[Coluna] Uma verdadeira Diva brasileira
Ao contar sua história de vida, Dona Diva Guimarães nos explicou o Brasil. Filha de escravizados, fez da educação uma ferramenta de transgressão. A ela, que nos deixou aos 84 anos, agradeço por ter sido insurgência.Conheci Dona Diva Guimarães da mesma forma que outros milhares de brasileiros: por meio de um vídeo que viralizou nas redes sociais em 2017.
O vídeo registrava o momento no qual uma mulher de mais de 75 anos pedia a palavra em meio à mesa Territorialidades, na qual Lázaro Ramos lançava seu livro na Festa Literária de Paraty (Flip) - a maior feira de livros do Brasil. Com o microfone na mão, ela se recompôs depois de dizer da emoção de estar vivendo ali, aquele presente, e pediu licença para contar uma história que não seria assim, tão rapidinha.
E com a voz embargada de quem guarda palavras há muito caladas, D. Diva nos explicou o Brasil. Foram pouco mais de 10 minutos em que ela passou por diferentes momentos de sua vida, cada um eles podendo ilustrar muito dos últimos 130 anos da história brasileira.
Dona Diva disse que era neta de escravizados que foram libertos por uma abolição torta, que não lhes garantiu a cidadania plena. Disse também que sua mãe (a filha dos escravizados) fez absolutamente tudo o que estava ao seu alcance (lavando roupa em troca de caderno e lápis) para garantir que suas filhas tivessem a única coisa que poderia lhes garantir uma vida melhor: a escola. Uma escola que trouxe consigo a possibilidade real de um mundo maior e um futuro melhor, afinal D. Diva se tornou ela própria professora. Mas uma escola que, desde muito cedo, explicou para a menina Diva como o mundo funcionava.
Ela se alongou um pouco mais para contar uma das primeiras e mais terríveis lições que aprendeu aos seis anos de idade, assim que entrou na escola: por meio de uma parábola, as freiras que trabalhavam no internato justificaram porque os brancos eram melhores que os negros.
Segundo elas, em tempos bíblicos, Deus teria feito um rio para que todos se banhassem e purificassem, e por conta da sua preguiça inata, os negros teriam chegado por último nesse rio, só conseguindo banhar as palmas das mãos e as plantas dos pés.
Isso explicaria não só porque os negros continuavam negros, com exceção das palmas das mãos e dos pés, mas também fomentava uma ideia muito bem construída naquele começo do século 20: os negros seriam preguiçosos, enquanto brancos eram inteligentes e aptos para o trabalho. Isso mesmo: naquela época, a abolição da escravidão não havia completado nem 40 anos, e o Brasil já contava uma versão torpe da sua própria história, na qual negava à população negra não só atributos inatos à humanidade (como a inteligência), mas também, e talvez sobretudo, o lugar de trabalhadores brasileiros.
Eu poderia ficar muito tempo explicando as razões que levaram a Igreja e também o Estado brasileiro a fazerem da escola uma instituição que promovia ordenação racista.
A história que as freiras contavam foi uma das tantas outras que crianças negras e brancas ouviram e aprenderam em sua vida escolar, e que ajudaram a sedimentar um projeto que segregava a população brasileira de um jeito menos direto, e talvez mais sofisticado, daquele que foi empregado em outros países como Estados Unidos e África do Sul.
Mas o que realmente importa nessa história toda, é que Dona Diva Guimarães nunca aceitou essa história. E insurgente como era, resolveu dar o troco: fez da educação uma forma de transgredir, como muito bem nos ensina Paulo Freire e bell hooks. Ela estudou, tentou ser atleta, mas virou professora de educação física e, por 40 anos, trabalhou para que seus alunos e alunas andassem de cabeça erguida, e fizessem do estudo uma saída, mesmo em tempos difíceis, como na ditadura militar (1964-1985), em que saber demais poderia colocar sua liberdade e sua vida em risco.
É importante dizer que a intransigência de D. Diva só foi possível porque atrás dela estava sua mãe, uma mulher negra, filha de escravizados e lavadeira, que tinha uma compreensão arguta daquele Brasil que ainda caminhava na experiência republicana, e que insistiu e garantiu que sua filha estudasse. Como outras tantas mães fizeram com seus filhos e filhas.
E tão bonito quanto ver uma senhora de quase 80 anos se levantar para contar sua própria história, fazendo da sua vida uma ponte para se pensar o Brasil, é saber como mesmo em meio a toda singularidade que cada experiência humana traz, D. Diva é a cara do Brasil que todos nós sabemos que existe, mas sobre o qual estudamos muito pouco em nossas escolas.
Dona Diva nos lembrou de uma insurgência que tem a mesma idade que esse país que chamamos de Brasil. Uma insurgência que vez ou outra é estampada nos rostos (conhecidos ou não) de heróis e heroínas recentemente reconhecidos, mas que também pode ser vista na vida miúda de pessoas negras que, de diferentes formas, se levantaram e seguiram adiante.
Dona Diva Guimarães nos deixou no último sábado (11/01), aos 84 anos. A ela agradeço por ter sido insurgência e levante.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.