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"Discurso conservador desempodera homens e mulheres ao mesmo tempo"

20 jun 2024 - 06h06
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Em livro que sintetiza mais de 20 anos de pesquisa, economista Regina Madalozzo defende a importância de uma abordagem econômica pela ótica feminista."Em média, as mulheres recebem em torno de 15% a menos do que os homens no Brasil para um mesmo cargo", afirma a economista Regina Madalozzo no recém-lançado livro Iguais e Diferentes - Uma jornada pela economia feminista. O dado é resultado de mais de duas décadas de pesquisa dela, que se autodefine como economista feminista.

Mas não necessariamente a culpa é das empresas, no entendimento da pesquisadora. Ela observa que, muitas vezes, gestores nem sequer sabem que estão perpetuando uma desigualdade de gênero — pagam menos para mulheres porque, numa candidatura de emprego, elas já chegam com um salário inferior para ser coberto pela nova proposta, por exemplo.

É um ciclo vicioso que precisa ser desfeito. E a receita está na conscientização, defende a economista. "A gente vê que mulheres ganham menos do que os homens, a gente percebe a naturalização disso, e tudo acaba resultando na desigualdade que homens e mulheres têm na esfera econômica", diz ela, em entrevista à DW.

"[…] Precisamos fazer com que essa segregação ocupacional diminua porque a troca, a multiplicidade, isso não só torna as empresas mais competitivas como amplia as possibilidades das pessoas, fazendo com que tenhamos mais igualdade de gênero", prossegue.

PhD em economia pela Universidade de Illinois, Madalozzo é consultora e palestrante. Depois de duas décadas de carreira acadêmica, agora atua como pesquisadora da Sociedade de Economia da Família e do Gênero (Gefam), que congrega estudiosos de diversas instituições.

DW: O que é, afinal, a economia feminista?

Regina Madalozzo: É uma forma de olhar para a economia sob o prisma e considerando as questões de gênero. É, ao mesmo tempo, uma área dentro da economia e um jeito de olhar diferente para todas as outras áreas. Você tem a economia feminista quando fala de macro ou microeconomia, de mercado de trabalho, mas além disso a economia feminista se preocupa muito com as questões dos trabalhos não-remunerados, o trabalho reprodutivo como a economia do cuidado, [serviços] muitas vezes relegados a uma segunda categoria dentro da economia tradicional. É um jeito de olhar para a economia que considera que as relações vão para além das entre dois indivíduos, são uma relação cultural com as decisões que as pessoas tomam.

Toda decisão […] acaba por permitir para algumas pessoas o que não permite para outras. E, nesse sentido, vem o feminismo, as questões dos feminismos e das relações de poder que muitas vezes fazem com que seja mais difícil para as mulheres ou para as pessoas negras ou LGBTQIA+ terem as mesmas condições daquilo que é considerado o homem econômico, o protótipo de homem branco com poder de decisão racional o tempo inteiro.

Você cita no livro o episódio em que a hoje senadora Damares Silva, quando ministra do governo Bolsonaro, falou sobre meninos vestirem azul e meninas vestirem rosa, uma releitura da velha ideia de que "lugar de mulher é na cozinha". De que forma declarações públicas como esta comprometem a luta por equidade de gênero?

Eu me dediquei [nesta parte do livro] a trabalhar a questão da segregação ocupacional, importante dentro da economia porque sabemos que as pessoas, independentemente de gênero, elas fazem escolhas profissionais. Só que a escolha parece ser livre de qualquer outro componente cultural e não é. Por exemplo, desde pequenas as meninas veem que mulheres não são engenheiras e a elas não é oferecido que brinquem com brinquedos que possam incentivá-las a pensar num raciocínio lógico. Elas não vão desenvolver esse lado e passam a achar que a habilidade delas não é suficiente para desempenhar determinados trabalhos.

Quando vemos uma ministra falando que meninos vestem azul e meninas vestem rosa é como se a gente limitasse as escolhas, dando poder para uma cultura que acha que existem lugares que os homens ocupam e lugares que as mulheres, simplesmente pelo gênero delas e deles. Isso é ruim tanto para as mulheres quanto para os homens, é ruim opara todo mundo. […] Tal discurso conservador desempodera homens e mulheres ao mesmo tempo, compromete em grande medida o que a gente pensa a respeito da equidade de gênero. Tornamos as coisas como são porque você nasceu mulher ou você nasceu homem.

Houve retrocesso no Brasil nos últimos anos quanto à igualdade de gênero, em termos práticos?

A resposta para isso são alguns movimentos muito claros de que até mesmo as discussões nas quais teríamos avanço estão sendo barradas e que algumas possibilidades de retrocesso graves podem estar a caminho. No ano passado voltou-se a discutir a legalidade do casamento homoafetivo, e seria um retrocesso imenso a gente tornar não legal o casamento homoafetivo no Brasil.

Da mesma forma, o projeto de lei que estamos discutindo nas últimas semanas, a respeito do tempo máximo da viabilidade fetal para abortos que são permitidos pela legislação […] aponta para um movimento muito conservador e que vai contra as medidas de igualdade de gênero. […] Isto pode conduzir a gente para um ambiente muito hostil às mulheres, às pessoas LGBTQIA+. Isso prejudica muito a igualdade de gênero. […] Temos um caldo cultural que faz com que algumas pessoas possam acabar com menos direitos do que elas tinham. Isso, sim, é um retrocesso.

No seu livro você discute a licença-maternidade. Uma licença parental, ou seja, que pudesse ser dividida de modo igual entre homem e mulher, não seria uma maneira de dar mais igualdade profissional para ambos os gêneros, respeitando, é claro, as questões biológicas inerentes à mulher?

A licença parental é aquela que você dá para a família e a família decide como vai alocá-la. É superinteressante, mas precisamos lembrar que há dentro da cultura um aspecto complicado: infelizmente, a história mostra que mesmo em países com mais igualdade de gênero, mulheres tiram a licença mais tempo do que os homens […]. A licença parental é excelente desde que as pessoas sejam educadas a usufrui-la. E que não seja uma licença em que aquele que ganha menos fica fora [do mercado de trabalho], porque aí se perpetua essa diferença ao longo do tempo.

Mas equiparar as licenças não seria uma maneira de incentivar homens a serem mais presentes nos cuidados com a criança?

Sim. No Brasil existem empresas que voluntariamente, embora a gente tenha uma diferença grande entre licença-maternidade e paternidade, estenderam bastante a licença-paternidade. E o que sabemos é que os homens que tiraram a licença [expandida], que não é obrigatória, ficaram mais conectados com os filhos e passaram a ter um relacionamento diferente com as questões de cuidado. Isso pode fazer muita diferença no tratamento de questões de gênero […], fora o benefício que há para as crianças na relação com esse pai. É muito importante que comecemos a pensar no papel dos pais, dos homens, no papel de cuidado.

Em termos de políticas públicas, qual medida seria mais urgente para garantir que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens nos aspectos econômicos? O que falta para chegarmos lá?

Não tenho resposta fácil para isso. Se tivesse uma mais urgente seria a gente ter o reconhecimento de que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres. Esse reconhecimento, embora pareça muito amplo, é no sentido de que ainda sofremos um tratamento muito desigual. […] A gente vê que mulheres ganham menos do que os homens, a gente percebe a naturalização disso, e tudo acaba resultando na desigualdade que homens e mulheres têm na esfera econômica.

Várias medidas são importantes: mais mulheres na política, mais mulheres sendo eleitas, mais mulheres tomando decisões a respeito do que acontece com as mulheres. Precisamos que as leis sejam feitas e votadas também em benefício da equidade de gênero. E mais mulheres com possibilidade de trabalhar onde elas quiserem: na engenharia, na economia, na matemática… E mais homens na enfermagem, na educação… Precisamos fazer com que essa segregação ocupacional diminua porque a troca, a multiplicidade, isso não só torna as empresas mais competitivas como amplia as possibilidades das pessoas, fazendo com que tenhamos mais igualdade de gênero.

Deutsche Welle A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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