Coronavírus: medição de temperatura em aeroportos é novo capítulo da disputa entre Estados e governo federal
Governo federal não recomenda controle de temperatura de pessoas desembarcando no Brasil por seguir orientação da OMS, que diz não haver comprovação de eficácia da medida. Estados como RJ e DF estão no entanto colocando suas equipes para fazer triagens.
Depois de passar um mês de férias na Itália, Alberto*, 51, se surpreendeu com a mudança brusca de cenário de Roma a São Paulo — e não pela troca de país ou da primavera pelo outono.
Se em Roma o brasileiro passou por exaustivos procedimentos no aeroporto por conta da pandemia de coronavírus, com pelo menos dois formulários preenchidos e medição de temperatura, no desembarque em São Paulo no domingo (22/03) ele estranhou simplesmente... chegar.
Na data da chegada dele, o país já tinha 1.546 casos confirmados e 25 mortes causadas pelo novo coronavírus.
"A única checagem pela qual passei foi a de passaporte, normal. Ninguém respeitava a distância (maior que um metro entre as pessoas, para evitar transmissão), mas também não tinha ninguém orientando. Todo o comércio estava aberto. Também não tive temperatura checada", conta Alberto, morador da capital paulista, à BBC News Brasil por telefone.
O estranhamento dele diz respeito a um ponto que tem causado divergências, e até disputa judicial, entre Estados e o governo federal no Brasil: passageiros que chegam de lugares com infecção devem passar por uma triagem, como a medição de temperatura?
O governo federal, por meio do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), defende que não, argumentando que este procedimento "não tem fundamento científico e não está entre as medidas previstas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e internalizadas no Brasil" — conforme escreveu a agência à BBC News Brasil.
Por outro lado, alguns Estados, como o Distrito Federal e Rio de Janeiro, estão tirando a temperatura de passageiros após o desembarque em aeroportos internacionais como medida preventiva.
Procuradas pela reportagem, as assessorias de imprensa destes governos deram informações gerais sobre suas ações nos aeroportos, mas não detalharam os argumentos para adotar a medida a despeito da orientação do governo federal.
Processo contra a Anvisa
Outros Estados, como a Bahia, já recorreram à Justiça contra a Anvisa para conseguir medir a temperatura dos passageiros, em operações chamadas de barreiras sanitárias.
O governo baiano chegou a ter decisão liminar favorável para seguir com as medições em primeira instância, mas a Anvisa recorreu e venceu no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Agora, o Estado espera avaliação de recurso nas cortes superiores.
"Todos os países do mundo que tiveram êxito no controle monitoraram pessoas. Numa epidemia dessa, alguém com febre vai estar com coronavírus. Aí, você identifica, já dá máscara e já consegue rastrear e monitorar. Mas eles resistem e dizem que a medida não é eficaz", argumentou o governador Rui Costa (PT) ao jornal O Globo em reportagem publicada no dia 24.
Procurado pela reportagem, o governo de São Paulo, Estado que tem mais casos desde a chegada do coronavírus ao Brasil, afirmou não estar fazendo a triagem de passageiros com controle de temperatura por optar seguir a orientação do governo federal.
Mas afinal, o que argumentam o governo federal e a OMS para desaconselhar a medida?
Sintomas podem não aparecer no desembarque, argumenta pasta
Em email enviado à BBC News Brasil, o Ministério da Saúde afirmou, sobre a medição de temperatura, que "os Estados podem adotar as medidas de acordo com as suas prerrogativas" mas que a pasta "não orienta, pois a medida não é efetiva".
Já a Anvisa disse, em nota, que de acordo com dados avaliados pelo órgãos, "medir a temperatura de todos os passageiros não é eficaz e menos de 10% dos casos de covid-19 seriam identificados dessa forma".
"Isso porque a detecção só seria possível se o passageiro estiver manifestando os sintomas no exato momento do desembarque. Além disso, o aparecimento de febre pode ser influenciado por fatores específicos de cada pessoa e também pelo consumo de medicamentos", afirmou a Anvisa à reportagem.
A agência é a titular da fiscalização para fins sanitários nas áreas restritas dos aeroportos — aquelas em que só circulam passageiros, e não o público geral.
Por isso, os Estados que estão optando por fazer a medição de temperatura estão fazendo isso após o desembarque dos passageiros, ou seja, onde todos podem acessar, como os familiares que aguardam a chegada de um viajante.
No Distrito Federal, agentes do Corpo de Bombeiros do DF estão abordando todos os passageiros que chegam para checagem de temperatura, usando de câmeras térmicas, independente do local de origem — nacional ou internacional, com muitos casos de coronavírus ou não. O passageiro pode se recusar a passar pela triagem.
Já no Rio de Janeiro, que começou a medir temperatura de passageiros no dia 23, o foco está em pessoas chegando de voos internacionais. Aqueles que tiverem detectada temperatura maior que 37,8 ºC são orientados por agentes da Vigilância Sanitária do Estado a procurar uma unidade de saúde caso o quadro piore.
A Anvisa, por sua vez, afirmou à reportagem que mede a temperatura e faz entrevista sobre histórico de viagem apenas de passageiros com sintomas, o que é comunicado pela própria pessoa ou pelas empresas aéreas.
Uma vez feita a comunicação, o passageiro com quadro suspeito é encaminhado para atendimento médico no próprio aeroporto. Se confirmada a suspeita após exame, os casos são encaminhados para atendimento no município.
Para o público em geral, a Anvisa afirma que está agindo contra o coronavírus com comunicações feitas pelos comandantes das aeronaves sobre a saúde a bordo, inspeção da limpeza dos aviões e outras providências.
"Pessoas sem sintomas não devem ficar retidas no aeroporto, devem desembarcar e seguir as orientações que estão sendo dadas para a população", orienta ainda a Anvisa.
Líderes em casos medem temperaturas; OMS não recomenda
Fora do Brasil, também há divergências sobre a importância de medir a temperatura de passageiros em uma pandemia como a atual.
Dois dos países com maior número de casos, China e Itália adotam em seus aeroportos triagens como checagem de temperatura e formulários.
Já representantes de governos de países como Alemanha e Israel se posicionaram publicamente contra a adoção da medida, justificando sua posição com o argumento de que ela não é eficiente.
No início de fevereiro, os Estados Unidos anunciaram que adotariam o procedimento em 11 aeroportos para os quais voos chegando da China com americanos e residentes estavam sendo direcionados.
Segundo o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), agência vinculada ao Departamento de Saúde dos EUA, 46 mil pessoas passaram pela triagem até 23 de fevereiro. Destas, 11 foram direcionadas para testagem de coronavírus e apenas uma teve a doença confirmada — a relação entre o baixo número de casos detectados e volume de pessoas rastreadas foi alvo de críticas na imprensa americana.
Parte importante da crítica à opção de governos em averiguar a temperatura de passageiros vem do posicionamento de uma voz de peso: a da Organização Mundial da Saúde (OMS), que já se manifestou algumas vezes sobre a falta de suporte científico para tal.
"Não recomendamos porque não há evidência que haja eficácia. Em um momento como o atual, os governos começam a adotar todo tipo de medida. Cada país é livre, mas só pode ser recomendação nossa (da OMS) se tiver comprovação da eficácia", explica à BBC News Brasil por telefone Jarbas Barbosa, diretor-assistente da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço regional nas Américas da OMS.
Barbosa diz que, diferente da checagem de temperatura em passageiros que estão desembarcando, o tipo de caso no qual a triagem pode ser recomendada é em pontos de embarque onde há muitas infecções — por exemplo, como foi feito em Wuhan, cidade chinesa onde foi descoberto o novo coronavírus.
Nestes casos, se forem observados sintomas, a viagem da pessoa com suspeita pode ser adiada. O país de embarque também pode, assim, compartilhar informações com o de destino.
Mas, em aeroportos de chegada como em cidades brasileiras, que recebem passageiros de múltiplos destinos, a detecção de casos é muito mais improvável e exige gastos com equipamentos e equipes, aponta o diretor-assistente da Opas.
Além disso, diz Barbosa, a fase atual da covid-19 é outra: o problema de países como o Brasil não é mais a importação de casos.
"A medição de temperatura (no desembarque em aeroportos brasileiros) não teria evitado a chegada de casos. Hoje, o Brasil já tem transmissão comunitária. É mais importante preparar o sistema de saúde para casos graves e assegurar medidas de isolamento social."
"É melhor fazer essa triagem toda em um aeroporto ou nos serviços de saúde, que podem ter pessoas transmitindo o vírus umas para as outras?", questiona.
*O nome real do personagem foi trocado por um fictício a pedido do entrevistado, por motivos profissionais.