'É cada vez mais difícil acreditar que Bolsonaro chegue ao final do mandato', vê historiador José Murilo de Carvalho
Membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências diz Bolsonaro se preocupa mais com reeleição do que com crise sanitária; para o intelectual, situação do presidente é 'muito frágil'.
A gravidade da crise causada pelo novo coronavírus no Brasil ficou mais evidente quando o país atravessou pela primeira vez, na terça-feira (19/05), a barreira de mil mortes por covid-19 registradas em 24h, segundo dados oficiais.
O Brasil é o terceiro país do mundo com mais casos detectados de coronavírus (271.885), depois dos Estados Unidos e da Rússia, e o sexto em número de mortes associadas à pandemia, com 17.983 até terça-feira, segundo a Universidade Johns Hopkins.
A escassez de testes para detectar infecções, no entanto, reforça a suspeita de que o número real de vítimas seja consideravelmente maior do que as estatísticas oficiais mostram.
O cenário já seria suficiente para causar dificuldades ao presidente Jair Bolsonaro, que insiste em minimizar a ameaça da doença. Mas o Brasil também é um caso especial porque, simultaneamente à crise da saúde, passa por uma grave crise política e econômica, alerta o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho.
"É uma tempestade perfeita", diz Carvalho, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências, em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, em entrevista por telefone desde sua casa no Rio de Janeiro.
O intelectual alerta que parece cada vez mais difícil para Bolsonaro — que assumiu o cargo em janeiro de 2019 com um discurso anti-sistema, militarista e de extrema direita — terminar seu mandato presidencial de quatro anos.
Veja os principais trechos da entrevista.
BBC - A crise política no Brasil não é nova: pode-se dizer que começou em 2014 com o escândalo de corrupção na Petrobras. A situação piorou no governo Bolsonaro, em meio à pandemia?
José Murilo de Carvalho - De fato, a crise já começou no primeiro governo da presidente Dilma Rousseff.
Foi uma crise econômica que acabou se transformando em uma crise política. A crise continua e piorou em meio à pandemia. Tenho 80 anos e desde a redemocratização nunca tivemos uma situação tão crítica.
E, principalmente, sem muita perspectiva de melhoria, devido a essa combinação de várias crises.
Estou muito pessimista com a situação no país.
BBC - Outros governantes do mundo foram criticados por lidar com a crise do coronavírus, começando com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O que torna o caso de Bolsonaro especial?
Carvalho - Se olharmos para os outros presidentes ou primeiros-ministros, a imagem de muitos, mesmo na América Latina, melhorou depois que eles enfrentaram o problema.
Eu acho que Bolsonaro é uma exceção na América Latina: sua imagem piorou em vez de melhorar. Todos os nossos vizinhos estão preocupados com o Brasil. E acho que a imagem internacional do país, graças ao presidente, piorou muito nessa visão quase servil a Trump e uma política em relação à China que é suicida do ponto de vista econômico.
Portanto, não apenas internamente, mas também externamente, a situação brasileira é excepcional, no sentido de ser pior do que em outros países.
BBC - O próprio Bolsonaro cavou essa situação? Quão difícil será para ele sair da crise?
Carvalho - Bolsonaro era desde o início uma figura controversa. Pessoalmente, ele pensou que poderia ter tempo. Uma campanha política é uma coisa. Depois de eleito, ele pode mudar de posição para se adaptar às circunstâncias do governo.
Mais de um ano depois de assumir, Bolsonaro mostra que continua na mesma posição do momento da eleição. Com isso, a política foi totalmente desastrosa em várias áreas.
As principais áreas do desastre são as próprias relações exteriores, com um ministro totalmente obscurantista, a educação, com um ministro ainda pior, que nem sabe escrever corretamente o português, e o meio ambiente.
Eu achava que este fosse o tripé mais fraco do governo. Mas, agora, com a resposta política em relação à epidemia, temos quatro problemas.
A única coisa que recentemente mostrou alguma melhora na imagem do governo foi a decisão de conceder uma espécie de salário extra de 600 reais para a população mais pobre. Fora isso, talvez o presidente não atinja 30% de apoio entre a população. É uma situação muito negativa.
Os que mais reagem a este cenário são os estratos mais instruídos da população. Mas o desemprego também afeta profundamente os mais pobres. Então, o que se pergunta atualmente no Brasil é se é hora ou não de iniciar um processo de impeachment.
BBC - Qual é a sua resposta para essa pergunta?
Carvalho - No caso de Dilma Rousseff, houve um grande debate sobre se aquele era um impeachment ou um golpe político.
Na época, ficou claro para mim que o processo não foi feito fora da lei: o impeachment é um julgamento ao mesmo tempo na Justiça e na política. Isso está na própria legislação. É claro que os presidentes que não têm apoio no Congresso são vítimas de impeachment, enquanto os outros não.
Houve (propostas de) processos de impeachment contra Fernando Henrique Cardoso, Lula e Temer; nenhum desses processos foi adiante porque eles tinham uma base parlamentar sólida. Dilma não tinha, Collor também não e agora Bolsonaro não.
Acho que o que está faltando no momento é que, devido à pandemia, não há movimento importante nas ruas, algo que os deputados e senadores levam em consideração ao votar em um impeachment. Nesse sentido, há uma hesitação de várias pessoas.
Eu acho que é uma posição correta. Ainda é necessário amadurecer um pouco a situação, porque derrubar um processo de impeachment fortaleceria o presidente.
Mas acho que, sem mudanças, será difícil para o presidente concluir seu mandato. A presença dos militares no governo não significa que as Forças Armadas estejam governando. Mas a posição desses militares no governo está se tornando cada vez mais desconfortável, porque o fracasso do governo com a presença de vários generais se reflete na imagem das Forças Armadas.
As Forças Armadas, o Exército, usa sempre dois argumentos: que a Constituição dá às Forças Armadas, digamos, a tarefa de garantir a harmonia dos poderes - o que significa que a Constituição lhes dá um papel político e, às vezes, as pessoas eles esquecem disso.
E também que a imagem das Forças Armadas entre a população em geral é muito boa. Entre a classe média educada, há uma clara oposição à presença militar, mas a maioria da população a apoia. Portanto, há um jogo de xadrez complicado.
BBC - As Forças Armadas são o apoio mais importante que o governo Bolsonaro tem hoje?
Carvalho - Não, ele ainda tem o apoio de um eleitorado fanático, mas que hoje, segundo pesquisas de opinião, significa 30 e poucos por cento da população.
A presença dos militares no governo de alguma forma dá o aval das Forças Armadas. Mas a situação desse pessoal militar está se tornando cada vez mais desconfortável. Distingo a presença dos militares no governo e na corporação militar. O fraco desempenho do governo pode estar refletindo na corporação militar. E isso, para a corporação militar, não é uma coisa boa.
Portanto, há uma tensão entre o fato de haver militares no governo e de que não é um governo das Forças Armadas. Mas é uma situação em que as fronteiras são muito tênues. Esse é outro fator a ser levado em consideração em uma situação eventual que pode levar a um processo de impeachment.
Também existem vários pedidos de renúncia de Bolsonaro. Ele certamente não fará isso. Mas o fato de haver um general como vice-presidente também é para as Forças Armadas uma espécie de garantia de que a oposição não voltará ao poder caso Bolsonaro saia.
BBC - O próprio Bolsonaro participou de recentes manifestações em favor de um golpe militar. O que você acha que as Forças Armadas brasileiras podem fazer se o presidente continuar com essa atitude?
Carvalho - O comandante do Exército reagiu dizendo que as Forças Armadas não seriam instrumento de nenhum golpe. Eu acho que a possibilidade disso acontecer não é muito grande. As Forças Armadas não vão se envolver em algo que signifique uma quebra nas regras constitucionais, a menos que haja grandes manifestações no país.
Mas as manifestações políticas agora são pequenas.
Portanto, e essa é uma posição otimista, não vejo a possibilidade de a corporação militar apoiar uma quebra das regras constitucionais.
BBC - Mas o senhor considera que a situação de Bolsonaro é delicada e que ele corre o risco de não terminar seu mandato se a crise continuar?
Carvalho - Definitivamente. É muito frágil e não há sinal de que ele pretenda mudar seu comportamento.
Desde o início, ele se preocupa fundamentalmente com a reeleição. É por isso que sua política é contrária ao que a Organização Mundial da Saúde recomenda em relação ao tratamento da epidemia: porque isso tem sérias consequências para a economia, como em todos os países.
E aqui, seguindo Trump, ele vai contra as recomendações dos médicos e de seus próprios ministros: ele já perdeu dois ministros da Saúde porque está em confronto com eles, devido a medidas que a OMS e todos os governadores aqui no Brasil seguem.
Ele está antagonizando os governadores, com o sistema de saúde, com a ciência... Isso o coloca em uma situação muito frágil no momento e ninguém pode prever quando essa crise terminará. Acho que está ficando cada vez mais difícil imaginá-lo chegando ao fim de seu mandato, que ainda tem dois anos e meio.
BBC - A questão é se Bolsonaro é o pivô da crise política brasileira ou uma consequência dela...
Carvalho - Ele foi eleito por dois grupos de pessoas: aqueles que o apoiaram, que na eleição eram talvez 35% da população, e pessoas que votaram nele para impedir que o candidato do Partido dos Trabalhadores ganhasse.
Com sua atuação no primeiro ano, as pessoas que votaram para evitar o candidato ao PT estão retirando seu apoio, que agora é de cerca de 30%. E ele está perdendo na política de saúde.
Nesse sentido, a fragilidade de seu governo é muito grande.
O ministro da Justiça, que era muito mais popular do que ele no governo, (o ex-juiz Sergio) Moro, saiu sob pressão do presidente em relação às investigações de seus filhos. Isso para um presidente que teve a moral como pilar de sua campanha também é muito debilitante.
Ele não tem mais a imagem que transmitiu de alguém que quer combater a corrupção. Agora, apenas os mais fanáticos acreditam nisso.