Como casamento 'sem noivo' e princesa incomum mudaram os rumos do Brasil
Foi um casamento sem a presença do noivo, mas que mudaria os rumos de uma nação.
Há exatos 200 anos, no dia 13 de maio de 1817, a princesa Maria Leopoldina da Áustria entrou na Igreja Augustina, em Viena, para se casar com Dom Pedro 1º. Uma união selada por procuração - prática comum nas uniões entre monarquias europeias.
Isso porque o príncipe herdeiro de Portugal se encontrava no Brasil com sua família desde 1808.
A festa foi marcada por pompa e luxo. O pai da noiva, o imperador Francisco 1º, não queria ficar atrás da demonstração de riqueza feita pelo representante da corte portuguesa, o Marquês de Marialva.
Ocasiões como essa também serviam como representação de poder para a população local. Durante muito tempo, o termo "casamento brasileiro" foi sinônimo de luxo e riqueza na capital austríaca.
Havia um interesse claro das duas dinastias na união.
"Para as famílias reais da época era importante fortalecer a influência do pensamento monárquico sobre as colônias na América. Era um período em que muitas dessas colônias estavam se tornando independentes, algumas já impregnadas pelo pensamento republicano, como os Estados Unidos", afirmou à BBC Brasil Karl Vocelka, historiador e professor da Universidade de Viena.
É curioso ver como esta união acabaria levando, cinco anos depois, ao processo de emancipação do Brasil. Em especial pela atuação da princesa Leopoldina, ao lado de José Bonifácio - que ficaria conhecido como o "Patriarca da Independência" -, nos dias que antecederam o rompimento do País com Portugal.
Para entender como uma princesa educada para servir sua dinastia acabou se virando contra uma monarquia europeia, é preciso conhecer a personalidade de Leopoldina.
Seus pais, Francisco 1º e Maria Teresa da Sicília, eram primos de primeiro grau, algo comum dentro da política de união praticada pela família Habsburgo.
A genética próxima surtiu efeito sobre a prole. O primogênito Fernando nasceu com hidrocefalia e sofria de epilepsia grave. As princesas demonstravam em geral pouca inteligência e se interessavam mais por roupas e luxos.
A exceção era Leopoldina.
Extremamente inteligente, mas tímida e reservada, tinha paixão por ciências naturais (Biologia e Mineralogia) e artes.
Desde criança, desenvolveu também uma forte religiosidade. Extremamente obediente, tinha uma devoção quase cega pelo pai, o imperador Francisco 1º. Deste, recebeu o conselho de obedecer a todos os desejos do marido.
"Uma vez que a vontade de meu pai é o princípio que orienta meu comportamento, estou convencida de que o céu vai me proteger e permitir que encontre minha felicidade nesta união", escreveu em carta a uma tia.
De fato, os primeiros anos do casamento com Dom Pedro 1º foram felizes. O príncipe se encantou inicialmente pela mulher inteligente e exótica - mulheres loiras, de olhos azuis e pele branca eram raras no Brasil da época.
O casal gostava de sair junto para cavalgar pelo Rio de Janeiro e recebia colonos diretamente no cais do porto da cidade, com Leopoldina fazendo o papel de intérprete para alemães que ali desembarcavam.
O nascimento dos primeiros filhos transformou Leopoldina fisicamente. Avessa a qualquer tipo de vaidade e ostentação, ela abria mão do uso de espartilhos e joias. Preferia se vestir com calça de equitação (um escândalo na época para uma moça da alta sociedade) e botas com esporas.
Alguns relatos de estrangeiros dão conta que ela "parecia uma cigana".
As escapadas amorosas de Dom Pedro, que nunca havia sido o marido mais fiel, se intensificaram. Leopoldina sabia disso, mas sofria em silenciosa resignação. Talvez para equilibrar a relação com o marido, ela resolveu mergulhar na política a partir do ano de 1821. Pelo menos nesse campo ele dava ouvidos à esposa e confiava em suas avaliações.
O país vivia um período especialmente instável. O rei Dom João 6º, pai de Pedro, já havia voltado a Portugal e, pressionado pela corte, solicitava que o filho também retornasse a Lisboa, além de ameaçar retirar do Brasil a condição de reino, praticamente "rebaixando" o país novamente ao papel de colônia.
No início de janeiro de 1822 houve o famoso "Dia do Fico", quando Dom Pedro afirmou abertamente que não retornaria a Portugal. A presença de tropas portuguesas no Rio de Janeiro deixou o clima tenso e o casal viveu uma tragédia pessoal.
Ante os fortes rumores de que seriam levados à força para Lisboa, Leopoldina decidiu fugir com os filhos do Palácio da Boa Vista para a fazenda de Santa Cruz. O trajeto sob o intenso calor do verão carioca foi demais para o pequeno João Carlos, de apenas um ano, que adoeceu e morreu poucos dias depois.
Leopoldina colocou a culpa nos generais portugueses e passou a trabalhar com mais afinco pelo rompimento entre Brasil e Portugal. No início de setembro, quando Dom Pedro estava em São Paulo para lidar com distúrbios na cidade, Leopoldina assumiu o papel de regente.
Após dias de deliberação com José Bonifácio e outros políticos a favor da independência, ela escreveu para o marido uma carta enfática incentivando-o à separação das duas nações.
"O pomo está maduro. Colha-o agora, senão ele apodrece", foi como encerrou o texto.
Para o historiador austríaco Vocelka, o papel ativo de Leopoldina na independência não surpreende: "Ela tinha a personalidade mais forte entre os dois. Dom Pedro certamente não era o marido mais fiel, então ela buscou alguma atividade que lhe desse uma certa independência".
Já a doutora em história pela USP Joana Monteleone acredita que o apoio de Leopoldina ao movimento de independência tenha sido, na verdade, uma inteligente jogada política de uma monarca.
"Algo que se esperava das princesas era que atuassem politicamente a favor de suas casas reais. Leopoldina não gostaria que acontecesse no Brasil o que estava acontecendo com as colônias espanholas vizinhas, com todas se tornando repúblicas. Ao apoiar a independência brasileira, numa espécie de continuidade da dinastia de Dom Pedro 1º, ela reafirmava seu poder sobre este território".
Na mesma viagem a São Paulo em que declarou a independência do Brasil, Dom Pedro conheceu a mulher que, de certa forma, encerraria o papel de Leopoldina também na política. Domitila de Castro foi até uma audiência do príncipe pedir ajuda para uma questão da guarda de seus filhos do primeiro casamento. Terminaram a noite juntos.
O que parecia ser mais uma aventura amorosa de Pedro acabaria transformando o início do Brasil imperial. Domitila virou uma espécie de "amante oficial", ganhando residência no Rio de Janeiro, o título de Marquesa de Santos e muita influência na corte.
Para Leopoldina, foi o início de um período de humilhações públicas e até mesmo suspeita de agressões por parte do marido.
Nem mesmo o nascimento de outro filho homem em 1825 - Pedro de Alcântara, que se tornaria o imperador Dom Pedro 2º - aproximou o casal. Domitila também teve filhos com o monarca, todos ganhando títulos nobres e também educação na corte.
Deprimida e fraca pelas consequências de um aborto sofrido dez dias antes, Leopoldina acabou morrendo aos 29 anos, em 11 de dezembro de 1826. Em uma carta escrita à irmã Maria Luisa poucos antes, a imperatriz já antecipava seu destino.
"Ouça o grito de uma vítima que pede de ti não vingança, mas piedade e socorro do amor fraternal para meus inocentes filhos, que órfãos vão ficar, em poder de si mesmos ou das pessoas que causaram minhas desgraças, reduzindo-me ao estado em que me encontro", escreveu.
Menos de dez anos depois do pomposo casamento em Viena, Leopoldina ajudou um país a se transformar, mas não conseguiu se libertar de uma relação pessoal desastrosa construída por interesses políticos. Dom Pedro 1º abdicou do trono em 1831 para voltar a Portugal, deixando claro onde estavam suas raízes.
O Brasil imperial passou então por um período conturbado até a coroação de Dom Pedro 2º, em 1841. Seu interesse pelos estudos e a personalidade tranquila e equilibrada certamente lembravam mais a mãe do que o pai.