Rock in Rio e calor: violência pode se repetir, diz coronel
A onda de roubos, furtos e violência em praias da zona sul do Rio de Janeiro que marcou o último final de semana pode se repetir no próximo sábado e domingo se as autoridades não planejarem uma resposta que integre órgãos policiais e de assistência social. A opinião é do coronel Ubiratan Ângelo, um dos coordenadores da organização não governamental Viva Rio.
Ângelo fez carreira na Polícia Militar do Rio e chegou a ser comandante da instituição. Atualmente trabalha em projetos da Viva Rio para desenvolvimento de pesquisas, ações de campo e criação de políticas públicas para promover a paz e a inclusão social.
Dezenas de pessoas foram roubadas durante o fim de semana no Rio por grupos de jovens nas praias de Copacabana, Ipanema e em ruas da região. Uma parte das ações foi filmada por órgãos de mídia e cinegrafistas amadores.
Os adolescentes escolhiam vítimas específicas e as atacavam com empurrões, socos e pontapés com o objetivo de roubar carteiras, bolsas e colares.
Em resposta, moradores locais se reuniram por mídias sociais e organizaram grupos de "justiceiros", que atacaram jovens suspeitos em ônibus que passavam pela região.
A polícia deteve quase 30 pessoas, entre adultos e adolescentes.
Autoridades relacionaram a onda de violência a uma decisão da Justiça – em resposta à uma ação da Defensoria Pública – determinando que adolescentes só poderiam ser apreendidos em caso de flagrante.
Isso teria feito com que a polícia deixasse de realizar a prática de prevenção que vinha acontecendo no mês anterior: a abordagem de jovens suspeitos em ônibus que se dirigiam da periferia à zona sul.
Segundo Ângelo, esse cenário pode se repetir se autoridades não coordenarem, até o fim de semana, ações integradas que envolvam não só a polícia, mas os órgãos de assistência social.
De acordo com ele, as condições que possibilitaram os episódios de violência no último sábado e domingo devem se repetir: praias lotadas, alta presença de turistas na cidade e efetivo policial dividido entre os eventos do Rock in Rio e jogos de futebol.
Na tarde de segunda-feira, o secretário da Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, anunciou esforços para integrar as ações da polícia com a prefeitura e órgãos de assistência social para tratar do problema de adolescentes da periferia que seguem sem recursos e desacompanhados para as praias da zona sul.
Segundo Beltrame, órgãos responsáveis por menores seriam trazidos para auxiliar a atuação da polícia no patrulhamento da orla.
Leia trechos de Ubiratan Ângelo entrevista à BBC Brasil:
BBC Brasil – Os episódios de violência ocorridos nas praias da zona sul do Rio de Janeiro no último fim de semana eram arrastões?
Ubiratan Ângelo – Em todas as cenas mostradas de roubo e furto não há a presença de armas, mas o uso da força em conjunto. O que você tem é uma união de jovens que em determinado momento elegem uma vítima e todos a atacam ao mesmo tempo, diminuindo sobremaneira a capacidade de resposta da vítima, ou seja, de se defender.
As pessoas que estão em volta acabam correndo, gerando a sensação de que está havendo um arrastão, quando na verdade há uma pessoa só sendo roubada.
Então eu não vi um arrastão, eu vi vários episódios de roubo em área próxima, na praia. E vi pessoas correndo. Se alguém está sendo roubado e alguém corre, as pessoas começam a correr ou a pegar seus pertences e se afastar. Aquilo soa como um arrastão.
Já tivermos cenas de arrastão em outros anos em que várias pessoas vêm correndo e catando objetos de quem está no meio do caminho. Eu não vi essa cena, não há registro policial desse episódio.
BBC Brasil - Qual seria a abordagem correta das autoridades para lidar com o problema?
Ubiratan Ângelo – Nós temos dois fatos: jovens estão sendo acusados de atos criminosos como roubos e furtos. Esses jovens normalmente são negros e moram na periferia, em lugares de carência social já sabida há muito.
O outro fato são as ações que a polícia vinha tomando. A Polícia Militar fazia ações em ônibus, chamadas de caráter preventivo, separando aqueles jovens que estão com alguma coisa que possa gerar um flagrante e outros que estão em situação de risco. Ou seja, aquele jovem que não tem nem dinheiro para pagar a própria passagem de ida e consequentemente não vai ter como ficar na praia e nem como voltar. Ele vai ter que dar um jeito e sua ação pode cair na ilegalidade.
Mas a prevenção da questão social não cabe à polícia. São outras organizações que têm que se manifestar, com ações concretas e positivas, que possam trazer a redução do risco social pelo qual esses jovens passam.
A polícia tenta fazer uma ação preventiva, de contenção imediata, no momento em que o fato ocorre ou está para acontecer. Mas elas deveriam ser feitas por outros órgãos (de assistência social).
BBC Brasil – Como as ações da Defensoria Pública e da Justiça influenciaram os fatos do último fim de semana?
Ubiratan Ângelo – As autoridades que têm responsabilidade por isso não tomaram suas ações e a Defensoria Pública achou por bem sair da sua inércia e tomou uma medida do campo da percepção dos direitos humanos.
Ela disse que a polícia estava encaminhando jovens para a delegacia que não estavam em situação de flagrante. A informação que eu tenho da polícia é diferente: a polícia disse estar encaminhando para a delegacia jovens que praticam atos infracionais. Os jovens que estavam em risco seriam mandados para o campo (da assistência) social.
O secretário da segurança, dr. (José) Mariano Beltrame, diz que outros órgãos têm que atuar e está criticando essa ação do Judiciário (de proibir que policiais apreendessem menores sem flagrante).
A polícia pode prender ou apreender se não houver flagrante? Não pode. A polícia pode recolher quem estiver em situação de risco? Até pode, não há nenhum impedimento, mas não pode fazer isso sozinha, sem os responsáveis pela assistência social, pelo desenvolvimento social e pela questão da criança e do adolescente.
BBC Brasil – Mas na prática, com a iniciativa da Defensoria Pública, houve uma mudança no comportamento dos policiais que pararam de fazer as abordagens preventivas.
Ubiratan Ângelo – Essas operações não vinham acontecendo conforme deveriam acontecer, com a presença dos outros órgãos. O Judiciário proibiu que a polícia fizesse recolhimento (de adolescentes) se não houvesse flagrante. Assim, os jovens que poderiam estar em qualquer situação de risco deixaram de ser identificados pela polícia, mas isso não é a função da polícia.
Outros órgãos que tratam da criança e do adolescente e do desenvolvimento social têm que solicitar a presença da polícia para proteger os seus serviços, mas eles é que têm que realizar os serviços.
BBC Brasil – É possível proteger os moradores da zona sul, turistas e frequentadores da praia sem as abordagens preventivas?
Ubiratan Ângelo – Não se pode deixar de fazer ações, mas elas não podem ter o cunho repressivo policial. A polícia têm que reprimir o crime ou a possibilidade da ocorrência de crime, ou seja, quando você tem elementos fundamentais para fazê-lo. Ela não pode selecionar pela classe social, ela não vai resolver a questão social. Não compete à polícia fazer isso, mas lhe sobra fazer isso porque ninguém faz.
E pior, quando as autoridades públicas começam a dizer que a polícia está de mãos atadas, que ela não pode mais efetivar seu caráter preventivo, isso provoca na cabeça do cidadão o seguinte sentimento: estou abandonado então vou tomar as minhas providências. Não justifica o que jovens fizeram, atacando ônibus, atacando outros jovens, mas sim o porquê deles terem feito isso.
BBC Brasil – Como o senhor vê a atitude dos jovens da região que atacaram supostos suspeitos de participação nos crimes?
Ubiratan Ângelo – O que eles fizeram é crime, eles têm que ser presos porque não cabe a eles tomar ações de "pseudo justiceiros", ou fazer justiça com as próprias mãos.
BBC Brasil – E o que é preciso fazer depois que o crime acontece sem colocar em risco toda aquela multidão na praia?
Ubiratan Ângelo – Quando alguém é roubado e as pessoas começam a correr e começa a reverberar uma informação não necessariamente verdadeira: arrastão. Isso vai colocando cada vez mais pessoas em risco. Quando você vê um ataque a uma vítima você se sente fragilizado. Isso se ameniza com efetivo de controle social: Polícia Militar e Guarda Municipal.
BBC Brasil – Esses policiais devem andar com armas de fogo na praia?
Ubiratan Ângelo – Legalmente sim, tecnicamente não. Pelo mesmo motivo que não se usa arma de fogo em estádio. Por que é um espaço onde a probabilidade de ter um disparo contra ele (policial) é muito reduzida, tendendo a zero. Segundo: a probabilidade de um disparo dele acertar inocentes é quase 100%.
As ações acabam sendo resolvidas com o confronto corporal. Preferencialmente, um grupo de policiais entra em ação para poder dominar e conter a situação. Mas no entorno você tem que ter alguém (policial) com uma arma para uma situação mais grave.
BBC Brasil – Quais as medidas mais urgentes para serem tomadas para tentar evitar que esse cenário se repita?
Ubiratan Ângelo – Vamos pegar um fim de semana com uma potencialidade como o último: os jogos do campeonato brasileiro, o Rock in Rio, a praia lotada, manifestações de paz, em defesa da liberdade religiosa, uma série de eventos que demandam policiais e a guarda municipal.
Os efetivos dessas instituições são limitados. Então para atuar nesse momento, quando todo mundo sabia que a praia ia estar cheia com turistas internacionais e nacionais, você tem que ter ações em conjunto. A parte criminal deve ser conduzida pela polícia e a social por esses órgãos (de assistência social).
Então a medida mais urgente é que as autoridades sentem para discutir nesta semana, porque no fim de semana tem Rock in Rio de novo e pela expectativa vai ter sol. Ou seja, vai ter jogo e a praia vai encher novamente.
Elas devem saber o que vão fazer, quais serão suas ações com a participação da polícia e da guarda municipal.