"Democracia para sempre": Lula toma posse como presidente
Ao tomar posse, presidente exalta democracia, fala em reconstruir o país após quatro anos de governo de extrema direita e direciona críticas ao antecessor, que abandonou Planalto sem passar a faixa.O social-democrata Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse neste domingo (01/01), em Brasília, como o 39° presidente da República, assumindo um terceiro mandato 12 anos após deixar o poder e marcando a volta da esquerda ao Planalto após quatro anos de governo de extrema direita.
Durante a cerimônia de posse, Lula exaltou a democracia e o diálogo político em dois discursos distintos, defendeu o sistema eletrônico de votação e mencionou um cenário "estarrecedor" deixado por seu antecessor, Jair Bolsonaro, que liderou um governo marcado por turbulência política, social e sanitária.
"Sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais! Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para sempre!", afirmou Lula. "Chega de ódio, fake news, armas e bombas. Nosso povo quer paz para trabalhar, estudar, cuidar da família e ser feliz."
Num recado aos extremistas de direita que se recusam a aceitar o resultado das urnas e continuam a pregar um golpe militar, Lula disse que o "povo brasileiro rejeita a violência de uma pequena minoria radicalizada que se recusa a viver num regime democrático".
Em suas falas, Lula também direcionou duras críticas ao governo anterior, enumerando ações de Bolsonaro que desmontaram e desorganizaram políticas públicas. Ele ainda relembrou as táticas ilegais usadas por Bolsonaro para tentar se manter no Planalto e afirmou que a "atitude criminosa" do governo anterior durante o "genocídio" da pandemia "não deve ficar impune". "O que nos cabe, no momento, é prestar solidariedade aos familiares de quase 700 mil vítimas", disse.
"É sobre estas terríveis ruínas que assumo o compromisso de, junto com o povo brasileiro, reconstruir o país e fazer novamente um Brasil de todos e para todos", disse. "Se estamos aqui hoje é graças à consciência política da sociedade brasileira e à frente democrática que formamos ao longo dessa histórica campanha eleitoral. Foi a democracia a grande vitoriosa nesta eleição", declarou Lula, durante discurso no Congresso.
As falas conciliatórias e a exaltação do sistema eleitoral feitas por Lula contrastaram com o discurso de negação da política feito por Bolsonaro há quatro anos. À época, o ex-militar dirigiu suas falas à sua base radical, com frases incendiárias de efeito como "nossa bandeira jamais será vermelha".
"Reafirmo, para o Brasil e para o mundo, a convicção de que a política, em seu mais elevado sentido - e apesar de todas as suas limitações - é o melhor caminho para o diálogo entre interesses divergentes. Negar a política, desvalorizá-la e criminalizá-la é o caminho das tiranias", disse Lula, em outro recado claro a Bolsonaro e seus seguidores.
"Minha mais importante missão será honrar a confiança recebida e corresponder às esperanças de um povo sofrido que jamais perdeu a fé no futuro nem em sua capacidade de superar os desafios. Com a força do povo e as bênçãos de Deus, haveremos der reconstruir este país."
Assim como no discurso da vitória nas eleições, em 30 de outubro, Lula afirmou que enfrentou durante a campanha "a maior mobilização de recursos públicos e privados que já se viu" e "a mais objeta campanha de mentiras e ódio tramada para manipular e constranger o eleitorado brasileiro".
"A liberdade que sempre defendemos é a de viver com dignidade, com pleno direito de expressão, manifestação e organização. A liberdade que eles pregam é a de oprimir o vulnerável, massacrar o oponente e impor a lei do mais forte acima das leis da civilização. O nome disso é barbárie", disse.
Após ser empossado, Lula já tomou seu primeiro ato como presidente e assinou um "revogaço". Entre outras medidas tomadas por Lula neste domingo, estão o início de estudos para a retirada de estatais do processo de privatização, revogação de atos que incentivam garimpo na Amazônia e que facilitaram o comércio de armas de fogo durante o governo Bolsonaro.
"Estamos revogando os criminosos decretos de ampliação de acesso a armas e munições que tanta insegurança e tanto mal causaram às famílias brasileiras. O Brasil não quer e não precisa de armas na mão do povo."
Faixa presidencial
Com Bolsonaro ausente, a entrega da faixa presidencial foi feita por oito representantes do "povo brasileiro", simbolizados por uma criança da periferia, o cacique indígena Raoni, uma mulher, um metalúrgico, uma pessoa com deficiência, entre outros. Numa quebra de protocolo da transferência de poder, o antecessor, Jair Bolsonaro, não entregou a faixa. Ele abandonou a Presidência dois dias antes da posse de Lula e viajou aos Estados Unidos, após fracassar em suas tentativas de reverter ilegalmente o resultado da eleição.
Foi a primeira vez desde 1985 que um novo presidente não recebeu a faixa do antecessor. À época, o último presidente da ditadura, João Baptista Figueiredo, também deixou o Planalto sem participar da cerimônia de entrega da faixa ao primeiro presidente civil em 21 anos.
Em um segundo discurso, após receber a faixa, falando diretamente ao público que lotou a Esplanada dos Ministérios para acompanhar a posse, Lula agradeceu o apoio que recebeu na campanha.
"Minha gratidão a vocês, que enfrentaram a violência política antes, durante e depois da campanha eleitoral. Que ocuparam as redes sociais, e que tomaram as ruas, debaixo de sol e chuva, nem que fosse para conquistar um único e precioso voto", disse.
Para Lula, a posse também é um triunfo pessoal. O ex-presidente voltou ao poder pouco mais de quatro anos depois de ser barrado na disputa ao Planalto. Mas, depois de passar 580 dias na prisão, Lula não só obteve anulação das suas condenações como se cacifou como o favorito para vencer à Presidência em 2022, liderando uma bem-sucedida frente ampla que freou a extrema direita brasileira. Raras vezes um político brasileiro experimentou uma volta por cima tão dramática.
Na posse, o presidente disse que não será revanchista e também adotou um tom pacificador. "Vou governar para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim. Vou governar para todas e todos, olhando para o nosso luminoso futuro em comum, e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância. A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia."
A posse de Lula contou umteve esquema de segurança inédito e ocorreu sob o temor de potenciais atos de violência por extremistas de direita. No entanto, não foram registrados incidentes graves durante a cerimônia.
Pouco antes do juramento, Lula participou na Esplanada dos Ministérios do tradicional desfile no Rolls Royce presidencial, ao lado da sua mulher, Rosângela Silva, a Janja, e do vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB) e a esposa deste, Lu Alckmin. Durante a campanha, o vice Alckmin foi uma das principais faces da "frente ampla" que se formou em torno de Lula para derrotar Bolsonaro.
No Congresso, Lula e Alckmin prestaram um juramento constitucional. O texto é o mesmo para todos os presidentes e vices eleitos. De acordo com o juramento, os mandatários devem se comprometer a "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro". Os dois também assinaram um termo de posse e se tornaram oficialmente presidente e vice-presidente da República.
Chefes de Estado e governo estrangeiros
Pelo menos 65 delegações formadas por chefes de Estado, chefes de governo e ministros participaram da posse de Lula. Vinte chefes de Estado, quatro chefes de governo, dois vice-premiês e 11 ministros estiveram em Brasília. Entre eles, o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier; o da Argentina, Alberto Fernández; Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa; Colômbia, Gustavo Petro; o rei da Espanha, Felipe 6°.
Antes da posse, o gabinete de transição afirmou que a cerimônia iria superar o número de autoridades estrangeiras que vieram para a abertura dos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.
A presença de tantas autoridades estrangeiras neste domingo contrastou com a posse de Bolsonaro em 2019, que teve apenas dez chefes de Estado ou governo, com uma lista dominada por figuras de países com pouco peso político e econômico para o Brasil, mas cujos líderes eram ideologicamente alinhados com o então presidente, como o israelense Benjamin Netanyahu e o ultraconservador húngaro Viktor Orbán.
Em retrospecto, o esvaziamento da posse de Bolsonaro já simbolizava o isolamento que o país enfrentaria nos quatro seguintes, marcados por crises ambientais e distanciamento de antigos parceiros, especialmente na Europa. Lula abordou em suas falas neste domingo o isolamento do Brasil, afirmando que o país voltará a ter protagonismo, especialmente em questões climáticas.
"Os olhos do mundo estiveram voltados para o Brasil nestas eleições. O mundo espera que o Brasil volte a ser um líder no enfrentamento à crise climática e um exemplo de país social e ambientalmente responsável, capaz de promover o crescimento econômico com distribuição de renda", disse Lula.
"A relevância da eleição no Brasil refere-se, por fim, às ameaças que o modelo democrático vem enfrentando. Ao redor do planeta, articula-se uma onda de extremismo autoritário que dissemina o ódio e a mentira por meios tecnológicos que não se submetem a controles transparentes", completou.
Participação do presidente alemão
Na posse de Lula vieram líderes de países que mantiveram distância de Bolsonaro e que agora esperam se reaproximar do Brasil, entre eles o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier. O chefe de Estado alemão tivera um encontro amistoso com Lula na véspera.
Falando a jornalista alemães, incluindo a DW, Steinmeier, disse que "é bom saber que o Brasil está de volta aos palcos internacionais".
"Aqui no Brasil não começa apenas um novo ano, mas também uma nova era política. Fico feliz de poder estar na posse do presidente Lula em Brasília. O Brasil vive tempos difíceis. E o presidente eleito vai assumir essa responsabilidade neste momento difícil. Nós precisamos do Brasil, precisamos da liderança política brasileira, que o país desempenhe o seu papel. E não apenas na economia, como também na proteção climática global. E eu fiquei feliz de constatar que o presidente eleito quer desempenhar esse papel com o Brasil. É bom estar de volta ao Brasil. É bom saber que o Brasil está de volta aos palcos internacionais."
Steinmeier chegou a Brasília na véspera para participar da cerimônia de posse, marcando uma reaproximação entre a Alemanha e o Brasil após quatro anos de distanciamento e crises durante o governo de Jair Bolsonaro.
Entre os decretos assinados neste domingo por Lula logo após a posse, estava uma medida para restabelecer o Fundo Amazônia, que conta com recursos da Alemanha e Noruega e que ficou paralisado durante o governo Bolsonaro. No mesmo dia, o presidente Steinmeier anunciou que a Alemanha irá liberar 35 milhões de euros para o fundo, como um sinal imediato de cooperação com o governo Lula . "O governo alemão decidiu que 35 milhões de euros, do orçamento alemão, serão liberados para o Fundo Amazônia. Esse é um sinal que queremos mandar já", disse Steinmeier.
A participação na posse não marcou o primeiro encontro entre Lula e Steinmeier. Os dois já se encontraram em outras ocasiões, como numa viagem de Steinmeier ao Brasil em 2006, quando o alemão ocupava o cargo de ministro do Exterior do governo da ex-chanceler federal Angela Merkel.
Em 2012, quando Lula já havia deixado a presidência e Steinmeier passou a ser líder da oposição ao segundo governo Merkel, os dois participaram em Berlim de um debate promovido pela Fundação Friedrich Ebert, entidade ligada ao SPD, a sigla do atual presidente alemão.
Em 2015, quando Steinmeier havia voltado a ocupar o posto de ministro, eles se encontraram novamente, desta vez no Brasil.
O PT e SPD mantêm laços há décadas e Lula manteve relações amistosas com figuras históricas da legenda alemã como Willy Brandt, Gerhard Schröder, Johannes Rau e Helmut Schmidt.