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Como eleição é encarada em bairros marcados pela violência

6º episódio do podcast Brasil Partido trata das preferências eleitorais de moradores de bairros dominados pelo crime organizado ou vítimas da violência policial.

26 out 2022 - 07h06
(atualizado às 11h03)
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Moradores de favelas do Rio e de Salvador expõem no podcast Brasil Partido grande frustração com políticas de segurança adotadas por governos de direita e de esquerda.
Moradores de favelas do Rio e de Salvador expõem no podcast Brasil Partido grande frustração com políticas de segurança adotadas por governos de direita e de esquerda.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A violência costuma ser citada em pesquisas como uma das principais preocupações dos brasileiros.

Mas como o tema influencia as escolhas eleitorais de moradores de favelas dominadas pelo crime organizado, ou de brasileiros que tiveram parentes mortos em operações policiais?

Esse é o tema do sexto episódio de Brasil Partido, um podcast da BBC News Brasil, veiculado nesta quarta-feira (26/10) no site da BBC, no canal da emissora no YouTube e em plataformas de áudio como Spotify, Apple Podcasts e Deezer.

Apresentado pelo repórter João Fellet - e com a produção deste episódio a cargo de Tatiana Lima -, o podcast aborda como pessoas de diferentes grupos sociais - como jovens evangélicas, executivos do mercado financeiro e brasileiros que se identificam como pardos - se posicionam diante de conflitos políticos atuais.

O podcast busca ainda entender como os brasileiros chegaram ao atual grau de divisão na política e se há possibilidade de diálogo entre grupos divergentes.

Políticas pró-armas avançaram no governo Jair Bolsonaro, mas moradores de favelas entrevistados não viram redução da insegurança.
Políticas pró-armas avançaram no governo Jair Bolsonaro, mas moradores de favelas entrevistados não viram redução da insegurança.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Pacificação efêmera

Em 2010, uma série de operações policiais marcou a história do Rio de Janeiro.

A polícia e as Forças Armadas ocuparam favelas que eram dominadas há várias décadas pelo crime organizado. Daquela vez, as autoridades prometiam que os agentes de segurança tinham chegado para ficar.

As operações abriram o caminho para a instalação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras). A estratégia deu certo por um tempo. Na véspera da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016, favelas com fama de violentas chegaram a hospedar turistas estrangeiros.

Mas, em poucos anos, o crime organizado voltou a dominar os territórios.

"Disseram que estavam combatendo, mas, na verdade, eles estavam alimentando um novo modelo de crime", diz ao podcast Brasil Partido a artista plástica Mariluce Mariá, uma líder comunitária de 40 anos que vive no Complexo do Alemão, uma das maiores favelas do Rio.

Ela diz que, nos últimos anos, os confrontos no Complexo do Alemão entre facções criminosos e a polícia têm se tornado mais violentos.

Antigamente, diz ela, os moradores conseguiam se abrigar quando a polícia subia o morro atrás de traficantes. Hoje, porém, ela afirma que os armamentos usados por policiais e traficantes são tão potentes que derrubam paredes.

Uso do caveirão em operações em favelas ampliou a escala dos confrontos e deixou moradores sob riscos maiores, segundo líder comunitária do Complexo do Alemão
Uso do caveirão em operações em favelas ampliou a escala dos confrontos e deixou moradores sob riscos maiores, segundo líder comunitária do Complexo do Alemão
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Em qualquer guerra existe o campo de refugiados", diz Mariá. "Nas favelas, não existem, a gente já tomou tiro do alto do helicóptero", ela afirma.

Desde 2021, aconteceram três das quatro operações policiais que causaram mais mortes na história do Rio - uma delas no próprio Complexo do Alemão, em julho de 2022, quando 17 pessoas morreram.

Entre as pessoas mortas estavam um policial militar e uma moradora de 50 anos atingida pela polícia.

Os outros 15 mortos, segundo a polícia, foram alvejados enquanto trocavam tiros com os agentes de segurança. Mas a informação não pode ser confirmada de forma independente, já que, segundo a Defensoria Pública do Rio, a polícia não preservou os locais das mortes.

Maia reconhece que o crime organizado é parte desse confronto, mas diz que "quem me deve um exemplo e uma satisfação é (a) quem eu pago meus impostos (governo), então tem que cobrar deles mais trabalho de inteligência".

Visita de Lula ao Alemão

O Complexo do Alemão, onde Mariá mora, ganhou os holofotes após uma visita de Lula num ato de campanha, em outubro. Na visita, o ex-presidente vestiu um boné com a sigla CPX.

O presidente Jair Bolsonaro e vários de seus apoiadores passaram então a divulgar que a sigla CPX seria uma referência ao crime organizado. Também disseram que Lula só tinha conseguido visitar o Complexo do Alemão porque teria tido o aval do tráfico, segundo eles.

Mas CPX quer dizer "complexo", e essa é uma sigla usada por moradores de vários outros complexos de favelas do Rio.

Maia diz que ela foi uma das primeiras pessoas a usar a sigla nas redes sociais, para mapear casos de violência na comunidade.

Ela diz que achou ofensiva a fala de Bolsonaro relacionando a visita de Lula a uma suposta afinidade do ex-presidente com criminosos.

"Bandido tem em todo lugar: tem bandido armado, bandido de caneta, e bandido só com palavra", afirma.

"Existem pessoas que matam mais gente com uma só palavra do que com qualquer outra coisa."

Inaugurado pelo governo federal antes dos grandes eventos esportivos, teleférico do Complexo do Alemão hoje está parado por falta de manutenção.
Inaugurado pelo governo federal antes dos grandes eventos esportivos, teleférico do Complexo do Alemão hoje está parado por falta de manutenção.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mesmo assim, Maia diz que pretende anular o voto. Ela diz que Bolsonaro não promoveu melhorias para quem vive em favelas nem na gestão da segurança pública.

Por outro lado, também é crítica às gestões de Lula e Dilma Rousseff e lembra que os dois, enquanto eram presidentes, ofereceram o apoio das Forças Armadas para operações nas favelas. Para ela, o uso da força só acirrou o problema, e governos deveriam apostar na inteligência policial e investimentos em educação para combater a violência nas favelas.

Mariá lembra ainda que a deputada federal Benedita da Silva, uma das fundadoras do PT, era vice-governadora na gestão que levou os chamados "caveirões" para as favelas cariocas.

Caveirão é o nome popular de um veículo blindado usado pela Polícia do Rio - o apelido se deve ao símbolo do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da PM fluminense) que o veículo exibe na lataria, uma faca fincada numa caveira.

Segundo Mariá, a chegada do caveirão ampliou a escala dos confrontos e deixou os moradores sob riscos ainda maiores.

Benedita era vice de Anthony Garotinho e chegou a assumir o governo por 9 meses, em 2002, quando o governador deixou o posto para concorrer à Presidência.

Procurada pela BBC, ela não quis se pronunciar sobre as críticas de Mariá nem sobre o uso do caveirão nas favelas.

Internet cortada

Maia vive uma rotina de insegurança há décadas e está desiludida com a política, pois viu vários governantes entrarem e saírem sem que o problema se resolvesse.

Mas e cariocas que só começaram a viver essa situação recentemente?

A técnica de enfermagem Lucia Martins, de 42 anos, narra ao podcast Brasil Partido como, há cerca de um ano, a internet da Claro foi cortada no bairro Engenho da Rainha, na zona norte do Rio, onde ela mora.

Martins diz que, após entrar em contato com a operadora na ocasião, foi informada de que técnicos da empresa não poderiam fazer a manutenção da rede por falta de segurança.

Dias depois, a imprensa carioca noticiou que o tráfico de drogas estava por trás da ação. Hoje, moradores que queiram acessar a internet no bairro precisam recorrer a um serviço de menor qualidade, oferecido por uma empresa desconhecida.

Essa é uma prática comum em bairros do Rio dominados pelo tráfico ou pela milícia, que têm nesses serviços alternativos de internet uma fonte de financiamento.

Martins diz que se surpreendeu com o corte da internet porque, embora essa seja uma prática comum em favelas, seu bairro não é uma favela.

Bairro Engenho da Rainha, na zona norte do Rio de Janeiro, tem lidado com episódios de violência cada vez mais frequentes, segundo moradora
Bairro Engenho da Rainha, na zona norte do Rio de Janeiro, tem lidado com episódios de violência cada vez mais frequentes, segundo moradora
Foto: Google / BBC News Brasil

O Engenho da Rainha é um bairro de classe média e bem localizado, próximo do metrô e de vias que dão acesso à zona oeste e ao centro do Rio.

Contatada pela BBC, a Claro não respondeu por que deixou de operar no bairro.

"A violência, hoje, eu acredito que está no Rio de Janeiro todo, mas aqui a gente tem presenciado cada vez mais perto", diz Martins.

Ela afirma que são cada vez mais comuns as ocasiões em que é despertada pelo barulho de tiroteios ou por helicópteros policiais em voos rasantes.

Martins diz ter votado em Bolsonaro em 2018, mas se arrependeu - principalmente por conta da gestão da pandemia.

"Eu acredito que muita gente morreu pela demora da vacina", afirma.

Ainda assim, pretende votar outra vez no presidente por considerar Lula uma opção ainda pior.

"Eu acredito, sim, que o governo do PT teve culpa em boa parte de todas as acusações que foram feitas, que teve um roubo muito grande no país e não gostaria que ele voltasse", diz.

No primeiro turno, Bolsonaro recebeu 47% dos votos no município do Rio, contra 43,5% de Lula. A disputa entre os dois também foi parelha quando só se consideram os votos das maiores favelas da Grande Rio.

Segundo uma reportagem do Jornal Extra, Lula venceu em oito dessas favelas, e Bolsonaro ficou na frente em sete.

Ou seja, entre moradores de favelas do Rio de Janeiro, que são um dos grupos que experimentam mais violência no Brasil, não existe uma preferência clara por um dos dois candidatos.

Desaparecimento forçado

Rua no bairro de São Cristóvão, em Salvador, onde o jovem Davi FIuza, de 16 anos, desapareceu após uma abordagem policial em 2014.
Rua no bairro de São Cristóvão, em Salvador, onde o jovem Davi FIuza, de 16 anos, desapareceu após uma abordagem policial em 2014.
Foto: Google / BBC News Brasil

Mas como a violência extrema influencia posições políticas em outras partes do Brasil?

Camila Fiuza tem 34 anos e vive em Salvador.

Em 2014, o irmão dela, Davi Fiuza, desapareceu após uma abordagem policial no bairro de São Cristovão, na periferia da capital baiana. Ele tinha 16 anos na época.

Fiuza diz que era muito próxima do irmão: quando Davi era bebê, era ela quem cuidava dele. "Então ele também me chamava de mamãe quando era pequeno", diz Fiuza.

Ela afirma que, após o desaparecimento de Davi, "o pânico se instalou na comunidade". "Aconteceram várias mortes sequenciais na região, e as pessoas ficavam em pânico e ninguém queria falar", ela diz.

Em 2018, quatro anos após o desaparecimento do Davi, o Ministério Público acusou sete policiais militares por participação no caso.

A Justiça aceitou a denúncia, e agora, oito anos depois do desaparecimento, a família aguarda a realização das primeiras audiências sobre o caso.

Contatada, a Polícia Militar da Bahia não quis se manifestar sobre o caso.

Na época do desaparecimento, o governo da Bahia era chefiado por Jaques Wagner, do PT.

"Eu tenho uma crítica muito forte ao governo do PT da Bahia", diz Fiuza.

"O governo simplesmente não deu nenhuma resposta para nossa família, eles agem de forma cínica", afirma.

Wagner também não quis se pronunciar sobre o caso à BBC.

Apesar das críticas às gestões do PT no Estado, Fiuza diz ter motivos de sobra para votar em Lula na disputa para a Presidência.

"Em boa parte do Nordeste, nós vivemos muito esquecidos, marginalizados e precarizados por muito tempo. E o Lula trouxe políticas públicas muito importantes que nos afetaram de forma muito positiva, como o Bolsa Família, como as cotas", ela diz.

Graças à política de cotas, Fiuza foi a primeira pessoa da família a se formar na universidade - ela cursou Jornalismo na Universidade Federal da Bahia.

Ela diz que, quando há mais negros na universidade, também passa a haver mais negros em postos que são historicamente ocupados por brancos no Brasil - como no topo dos governos e das polícias -, o que pode ajudar a combater o racismo nessas instituições, segundo ela.

Manifestação contra a morte do congolês Moise Mugenyi Kabagambe no Rio de Janeiro, em fevereiro; para ativista, é preciso criar uma consciência racial entre brasileiros negros.
Manifestação contra a morte do congolês Moise Mugenyi Kabagambe no Rio de Janeiro, em fevereiro; para ativista, é preciso criar uma consciência racial entre brasileiros negros.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mas, pra Fiuza, esse movimento precisa ser acompanhado por outro: criar uma consciência racial entre negros.

"As pessoas, muitas pessoas, elas não têm noção da cor da sua pele, elas não têm noção que são negras e fazem parte de um grupo alvo da polícia", diz.

Em julho, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma organização não governamental, lançou seu 16º anuário sobre as estatísticas nacionais de violência.

O anuário revelou que 15,8% das pessoas mortas pela polícia no Brasil em 2021 eram brancas, e 84,1% eram negras.

O fato de Fiuza ser adepta do candomblé acrescenta outra camada à dor da família.

Isso porque, como o corpo de Davi nunca foi encontrado, ela diz que a família nunca pode fazer os rituais fúnebres para garantir que o espírito do irmão descansasse.

Fiuza afirma que, segundo sua crença, os mortos voltam para Nanã, orixá que forneceu o barro para a criação dos humanos e para quem os corpos voltam após a morte.

"A gente sabe que o meu irmão não foi para esse lugar que deveria voltar", ela diz.

"A gente não sabe onde ele está, o que de fato potencializa ainda mais o sofrimento".

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63381233

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