 - 17h51
(atualizado às 18h58)
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Apesar da violência sexual ser considerada um crime contra a humanidade, isso não impediu que fosse uma prática disseminada entre torturadores durante o regime militar. Os relatos das vítimas contidos no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado na quarta-feira, são desconcertantes: estupros, ameaças e agressões contra crianças, misoginia e até algo chamado de “tortura sexual científica” em episódios que superam a sordidez de qualquer ficção de terror. 

“Não me lembro bem se no terceiro, no quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então, eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja, e eu acho que, eu acho não, eu tenho quase certeza que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque eles tinham nojo de mim (...) E o meu marido dizia: 'por favor não façam nada com ela, pode me torturar, mas ela está grávida', e eles riam, debochavam, 'isso é história, ela é suja, mas não tem nada a ver', enfim. Em nenhum momento isso foi algum tipo de preocupação (...) Eu certamente abortei por conta dos choques que eu tive nos primeiros dias, nos órgãos genitais, nos seios, ponta dos dedos, atrás das orelhas, aquilo provocou, obviamente, um desequilíbrio, eu lembro que eu tinha muita, muita, muita dor no pescoço, quando a gente sofreu choque, a gente joga a cabeça pra trás, aí tinha um momento que eu não sabia mais onde doía, o que doía em todo lado, mas enfim. Certamente foi isso. E eles ficavam muito irritados de me ver suja e sangrando e cheirando mal, enfim. Eu acho que ficavam até com mais raiva, e me machucavam mais ainda”, diz a ex-integrante da VAR-Palmares, Izabel Fávero, em depoimento que abre trecho do relatório da CNV sobre a violência sexual.

Pedro Ivo Moezia de Lima em depoimento à CNV
Pedro Ivo Moezia de Lima em depoimento à CNV
Foto: VAlter Campanato / Agência Brasil

Variados, diversos e cruéis são os relatos contidos nos depoimentos das vítimas, conforme você lerá a seguir, se tiver estômago. Essas práticas, inclusive, eram de conhecimento das autoridades que comandavam a repressão, segundo o coronel reformado Pedro Ivo Moezia de Lima, que chefiou o DOI-CODI em São Paulo. Ele conta que sabia de um enfermeiro que estuprava as presas, e que o violador usava um antisséptico alegando que teria tido sífilis.

Os relatos apontam que alguns dos torturadores demonstravam sadismo sexual, gostavam de ver as presas nuas, e até demonstravam tara pela vida sexual dos presos encarcerados, conforme relatou Antônio Tavares Coelho. “(Tinha uma) preocupação doentia a respeito do comportamento sexual dos presos; saber com quem mantinham relações sexuais; comentários constantes sobre órgãos sexuais dos torturados, especialmente das mulheres; xingamentos e insultos escatológicos aos presos. Tenho certeza de que despiram e torturaram a Vera somente para vê-la nua. Aliás, certos tipos de torturas, como enfiar cabo de vassoura no ânus ou na vagina e choques elétricos nos órgãos sexuais, são de sua preferência porque isso satisfaz sua tara”.

Francisco Ferreira de Oliveira conta como teve um rato vivo enfiado dentro do ânus no DOPS por uma pessoa apelidada de Lúcio Fé, que também fez cortes nos seus testículos. “(ele) falou 'eu vou te castrar, seu filho da puta' (....) e deu um corte nos meus testículos (...) E ficou aberto, eles não costuraram, eu fiquei internado no Hospital Militar (...) No ânus, eles enfiavam um canudo e soltavam um rato vivo dentro do canudo”.

Quando casais eram presos, as torturas eram cometidas com um em frente ao outro. “João Leonardo estava bem fora de si porque violentaram a mulher dele lá naquela sala que me despiram, ele ficou no pau de arara com bastão elétrico no ânus e violentaram a mulher dele, que era professora de inglês [...] Violentaram na frente dele, ele ficou bulido da ideia”, relatou Eliete Lisboa Martella sobre o que viu enquanto esteve presa no DOPS.

Resgate de US$ 400 mil

As prisões eram feitas, em boa parte das vezes, por meio de sequestros. E, segundo os depoimentos, Karen Keilt foi solta após o pagamento de um resgate de US$ 400 mil. “Começaram a me bater. Eles me colocaram no pau de arara. Eles me amarraram. Me deram batidas. Deram choque. Eles começaram dando choque no peito. No mamilo. (...) Eu desmaiei. (...) Eu comecei a sangrar. Da boca. Sangrava de tudo quanto era... da vagina, sangrava. Nariz, boca... E eu estava muito, muito mal. (...) Veio um dos guardas e me levou para o fundo das celas e me violou. (...) Ele falou que eu era rica, mas eu tinha a boceta igual a de qualquer outra mulher. Ele era horrível”, relatou Karen Keilt, levada para o Deic de São Paulo em 1976.

Tortura Sexual Científica

Esse era o nome dado pelo torturador de Lucia Murat ao que era feito com ela. “Eu ficava nua, com o capuz na cabeça, uma corda enrolada no pescoço, passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois, se eu movimentasse os meus braços para me proteger, eu me enforcava e, instintivamente, eu voltava atrás”, disse. Em outro trecho, ela conta que teve baratas enfiadas em sua vagina.

A tortura sexual variava de acordo com o grau de sordidez e tara sexual do agressor. “Numa dessas sessões, um torturador da Operação Bandeirantes que tinha o nome de Mangabeira ou Gaeta (...) eu amarrada na cadeira do dragão, ele se masturbando e jogando a porra em cima do meu corpo”, conta Maria Amélia de Almeida Teles sobre a prisão em 1972.

“Um conhecido meu, ele sofreu esse empalamento e os caras deram choque nele, e acontece que pelo cassetete, a posição e tal afetou a próstata e ele teve uma ejaculação. Esse torturador, ele viu aquilo, levantou − isso o meu amigo me contou − viu aquilo, levantou, passou a mão no esperma no chão, passou a mão no rosto, tal... lambeu, (...) é um degenerado, psicopata, misógino, muito violento com as mulheres”, relatou Miguel Gonçalves Trujillo Filho, preso no DOI-CODI de São Paulo, em outubro de 1975. 

Tortura com crianças

Dilma durante a apresentação do relatório da CNV
Dilma durante a apresentação do relatório da CNV
Foto: Antonio Cruz / Agência Brasil

Os torturadores procuravam qualquer coisa que pudesse ser usada como uma forma de desmontar o preso, algo que o fizesse falar. No caso das mulheres, os filhos eram os alvos. Rose Nogueira teve a produção de leite para o filho de um mês interrompida pelo seu torturador. “Veio um enfermeiro, logo depois, para me dar uma injeção pra cortar o leite. Porque esse Tralli [torturador] dizia que o leite atrapalhava ele. Então, essa foi também uma das coisas horríveis, porque enquanto você tem o leite, você está ligada com o seu filho, né? Me deram uma injeção à força, eu não quis tomar, briguei e tal, empurrei, aquela coisa. [...] Ele me pegou à força e deu injeção aqui na frente, na frente da coxa. [...] Depois que ele me falou: 'Cortar esse leitinho aí, tirar esse leitinho'. Realmente, acabou o leite”, conta.

Eleonora Menicucci de Oliveira foi torturada na frente da filha de pouco menos de dois anos, que também era ameaçada. "Lá estava a minha filha de um ano e dez meses, só de fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente, gritando, chorando, e ameaçavam dar choque nela. O torturador era o Mangabeira [codinome do escrivão de polícia de nome Lourival Gaeta] e, junto dele, tinha uma criança de três anos que ele dizia ser sua filha”.

Mais velhos, os filhos de Damaris Lucena foram vítimas de uma violência mais brutal, “humilhavam, molhavam o colchão para os meninos não deitarem. Não, era uma coisa. Esse daqui [Adilson] foi levado não sei quantas vezes pela polícia, surravam ele, socavam meu filho, com nove anos. A polícia! A polícia de Atibaia surrava meu filho. O menino não tem nada a ver com isso. Olha, gente, foi... foi um momento muito difícil pra mim, ver meus filhos serem massacrados. Eu sabia, eu sabia que eles iam massacrar meus filhos para eles falarem”.

Os filhos de Maria Amélia de Almeida Teles também foram usados contra a mãe, “Tive os meus filhos sequestrados e levados para sala de tortura, na Operação Bandeirante. A Janaina com cinco anos e o Edson, com quatro anos de idade. (...) Inclusive, eu sofri uma violência, ou várias violências sexuais (...) E os meus filhos me viram dessa forma. Eu urinada, com fezes. Enfim, o meu filho chegou para mim e disse: ‘Mãe, por que você ficou azul e o pai ficou verde?’. O pai estava saindo do estado de coma e eu estava azul de tanto... Aí que eu me dei conta: de tantos hematomas no corpo”.

Sequestrado por engano aos 15 anos

Pedro Penteado do Prado tinha 15 anos quando foi sequestrado por engano pela polícia ao ser confundido com um simpatizante do Grupo das Onze, mas isso não impediu que sofresse todo tipo de violência, e como era praxe naquela época, sem o menor direito a uma defesa justa.

“Quando acordei, estava amarrado de mãos e pés e lançado ao piso de uma cela com grades... A cela foi aberta e os dois homens entraram. Continuaram a me chamar de comunistinha e outras palavras que não recordo muito bem... Consegui pôr-me em pé ao mesmo tempo em que um dos homens sacava de uma faca de campanha, de descamar peixes, que ele tinha numa bainha presa à sua perna. Ele desferiu dois golpes direcionados ao meu peito e por duas vezes levantei os joelhos, sendo esfaqueado uma vez na coxa direita, do lado externo, logo acima do joelho e outra vez na coxa esquerda, do lado interno da perna, quase na mesma posição. Com as duas pernas e a mão direita feridas, deixei de reagir, perdendo parcialmente os sentidos. Depois de algum tempo, percebi que estava algemado e tentavam me colocar dependurado pela boca, numa espécie de cabide preso à parede.... Fui dependurado pelos dentes naquele cabide imundo e minha cabeça ficou enlaçada a duas argolas presas à parede, através de uma cinta de velcro. Lutei muito para me manter lúcido, pois, se desmaiasse, morreria afogado na própria saliva e sangue que brotavam dos ferimentos da boca. Não sei quanto tempo fiquei naquela posição, se minutos ou horas, pois perdi a noção do tempo... Quando acordei, estava em uma enfermaria típica de quartel, anos depois fiquei sabendo – quando fui prestar serviço militar. Tubos ligados a bulbos de soro se infiltravam em meus antebraços. Minhas feridas começavam a cicatrizar e eu imaginava qual teria sido meu crime, aos 15 anos de idade, para estar passando por tudo aquilo”.

Fonte: Terra
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