Da escravidão à autonomia em 50 anos: a história de renascimento dos índios yawanawá
Após expulsar missionários e seringueiros nos anos 1980, grupo reinventa tradições e ganha fama internacional com festivais xamânicos associados à ayahuasca.
Há menos de meio século, indígenas do povo Yawanawá viviam praticamente escravizados em seringais do Acre. Homens trabalhavam alcoolizados, jovens fugiam das aldeias, velhos e crianças morriam de malária, tuberculose e sarampo.
Pressionados por missionários evangélicos, muitos abandonaram tradições e a língua materna.
Hoje os Yawanawa são conhecidos por parcerias que mantêm com grandes marcas, por sua presença em fóruns internacionais e por festivais xamânicos em que recebem centenas de visitantes brasileiros e estrangeiros — muitos deles interessados em consumir ayahuasca, bebida sagrada para o grupo.
Ao longo dessa transformação, conseguiram a demarcação de seu território, reinventaram costumes e expulsaram seringueiros e missionários. A trajetória os tornou uma referência para povos indígenas vizinhos, que acabaram por seguir vários de seus passos.
"Quando cheguei para liderar o meu povo, em 2001, os Yawanawá estavam com a autoestima muito baixa", diz à BBC News Brasil Tashka Yawanawá, cacique da aldeia Mutum e um dos responsáveis pelo que chama de "renascimento cultural e espiritual" do povo.
Com 46 anos, Tashka nasceu quando os seringueiros ainda ocupavam o território yawanawá, uma trecho de Floresta Amazônica cortado pelo rio Gregório, próximo à fronteira com o Peru.
Os forasteiros chegaram à região há cerca de um século, durante o Ciclo da Borracha. Até então sem contato regular com o mundo exterior, os Yawanawá foram recrutados para extrair látex das seringueiras.
"Muitas pessoas começaram a cortar seringa para trocar por sal, açúcar, gêneros de primeira necessidade. Depois os Yawanawá começaram a perceber que os patrões queriam sempre mais produção", conta Tashka.
Com o tempo, os indígenas foram abandonando as roças e passaram a depender cada vez mais dos donos dos seringais, que cobravam preços exorbitantes por roupas e alimentos. Capangas armados fiscalizavam os locais de trabalho.
Eles acabaram se tornando escravos por dívidas, sujeitos ao alcoolismo, à prostituição e às doenças trazidas pelos seringueiros.
Enquanto os patrões seringalistas os apertavam de um lado, missionários evangélicos americanos da News Tribes Mission (Novas Tribos do Brasil) os cercavam do outro.
Líder da aldeia Nova Esperança, Biraci Júnior Yawanawá diz à BBC News Brasil que os patrões e os missionários trabalhavam numa espécie de parceria e estimulavam um "sistema individualista" entre os indígenas.
"Um nos explorava fisicamente, e o outro nos explorava espiritualmente, impondo sua religião, nos impedindo de usar nossas medicinas e de fazer cerimônias, porque era 'coisa do demônio'", ele diz.
Demarcação do território
O cenário começou a mudar quando, nos anos 1980, jovens yawanawá enviados à cidade para estudar — entre os quais o pai de Biraci Júnior, o cacique Biraci Brasil — entraram em contato com o incipiente movimento indígena acreano e com ONGs que o assessoravam, como a Comissão Pró-Índio do Acre. Informaram-se sobre seus direitos e voltaram às aldeias para por fim à exploração.
A mobilização levou à demarcação da Terra Indígena Rio Gregório, em 1983. Na época com 983 mil hectares, o equivalente a um terço do Estado de Alagoas, ela foi a primeira terra indígena demarcada do Acre. Em 2007, o território dobrou de tamanho.
Com a terra assegurada, os indígenas invadiram os barracões dos seringueiros para expulsá-los. Depois, foram atrás dos missionários.
Naquela altura, conta Biraci Júnior, os Yawanawá estavam tão habituados à presença dos religiosos que alguns protestaram, argumentando que os missionários haviam construído escolas e distribuíam remédios às comunidades. Coube a Biraci Brasil convencê-los de que tudo ficaria bem.
"Ele explicou que nós vivíamos antes dos missionários, tínhamos nossas medicinas, nossas plantas. Dizia que tínhamos que acreditar no poder delas, e a partir daí começou o trabalho de perguntar aos mais velhos, aos pajés, que estavam há tanto tempo adormecidos, para fazê-los puxar da lembrança o conhecimento, as rezas de cura, os cantos cerimoniais, e reavivar toda a espiritualidade", diz o indígena.
Depois que os Yawanawá expulsaram os missionários, outras comunidades nativas acreanas fizeram o mesmo.
Retomada da ayahuasca
Desse movimento de resgate também participaram sertanistas — servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) que trabalhavam junto às comunidades indígenas.
No artigo "Os outros da festa: um sobrevoo por festivais yawanawá e huni kuin", publicado em 2018 pela revista Horizontes Antropológicos, a doutoranda em Antropologia na USP Aline Ferreira Oliveira descreve como indígenas acreanos retomaram o consumo da ayahuasca.
A bebida, feita com duas plantas amazônicas, tem propriedades psicodélicas e havia sido proibida por misionários que viviam entre entre os nativos grupos. Nos anos 1990, indígenas que viviam nas cidades próximas às aldeias, como Rio Branco, Tarauacá e Cruzeiro do Sul, foram reapresentados a ela em encontros com sertanistas e adeptos de doutrinas associadas à ayahuasca, das quais a mais conhecida é o Santo Daime.
O Santo Daime foi fundado por um seringueiro negro, o migrante maranhense Raimundo Irineu Serra (1890-1971). Após conhecer a bebida por intermédio de indígenas acreanos no início do século 20, Irineu formulou uma corrente religiosa que mescla elementos cristãos, africanos, nordestinos e ameríndios.
Oliveira diz que os encontros em que os indígenas retomaram o contato com o chá tinham clima festivo e instrumentos musicais, duas características das religiões daimistas que acabaram absorvidas pelos indígenas em sua reapropriação da substância. Hoje muitos grupos indígenas romperam os laços com essas religiões e passaram a seguir ritos próprios em relação à bebida, à qual atribuem propriedades de cura e o poder de conectar os mundos físico e espiritual.
Trabalhos mais animados
Os líderes Yawanawá dizem que a absorção de elementos externos teve papel central na consolidação de seus rituais ligados à ayahuasca, bebida que eles chamam de "uni".
Biraci Júnior afirma que, no passado, os trabalhos xamânicos do povo eram restritos aos homens mais velhos. "Era uma coisa muito focada na medicina (tradicional), com cantos fortes de cura, e aquilo se tornou monótono para a juventude, era muito sem graça", ele diz.
Conforme os rituais incorporaram instrumentos antes inexistentes entre o povo, como o violão, o tambor e o maracá, "os trabalhos foram ficando mais animados, e com isso a juventude se despertou em querer aprender a língua, em querer cantar."
Hoje Biraci Júnior diz que vários adolescentes Yawanawá falam fluentemente a língua nativa e estão se preparando para se tornar pajés (líderes espirituais) — cenário impensável há algumas décadas.
Turismo xamânico
A animação dos rituais também tem ajudado a atrair turistas para as aldeias, atividade que se tornou a principal fonte de receitas da comunidade.
Desde o início dos anos 2000, os Yawanawá passaram a abrir seus festivais xamânicos para o público externo, no que foram seguidos por outros grupos indígenas acreanos. Hoje o povo realiza dois grandes eventos anuais, o Mariri e o Yawá.
Os visitantes vão às aldeias para uma semana de "canto, dança, cura, arte, expressão artística, manifestação cultural e espiritual, num ato de agradecimentos aos espíritos da floresta pelos bens que ela oferece", segundo a descrição no site da agência Grupos de Viagem, que organiza expedições a comunidades indígenas de vários países das Américas.
Nas cerimônias, eles têm acesso à ayahuasca e a outros remédios tradicionais, como o rapé (tabaco moído com cinza de árvores, assoprado pelas narinas), a sepa (resina usada em defumações para purificar o corpo) e a sananga (colírio para limpar a visão feito com raízes). O consumo de álcool e drogas ilícitas é proibido.
Biraci Júnior diz que, em sua maior edição, o festival Yawá reuniu 600 visitantes de 19 países na aldeia Nova Esperança. Cada um tem de desembolar R$ 2 mil pela experiência — dos quais, segundo o líder, R$ 1.400 cobrem custos com comida, transporte e serviços para os visitantes.
O fluxo de gente foi grande demais para a aldeia, que hoje tem 380 habitantes. Desde então, os organizadores têm limitado o número de participantes.
Nem todos os visitantes se adaptam às condições na aldeia. Tashka Yawanawá cita o caso de uma senhora que não conseguia defecar nas fossas usadas pela comunidade. "Tive que mandar buscar um assento de privada em Tarauacá", ele diz.
Outro caso envolveu um casal francês que viajou à aldeia em lua de mel. "Eles não conseguiam transar na rede e caíam no chão o tempo todo", conta, aos risos.
Melhorias das aldeias
Tashka diz que hoje a atividade economicamente mais vantajosa para a comunidade são vivências que agregam entre 20 e 40 visitantes nas aldeias por até três semanas. Há várias edições por ano, e cada uma gera até R$ 150 mil em receitas, segundo ele. O grupo também realiza rituais e vivências em cidades.
Os líderes dizem que o dinheiro do turismo é investido em melhorias físicas para a comunidade, como novas construções e poços d'água, e em sistemas de criação de porcos, galinhas e peixes. Os gastos são decididos em assembleia.
Segundo Biraci Júnior, antes dos festivais, os Yawanawá se deslocavam à cidade em pequenas canoas em viagens que levavam até cinco dias. "Hoje temos a possibilidade de comprar barcos com motor e levamos oito horas", diz.
Contato com indígenas nos EUA
Além dos instrumentos musicais, os festivais Yawanawá incorporaram outros elementos que o grupo conheceu em andanças fora das aldeias.
Tashka Yawanawá diz que os eventos foram inspirados em celebrações realizadas por outros povos nativos das Américas, como o "pow-wow", cerimônia em que indígenas norte-americanos recebem visitantes para cantar, dançar e celebrar a cultura local.
Ele participou da festa durante um intercâmbio de estudos na Califórnia, seguido por uma longa expedição do Canadá ao Chile, quando conheceu dezenas de comunidades nativas. Em sua última viagem ao exterior, em setembro, acompanhou a Marcha pelo Clima em Nova York junto da ativista sueca Greta Thunberg.
Parcerias com empresas
A primeira experiência internacional do líder foi financiada pela Aveda, empresa americana de cosméticos que há 27 anos compra sementes de urucum dos Yawanawá, usando-as em produtos para cabelo.
O grupo também já teve uma parceria com o designer Marcelo Rosenbaum, com quem desenvolveram uma linha de luminárias apresentada no Salão Internacional do Móvel do Milão, em 2013.
Em 2015, a grife Cavalera levou os indígenas à São Paulo Fashion Week, exibindo roupas com estampas inspiradas na arte do grupo. E, em 2018, foi a vez de a grife Farm lançar uma coleção de colares, brincos e bolsas com miçangas trabalhadas por mulheres Yawanawá.
As parcerias com empresas possibilitaram que vários membros do grupo fossem enviados a universidades brasileiras e estrangeiras. Segundo Biraci Júnior, hoje o povo tem 18 membros com ensino superior. Há duas médicas, uma cirurgiã dentista, além de graduados em Matemática, Biologia e Letras, entre outras carreiras. O próprio Biraci Júnior estudou Administração Agrícola no Havaí (EUA).
O líder diz que, quando enviam um jovem à cidade para estudar, os Yawanawá esperam que ele retorne e use os ensinamentos para o bem da comunidade, sem sobrepujar o conhecimento tradicional.
Segundo ele, quase todos os que se formaram voltaram e hoje dão aulas nas escolas indígenas, o que motiva os jovens a permanecer nas aldeias. As médicas atendem os pacientes em parceria com os pajés, aproveitando o conhecimento sobre remédios naturais.
Conquista de autonomia
Quase 40 anos após se livrarem dos missionários e dos seringalistas, os Yawanawá celebram as transformações em suas vidas. Antes sob o risco de desaparecer, eles agora somam cerca de 1.300 integrantes, dos quais 324 vivem no Peru e 132, na Bolívia.
"Hoje os Yawanawá estão nessa tão sonhada jornada da nossa autonomia", diz Tashka. Ele reconhece que, para chegar onde chegaram, contaram com o apoio de ONGs, sertanistas e parcerias que lhes permitiram capacitar seus integrantes.
Hoje, porém, diz que o grupo não depende de ninguém — nem de instituições privadas, nem de órgãos públicos. "Se a Funai acabar, seria o fim do mundo para muitos povos. Para nós, não faria a mínima diferença."
Isso, porém, não o impede de se preocupar com a situação dos outros grupos e de criticar o presidente Jair Bolsonaro. "Nenhum outro governo desrespeitou tanto os povos indígenas com o atual", afirma.
Tashka condena a promessa de Bolsonaro de que não demarcaria novas terras indígenas e a posição de que os índios devem ser inseridos na sociedade para que deixem de ser "miseráveis".
"Uma pessoa dessas não consegue ver a beleza, a arte, a ciência, a medicina que os povos indígenas carregam com eles. Só consegue ver pobreza", diz o líder.