Coronavírus: condomínio em SP tentou segregar chineses como 'medida de prevenção'
Administração do prédio comercial fez comunicado dizendo que criou 'condições para que 'irmãos' chineses possam acessar as dependências do prédio'; depois de ser procurado pela empresa chinesa, condomínio voltou atrás e mudou o comunicado.
Em meio à emergência internacional decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) diante do novo coronavírus, um condomínio comercial em São Paulo fez um comunicado dizendo que "determinou algumas condições" para que funcionários chineses de uma das empresas possam entrar no prédio.
Segundo o comunicado, que circulou nas redes sociais, os funcionários chineses precisariam usar máscaras cirúrgicas, usar "apenas o elevador privativo" e "higienizar as mãos com álcool gel".
"Há um empresa oriental instalada neste edifício e dentre os funcionários existem vários chineses. Além disso, está prevista a chegada de chineses na próxima semana. Como medida de prevenção, o condomínio determinou algumas condições para que nossos "irmãos" chineses possam acessar as dependências do prédio", diz o texto.
"Recomendamos que os demais usuários usem os outros elevadores, deixando o carro privativo somente para os chineses."
No comunicado, a administração afirma que a "finalidade" das medidas é "prevenir eventual transmissão aos usuários do condomínio".
O gerente do condomínio confirmou a existência do comunicado, mas disse que as medidas nunca chegaram a ser tomadas porque dois dias depois a administração foi procurada pela empresa. Segundo ele, a companhia informou que todos os funcionários vindos da China estavam seguindo as recomendações da OMS de ficar em quarentena.
"A empresa que tinha esses funcionários nos procurou dizendo que estava seguindo as recomendações da OMS e que os funcionários não iam vir mais para cá, iam ficar isolados por 14 dias. Então soltamos um segundo comunicado (dizendo) que não ia mais acontecer aquilo, mas orientando para que todo mundo tenha uma certa precaução" afirmou o gerente à BBC News Brasil, por telefone.
"A gente não ia obrigar ninguém a fazer nada, até porque não podemos pedir uma coisa dessas."
No segundo comunicado, que ainda está afixado no elevador do condomínio, a administração diz que "apesar de haver alguns funcionários de origem chinesa", não há nenhum funcionário que tenha vindo da China recentemente e que, caso haja, a empresa "seguirá todas as orientações da OMS" de fazer quarentena.
O condomínio também se corrige e diz que "é importante esclarecer que as providências aqui expostas alcançam todo indivíduo (de qualquer nacionalidade) que desembarca no Brasil partindo da China."
Restrição é crime
"A restrição indicada (no primeiro comunicado) é tecnicamente imperfeita e ilegal. Cria uma discriminação incabível, porque destinada especificamente aos chineses, mesmo sem qualquer suspeita de doença contagiosa", afirma o advogado Wilson Levy, especialista em direito da cidade pela PUC-SP e professor da Uninove.
"Inexistindo qualquer comprovação — ou suspeita — de que os cidadãos chineses estivessem contaminados com o coronavírus, que é doença contagiosa, descaberia ao condomínio criar essa restrição."
Ele lembra que uma lei municipal em São Paulo proíbe "qualquer forma de discriminação no acesso aos elevadores de todos os edifícios públicos municipais ou particulares, comerciais, industriais e residenciais multifamiliares" na cidade e dispõe que é "vedada qualquer forma de discriminação em virtude de raça, sexo, cor, origem, condição social, idade, porte ou presença de deficiência e doença não contagiosa por contato social no acesso aos elevadores" desse edifícios.
"A hipótese é de crime resultante de preconceito de procedência nacional" afirma Levy. Segundo ele, o crime pode ser praticado por quem decidiu emitir esse comunicado e por quem afixou o cartaz. Na esfera cível, o condomínio, pessoa jurídica, poderia ser alvo de uma ação de indenização por danos morais.
O especialista explica que o coronavírus é uma doença de notificação obrigatória e imediata ao Ministério da Saúde e que cabe ao poder público "medidas de preparação e de enfrentamento às emergências em saúde pública".
"Ainda que seja legítima a preocupação do condomínio, a ele não cabe substituir medidas cujo titular é o poder público", diz Levy.
"Se houvesse motivo justo para alarme, o ideal seria emitir um comunicado reiterando o que já se disse sobre o caso: que é fundamental adotar medidas de higiene pessoal, tais como lavar as mãos e cobrir a boca em caso de enfermidade e lembrar, a título de orientação, que cidadãos que viajaram à China (e não apenas aos chineses) nas últimas semanas que qualquer alteração no quadro de saúde deve ser informada ao serviço médico."
Casos de preconceito
Relatos de casos de discriminação com pessoas associadas à China — seja por sua nacionalidade, ascendência familiar ou aparência física — explodiram desde o início do surto.
Na França, por exemplo, relatos de hostilidades vividas por estas pessoas no transporte público, em escolas e em unidades de saúde estão sendo reunidos pela hashtag #JeNeSuisPasUnVirus (#NãoSouUmVírus).
Casos de ofensas e reações preconceituosas também aconteceram no Brasil.
Uma jovem brasileira descendente de japoneses relatou ter sido xingada de "chinesa porca" por uma mulher no metrô do Rio de Janeiro. A estudante filmou algumas das ofensas e publicou as imagens no Twitter.
Quão perigoso é o novo coronavírus?
Ainda que o temor com o coronavírus seja justificado, os especialistas afirmam que, segundo os dados atuais, que ele é menos letal e contagioso do que outras doenças que circulam no Brasil.
Seu índice de mortalidade é inferior, por exemplo, ao do tipo mais grave da dengue (3,8%) ou da febre amarela silvestre (35%).
Além disso, é quatro vezes menos contagioso do que o sarampo. Uma pessoa com sarampo, por exemplo, pode infectar de 12 a 18 pessoas. No ano passado, 16 mil casos da doença foram registrados no Brasil, principalmente em São Paulo e no Paraná.