Testes de HIV em concursos públicos: o que pensar disso?
Mais de 30 anos depois do primeiro caso de HIV/Aids registrado no Brasil, uma polêmica antiga ainda persiste: a realização obrigatória do teste de HIV em concursos públicos, em particular nas Forças Armadas.
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Ouvidos pela BBC Brasil, Exército, Marinha e Aeronáutica dizem que a lei está do seu lado e que ela permite a realização dos testes como forma de garantir a saúde plena de seus militares.
Mas indivíduos, grupos de defesa de direitos e especialistas argumentam que a medida é discriminatória e que os militares estariam ignorando avanços na medicina que permitem que soropositivos sejam capazes de cumprir normalmente as tarefas e exigências do trabalho.
Um bom quadro dessa polêmica pode ser traçado pelo histórico das ações na Justiça questionando a legalidade do teste.
Levantamento preliminar feito pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão a pedido da BBC Brasil lista pelo menos 29 recomendações do Ministério Público Federal para suspender a testagem obrigatória em concursos públicos, além de ações em vários Estados. Só no Rio de Janeiro, foram pelo menos três casos nos últimos meses.
Em um deles, o candidato disputava uma vaga de professor de Filosofia em um concurso de serviço técnico temporário do Exército e questionava a exigência do teste. A Justiça Federal entendeu que o Exército estava certo e agia com o intuito de preservar a saúde de seus integrantes. O Ministério Público Federal recorreu.
Dois outros casos envolvem pessoas que questionam a exigência, pela Marinha, dos exames negativos de HIV para ingresso ou promoção. O militar M.F.S., por exemplo, foi excluído da disputa pelo posto de oficial intendente por ser HIV positivo. Diagnosticado como portador assintomático, ele foi à Justiça, perdeu na primeira instância e recorreu ao Tribunal Regional Federal.
Muitos casos nem chegam à Justiça. X., de 21 anos, militar da Aeronáutica, fez o concurso em 2013, seu teste deu negativo, e o rapaz foi aprovado. Meses depois, o teste de HIV deu positivo. X. relatou ao superior imediato sua condição de soropositivo e iniciou o tratamento, mas até hoje não contou que é homossexual e vive com um rapaz.
"Ele começou a me perguntar se eu andava em más companhias, com drogados e homossexuais, aí não contei. No alojamento, um colega berrou que eu era B 24 (código do HIV na Classificação Internacional de Doenças), então todo mundo já ficou sabendo", reclama X., que falou à BBC Brasil na condição de anonimato.
X. disse que houve uma tentativa de afastá-lo do trabalho, mas que o serviço do Hospital da Aeronáutica, onde ele é atendido, não permitiu. O rapaz está de licença médica e deve voltar ao quartel em janeiro.
O estudante de engenharia Alan Pereira Mondego de Souza, de 23 anos, estava indo bem no concurso da Marinha em 2013, mas foi excluído quando seu teste de HIV deu positivo. "Acabei abrindo mão de um direito porque consultei alguns advogados, e eles me disseram que era muito difícil ganhar", diz Alan, que desistiu de levar o caso à Justiça.
Graças ao tratamento, a presença do HIV em seu corpo é mínima - ele tem o que os especialistas chamam de carga viral indetectável. Nunca desenvolveu a doença, toma um comprimido diariamente, tem um namorado fixo e está em boas condições de saúde, levando uma vida normal.
"Meu médico já me disse que posso morrer de qualquer outra coisa, de bala perdida, de atropelamento, mas não disso", comemora.
Exigência
Organizações que atuam na área de HIV/Aids, como a Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids) e o Pela Vidda, dizem que o teste não pode mais ser usado com instrumento de avaliar a saúde ou a capacidade de um candidato argumentando que a expectativa de vida dos soropositivos aumentou muito com os avanços do tratamento, oferecido de graça na rede pública de saúde.
"Essa lei (7.670/88, segundo a qual o HIV/Aids é justificativa para que o militar seja retirado da ativa) é de 1988, do tempo em que o panorama de HIV/Aids era outro, e não pode continuar regendo os destinos das pessoas", afirma a advogada Patrícia Diez, do grupo Pela Vidda/Niterói.
"Os portadores de HIV, principalmente os assintomáticos, conseguem ter vida normal, com alta capacidade produtiva. O Brasil é signatário de vários tratados internacionais proibindo a testagem obrigatória e a discriminação do portador de HIV."
Na maioria dos concursos públicos, à exceção dos concursos militares e policiais, a exigência do teste de HIV vem caindo graças a um conjunto de leis e notas técnicas que permitem caracterizar como ilegal e discriminatória a testagem obrigatória.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, proíbe qualquer tipo de discriminação. A Lei 12.984, de junho de 2014, tipifica como crime recusar ou dificultar a inscrição do portador de HIV em qualquer escola ou trabalho. Segundo essa mesma lei, divulgar que alguém é portador de HIV, contra a vontade da pessoa, pode ser considerado crime.
Nota técnica do Ministério da Saúde também se posiciona contra a exigência do teste. Parecer do Conselho Federal de Medicina de 2013 considera a exigência do exame não só antiética como contrária a convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.
As Forças Armadas, porém, apelam para uma legislação própria, mantêm o teste e, representadas pela Advocacia Geral da União (AGU), têm vencido alguns processos graças à lei 7.670/88, segundo a qual o HIV/Aids é justificativa para que o militar seja reformado e saia da ativa.
Essa lei embasa a decisão mais citada em casos do tipo, proferida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Sebastião Reis Júnior em março de 2014. O ministro afirma que há jurisprudência no STJ a respeito do tema e reitera o entendimento de que o militar portador de HIV, em qualquer estágio de desenvolvimento da doença, é considerado incapaz para vida militar e tem direito de ser reformado.
Decisões
Decisões com entendimentos distintos têm sido proferidas pelo país. Em fevereiro de 2012, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Pernambuco, determinou que uma candidata portadora do HIV fosse mantida no concurso da Marinha.
Em ação parecida, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no Distrito Federal, anulou exigência de realização de teste HIV num edital para o concurso do Exército. A AGU, em nome do Exército, recorreu alegando que a vida militar tem peculiaridades que exigem boa forma física, e com isso pessoas portadoras de moléstias graves enfrentariam, em uma operação militar, condições adversas como a carência de medicamentos e estresse.
A AGU apontou ainda que traumatismos de guerra oferecem risco de contaminação aos demais combatentes em caso de ferimento de um combatente infectado. "Tais particularidades da vida militar justificam a exigência do teste de HIV, não representando um atentado contra o princípio da isonomia. A União entende que só há rompimento da igualdade quando o tratamento diferenciado é carente de razões que o justifiquem."
"E, no caso específico, tal distinção se mostra justificada, razoável e necessária", argumentou a AGU ao recorrer. Em junho de 2015, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski manteve a exigência do exame até que o caso seja julgado pelo plenário - o que ainda não ocorreu.
Ouvidos pela BBC Brasil, Exército, Marinha e Aeronáutica reforçaram a argumentação da AGU, afirmando que a vida militar tem especificidades que exigem plena saúde e que as Forças Armadas seguem legislação particular para admissão.
"A exigência de submissão dos candidatos a testes para verificação do vírus HIV nos exames admissionais para a carreira militar se coaduna com a missão precípua das Forças Armadas disposta no artigo 142 da Constituição da República", afirmou o contra-almirante Flávio Augusto Viana Rocha, diretor do Centro de Comunicação Social da Marinha.
O Centro de Comunicação Social da Aeronáutica informou que não exige a apresentação do teste, mas verifica essa condição na inspeção de saúde para o ingresso.
Aeronáutica e Exército citaram a legislação e a jurisprudência que estabelecem o HIV/Aids como motivo de reforma militar. Para o Exército, é preocupante que o cidadão recém-ingresso na Força seja reformado.
O Exército informou ainda que a profissão militar exige disponibilidade permanente, mobilidade geográfica e vigor físico para atividades de grande esforço, como acampamentos, marchas de longa distância e exercícios de tiro, que exigem boa saúde. Para o Exército, determinadas patologias podem impedir atividades obrigatórias e trazer risco para a saúde do próprio militar.
Para o especialista no tratamento de HIV/Aids e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) Esper Kallás, os argumentos sobre possíveis limitações físicas de portadores de HIV parecem ignorar avanços notórios da medicina no tratamento da infecção.
"Está na hora de as Forças Armadas reverem seus conceitos sobre o HIV. Temos vários exemplos de pessoas que vivem com o vírus por muito tempo e conseguem desfrutar plenamente da vida, tanto em termos físicos como intelectuais", afirmou Kallás, que é professor da USP e vice-coordenador do comitê de retroviroses da SBI.
Discriminação?
Sobre especificidades da vida militar e risco de contaminação de outros soldados, Kallás afirmou que não há perigo maior que na vida em sociedade, já que o HIV se transmite pela relação sexual ou pelos fluidos do corpo, como sangue, esperma e leite materno. "Então um HIV positivo que toma um tiro na rua não vai ser atendido? Não há motivo para esse temor", afirma.
O procurador federal dos Direitos do Cidadão, Aurélio Rios, afirmou à BBC Brasil que, no entendimento do Ministério Público Federal, não há decisão definitiva sobre o teste de HIV em concursos militares. Pelo contrário, disse acreditar que o STF, que já permitiu a união homossexual, em breve aceitará a argumentação de que a exigência do teste é discriminatória e, portanto, afronta a Constituição.
"O Exército mais poderoso do mundo, o dos Estados Unidos, já retirou a exigência de testagem de HIV. Quero deixar claro que não somos contra os testes físicos. Pelo contrário, as Forças Armadas têm todo o direito de exigi-los, inclusive do portador de HIV. Se ele não passar, que seja reprovado. Mas não aceitamos que esse indivíduo seja barrado do concurso sem nem poder fazer o teste físico", afirmou Rios.
O procurador também contesta o uso da lei 7.670/88, que permite reformar o militar soropositivo. Rios diz que o objetivo da lei é dar um benefício ao soropositivo, o acesso à Previdência, mas que ela vem sendo usada com o objetivo de negar um direito.
"Toda essa argumentação encobre na verdade uma forma de discriminação velada: estou excluindo essa pessoa porque ela é gay, ou é provavelmente gay. Não é dito de forma explícita, mas, no fundo, é disso que se trata. A legislação já reconheceu que toda forma de amor precisa ser respeitada e que o homossexual tem direito a benefícios do companheiro. A questão do teste de HIV é agora uma questão de tempo", afirma.