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Condenados podem ser soltos? Os possíveis efeitos de decisão do STF sobre porte de maconha

Corte volta a jugar descriminalização de porte para consumo e avalia fixar parâmetros que diferenciam melhor consumidor e traficantes. Isso pode abrir caminho, dizem especialistas, para rever penas de quem tenha sido condenada por venda de drogas portando quantidades menores de entorpecentes.

5 mar 2024 - 18h08
(atualizado em 7/3/2024 às 15h31)
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O crime de porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006
O crime de porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF) segue sem uma decisão sobre o julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha para consumo, que foi retomado na quarta-feira (6/3) e pausado após novo pedido de vista (mais tempo para analisar o caso).

Até o momento, foram cinco votos favoráveis e três contrários. Responsável pelo pedido de vista na quarta-feira, o ministro Dias Toffoli agora terá até 90 dias para analisar o processo antes de devolvê-lo para que o presidente da Casa, Luís Roberto Barroso, o coloque novamente na pauta do dia.

Agora faltam votar, além de Toffoli, Luiz Fux e Cármen Lúcia.

Esse julgamento também caminha para fixar parâmetros objetivos de quantidade de maconha para diferenciar quem seria usuário ou traficante, o que, na visão de defensores da medida, pode reduzir o que seriam prisões equivocadas por tráfico no país.

Na sessão de quarta, antes do pedido de vista de Toffoli, os ministros André Mendonça e Nunes Marques votaram contra a descriminalização. Anteriormente, o ministro Cristiano Zanin também já havia votado contra.

Por enquanto, estão a favor: Gilmar Mendes (relator da ação), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e a ex-ministra Rosa Weber. Para que a medida entre em vigor, é necessário mais um voto.

Eles argumentaram que o uso da maconha é uma questão de liberdade individual e deve ser combatido com campanhas de informação e atendimento focado na saúde dos usuários.

"A criminalização da conduta de portar drogas para consumo pessoal é desproporcional", argumentou Weber.

Primeiro a votar contra a descriminalização, o ministro Cristiano Zanin, nomeado para a Corte pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi alvo de revolta nas redes sociais de progressistas que apoiaram a eleição do petista.

"A descriminalização, ainda que parcial das drogas, poderá contribuir com o agravamento deste problema de saúde", argumentou.

O julgamento, iniciado em 2015, foi suspenso pela segunda vez no dia 24 de agosto de 2023, após o ministro André Mendonça pedir vista.

A ação não trata da venda de drogas, que continuará ilegal qualquer que seja o resultado. O crime de porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006, com a sanção da atual Lei de Drogas.

Caso a descriminalização seja aprovada no STF, a pessoa que portar entorpecentes para consumo próprio não poderá mais ser submetida a outras punições atualmente em vigor, como prestação de serviços à comunidade ou comparecimento a programa ou curso educativo, nem terá um registro na sua ficha criminal.

Apesar disso, estudiosos do tema afirmam que esse julgamento pode ter o impacto de reduzir o número de pessoas presas no país, caso a decisão do STF permita libertar pessoas que estariam, ao seu ver, erroneamente encarceradas por tráfico de drogas.

Para que isso ocorra, dizem, seria necessário que a Corte estabelecesse parâmetros objetivos para diferenciar qual a quantidade de droga deve ser considerada voltada para consumo e qual deve ser enquadrada como tráfico.

Defensores da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF) e integrantes da Procuradoria-Geral da República, afirmam que a falta de parâmetros objetivos para que policiais, promotores e juízes diferenciem o consumo da venda faz com que muitas pessoas detidas no país com pequenas quantidades de maconha, por exemplo, acabem presas pelo crime de tráfico.

No entanto, há organizações que estão participando do processo que duvidam deste efeito porque discordam da avaliação de que pessoas estejam sendo presas por tráfico equivocadamente.

A quantidade só será definida ao final do julgamento, caso haja maioria a favor da medida.

Barroso e Weber, por exemplo, propuseram 100 gramas de maconha como um corte para diferenciar usuário e traficante. A quantidade segue parâmetros usados em outros países, como Espanha e Holanda.

Já Moraes e Mendes sugeriram 60 gramas, enquanto Zanin defendeu apenas 25 gramas.

Os ministros também discutem fixar uma quantidade máxima de pés de maconha para um usuário cultivar.

Os ministros ressaltaram, porém, que eventuais parâmetros a serem adotados serviriam como uma referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou ainda enquadrá-lo como traficante, mesmo que tenha quantidade menor.

Isso dependerá de outros elementos que corroborem para o crime de tráfico, como apreensão de armas ou balança para pesar drogas, por exemplo.

Fachin, quando votou em 2015, foi contra a adoção de critérios pelo STF, pois considerou que seria função do Congresso definir essa quantidade. Mas ele ainda pode revisar seu voto, como fez Mendes, que também havia ficado contra a fixação de parâmetros no início do julgamento.

'Não haverá soltura automática de presos'

Há mais de 180 mil pessoas presas hoje no país por tráfico de drogas. A quantidade de presos que seria eventualmente beneficiada por uma decisão neste julgamento dependerá de a maioria do STF concordar com a fixação de parâmetros que diferenciem consumo e tráfico e de quais seriam os parâmetros adotados.

No entanto, nenhuma decisão do Supremo levaria a uma liberação automática de presos, explica a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen à BBC News Brasil.

Cada pessoa detida pelo crime de tráfico de drogas e potencialmente impactada pelo julgamento, ressalta, teria que apresentar um recurso à Justiça solicitando a revisão de sua pena.

Em 2015, apenas Gilmar Mendes votou pela liberação para qualquer tipo de droga
Em 2015, apenas Gilmar Mendes votou pela liberação para qualquer tipo de droga
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Se o Supremo decidir que até determinada quantidade não é tráfico de drogas, o que vai acontecer é que, nos casos em que houver pequena quantidade (de droga apreendida), as defesas vão arguir que aquilo não seria crime. E isso vai ser analisado caso a caso. Então, será um impacto de médio prazo", afirma.

"O efeito mais imediato é que pessoas com pequenas quantidades não seriam mais presas e processadas, se não estiverem presentes outros elementos que denotem tráfico, como por exemplo, anotações de contabilidade (da venda de drogas), a balança (usada para pesar a droga vendida), o dinheiro, a arma, a munição", acrescenta.

Uma fixação de parâmetros nas condições propostas por Barroso é apoiada também pela associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF).

A instituição não se posiciona a favor ou contra a descriminalização do porte para consumo, mas defende que, independentemente do que for decidido nesse ponto, o Supremo estabeleça parâmetros para diferenciar o usuário do traficante.

Segundo Davi Ory, advogado que representa a associação, a APCF avalia que "o principal fator para o aumento do encarceramento foi a adoção de critérios subjetivos demasiadamente amplos e que transferiram à estrutura do Poder Judiciário o ônus de definição de quem seria usuário e traficante tendo por base 'as circunstâncias sociais e pessoais', bem como o 'local e condições em que se desenvolveu a ação'".

Isso, ressalta, estaria gerando prisões indevidas, principalmente, de pessoas negras e pobres.

Já o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente no julgamento do STF, questiona o impacto do julgamento na redução dos presos.

A organização, que atua como apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos, foi uma das instituições aceitas pelo Supremo para atuar no julgamento como amicus curiae (colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso mas não está vinculado diretamente ao resultado).

"Eu não tenho notícia que dependente químico esteja preso. O artigo 28 da atual legislação de drogas não prevê a prisão daqueles que sejam surpreendidos com posse de droga para consumo pessoal. É uma colocação que não existe. Não é sob esse aspecto que as prisões vão estar mais lotadas ou não", afirmou Vieira, que conversou em maio com a BBC News Brasil.

Presos por tráfico são mais de 25% da população carcerária

Estudos indicam, no entanto, que a atual Lei de Drogas, sancionada em 2006 por Lula, contribuiu para o aumento do número de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas.

Essa lei acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para traficantes. A expectativa era que isso reduziria o número de prisões, mas o efeito foi o oposto, afirma o advogado Pierpaolo Bottini, que era secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça naquela época.

"A impressão que se tinha é que isso ia desencarcerar, porque as pessoas que estavam presas por uso iam sair (da prisão). Mas acabou aumentando o encarceramento porque justamente as autoridades policiais acabaram jogando tudo para o tráfico, então acabou tendo efeito absolutamente inverso", disse em entrevista à BBC News Brasil em maio de 2023.

Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, quase 28% da população carcerária no país está presa por crimes previstos na Lei de Drogas.

No caso das prisões estaduais, por exemplo, onde havia um total de 659.351 pessoas detidas provisoriamente ou condenadas no primeiro semestres de 2022 (dado mais recente), 182.958 estavam presas por esse tipo de delito, 27,75% do total.

Um estudo de 2023 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que analisou uma amostra dos processos julgados na primeira instância judicial de todo o país no primeiro semestre de 2019, estimou que 58,7% dos réus que respondiam por tráfico de maconha portavam até 150 gramas. E apenas 11,1% levavam mais de dois quilos da droga.

Uma análise semelhante dos réus em processos por tráfico de cocaína identificou que 62,3% dos processos se referem a 100 gramas ou menos, enquanto 6,8% dos casos tratavam de apreensões de mais de um quilo.

Quase 28% da população carcerária no Brasil está presa por crimes previstos na Lei de Drogas
Quase 28% da população carcerária no Brasil está presa por crimes previstos na Lei de Drogas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Limite de 25 gramas poderia impactar 27% dos condenados por tráfico de maconha, estima Ipea

Esse mesmo estudo estimou quantas pessoas condenadas por tráfico de maconha ou cocaína poderiam ter sua pena revista caso fossem fixadas quantidades máximas de porte para consumo dessas drogas.

Foram analisados processos de 5.121 réus por tráfico de drogas julgados na primeira instância judicial no primeiro semestre de 2019, uma amostra representativa do total de pessoas presas por esse crime no país.

A conclusão do estudo do Ipea foi que se o parâmetro proposto por Barroso (25 gramas de maconha) fosse adotado, por exemplo, 27% dos condenados por tráfico de maconha poderiam ter sua pena revista.

Se fosse adotada uma quantidade de 40 gramas de limite para consumo, 33% dos condenados poderiam ser impactados.

Por outro lado, se o parâmetro fosse fixado em 100 gramas, quase metade (48% dos condenados) poderia ter a revisão de pena.

Os cenários testados pelo Ipea levaram em conta três opções de parâmetros propostos em uma nota técnica do Instituto Igarapé, de 2015, que analisou pesquisas sobre uso de drogas no Brasil e experiências internacionais de fixação de quantidades para diferenciar tráfico e consumo.

No caso da cocaína, 31% dos condenados por tráficos poderiam ter sua pena revista caso o STF fixasse um parâmetro de 10 gramas para consumo. Se a quantidade limite fosse de 15 gramas, o percentual subiria para 37%.

"Os cenários acima constituem um exercício interpretativo para projetar o alcance de referidos parâmetros exclusivamente aplicados à quantidade de drogas, mas somente a análise dos casos concretos permitiria a reclassificação da conduta como consumo pessoal", ressalta o estudo.

As conclusões desse estudo, no entanto, não permitem calcular o potencial de presos que poderiam ser soltos caso o STF adote parâmetros para diferenciar tráfico e consumo, pois nem todos os réus processados por tráfico de drogas são condenados a regime fechado ou semiaberto, explicou a BBC News Brasil a coordenadora da pesquisa, Milena Karla Soares.

"Estamos fazendo um novo estudo para analisar especificamente qual seria o impacto no sistema prisional", disse.

Soares ressalta que um elemento que dificulta essas análises é a falta de padronização do registro das quantidades apreendidas nos processos criminais.

Para identificar as quantidades apreendida com cada réu, a equipe do Ipea pesquisou diversos documentos processuais, como laudos periciais, denúncias do Ministério Pública e as sentenças dos juízes. Foi selecionada, então, "a melhor informação disponível" nesses vários documentos, em cada caso, para realizar o estudo.

Por isso, uma das recomendações da pesquisa é "o estabelecimento de um protocolo nacional para padronização das informações de natureza e de quantidade de drogas nos processos criminais".

Entenda melhor a ação em julgamento

O STF está analisando um Recurso Extraordinário com repercussão geral (cuja decisão valerá para todos os casos semelhantes) que questiona se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional.

Esse artigo prevê que é crime adquirir, guardar ou transportar droga para consumo pessoal, assim como cultivar plantas com essa finalidade.

Não há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas nesse caso são "advertência sobre os efeitos das drogas", "prestação de serviços à comunidade" e/ou "medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo".

O recurso foi movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu pego com 3 gramas de maconha na prisão. Pela posse da droga, ele foi condenado a prestar serviços comunitários. A Defensoria argumenta que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas a si mesmo), garantidos na Constituição Federal.

"Por ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do direito penal, por meio de proibição e repressão. Experiências proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias entorpecentes", argumentou o defensor Rafael Muneratt, ao sustentar no início do julgamento.

Já o então chefe do Ministério Público em São Paulo, o procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a descriminalização.

"O tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não se mostra capaz nem sequer do controle efetivo da circulação das chamadas drogas lícitas. Não há estruturada rede de atenção à saúde ou programa efetivo de reinserção social", sustentou.

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