'É como ir para a guerra sem nenhuma arma': médicos e MP relatam caos no Amazonas com a pandemia
Estado tem o triplo da média nacional de casos. Médicos dizem 'rezar' e afirmam que suspeitos 'estão contaminando todo mundo'. Autoridades questionam onde verbas federais estão sendo investidas.
"Sempre houve déficit no Amazonas, sempre faltou vaga. Sou formada há mais de 10 anos e sempre vi pacientes nos corredores das emergências porque não tem lugar nas enfermarias", conta uma médica que atua em emergências, UTIs e em ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Manaus.
Hoje, a profissional está na linha de frente do combate ao novo coronavírus no Estado.
"A piora é substancial. Sem macas, agora os pacientes ficam em cadeiras nos corredores das emergências. São pessoas com suspeita de covid-19 contaminando todo mundo. A gente não sabe quem tem, quem não tem, porque até os exames estão em falta", diz.
"A equipe de enfermagem também é a que mais sofre: eles não têm equipamentos de proteção individual. Não têm, simplesmente não têm."
A cena narrada pela médica é repetida por outros quatro profissionais de saúde do Amazonas ouvidos pela BBC News Brasil ao longo da semana.
O Estado tem a pior concentração de casos confirmados do Brasil: 323,7 a cada milhão de habitantes (quase o triplo da média nacional: 111/milhão).
Além de hospitais superlotados e falta de equipamentos, profissionais denunciam escassez de exames, salários atrasados e riscos enfrentados por médicos e enfermeiros.
"Está sendo o caos", diz uma das profissionais, que conta que colegas têm comprado equipamentos do próprio bolso para poderem trabalhar. "Álcool 70, coisas básicas, máscara, capote de proteção. Compramos praticamente tudo"acrescenta ela, com a voz embargada.
"Atualmente, a gente tem quer rezar para o paciente não chegar em estado grave."
Com mais de 90% dos leitos ocupados por pacientes com o novo coronavírus, segundo o governador, o Estado recebeu do governo federal uma verba extraordinária de mais de R$ 40 milhões, para o combate específico à covid-19, doença causada pelo vírus.
Médicos, enfermeiros, procuradores e promotores, no entanto, questionam onde o dinheiro tem sido investido.
Silêncio
Nesta semana, a Sociedade Brasileira de Cardiologia questionou o governo do Estado, em uma carta à qual a reportagem teve acesso, sobre o uso de verbas federais para o combate à covid-19.
"Para onde estão sendo enviados os recursos e os investimentos da área de Saúde no Amazonas?", diz o texto.
Na quarta-feira, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Amazonas (MP) ajuizaram uma Ação Civil Pública na mesma linha.
No texto, eles pedem que o Estado seja obrigado "a publicar informações claras e atualizadas, no site na internet, sobre verbas federais já recebidas e a receber e sobre o repasse, pelo Ministério da Saúde, de respiradores, equipamentos de proteção individual (EPIs) e testes."
A BBC News Brasil procurou, por telefone, e-mail e mensagem de texto, o governo e a secretaria de Saúde do Estado em busca de esclarecimentos. Nas mensagens, a reportagem pergunta como as verbas federais de urgência destinadas ao enfrentamento do novo coronavírus têm sido usadas no Estado.
A BBC News Brasil também enumerou as reclamações dos profissionais de saúde sobre falta de equipamentos, superlotação de unidades e dúvidas sobre o uso das verbas.
O Estado não respondeu a nenhum dos questionamentos.
Segundo o portal da Transparência, nos meses de março e abril, R$ 46.138.354,09 foram transferidos pelo governo federal para o Fundo Estadual de Saúde (FES), administrado pela Secretaria Estadual de Saúde.
O valor deveria ser destinado especificamente ao "enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus".
Na ação ajuizada na Justiça Federal, o Ministério Público destaca "que o Estado já recebeu verbas federais para o combate ao Covid-19, como se extrai do portal do Fundo Nacional de Saúde, o que justifica a prestação dessa informação".
Ainda segundo a ação, "o MPF e o MP-AM destacam que não foram adotadas até hoje, mais de um mês após o início do surto, medidas que assegurem a transparência das ações públicas".
Mortes de médicos
A carta enviada pela sociedade médica também discute o "apagão" de verbas emergenciais no Estado.
"Há de se ter clareza nas informações destes dados (financeiros) e não auferir capital político nessa conjuntura", diz o texto.
Ao menos dois médicos morreram na última semana, em Manaus, após serem internados com suspeita de covid-19. Um deles teve a doença foi confirmada, segundo o Conselho Regional de Medicina do Amazonas. Ainda não há resultado dos testes para o segundo, enquanto as mortes de outros três profissionais, segundo médicos do Estado, também estariam ligadas à doença.
"Entendemos que é nosso dever salvar vidas. Somos fiéis ao nosso juramento, mas não podemos, num quadro caótico como esse, sermos negligentes. Temos consciência que muito mais pode ser feito sem sacrificar a vida dos colegas e dos cidadãos. Quantos mais profissionais da saúde precisam perder suas vidas para haver mudanças na saúde pública do Estado?"
À BBC News Brasil, uma das diretoras do conselho, a cardiologista Wladia de Albuquerque Silva, descreveu a situação dos profissionais de saúde sem equipamentos "como ir para a guerra sem nenhuma arma".
"A gente sabe que o Estado tem sua receita, sabe que esse valor foi repassado pelo governo federal, mas a gente não vê recursos sendo destinados para lugar nenhum aqui em Manaus. Estamos explodindo de casos. E não é uma situação só local, no interior é pior."
"Já ouvi relatos de que, para diminuir a angústia de quem não está conseguindo respirador, estão apenas sedando os pacientes. Assim ele morre, mas menos angustiado. O que o Estado está fazendo é um crime", afirma.
Boa parte do efetivo de atendimento de saúde do Amazonas não é concursada e oferece serviços terceirizados ao Estado por meio de cooperativas. Dois enfermeiros que trabalham neste regime disseram à reportagem que estão com salários atrasados há dois meses.
No fim de março, já em meio à pandemia, quando o Estado já tinha mais de 80 casos confirmados, enfermeiros fizeram um protesto em Manaus pedindo a regularização dos pagamentos.
Alguns afirmaram estar há oito meses sem receber o salário regular. A BBC News Brasil questionou o Estado sobre os atrasos, mas não teve resposta.
Limite
Em uma semana, os casos confirmados da doença no Estado aumentaram 192% e os registros de óbitos subiram 360%. Esses dados colocam o Amazonas na fase de "aceleração descontrolada" do novo coronavírus, segundo o Ministério da Saúde.
Segundo o governo do Amazonas, 18 dos 61 municípios do interior têm casos da doença.
Na semana passada, em entrevista a jornalistas, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse que a situação em "Manaus nos preocupa muito".
Ao jornal El País Brasil, o governador do Estado, Wilson Lima, disse que "90% dos leitos estão com pacientes de covid-19". "É uma corrida contra o tempo", afirmou.
Além dos pacientes, a corrida afeta o cotidiano e a saúde mental de profissionais de saúde, que tentam como podem dar conta da nova demanda.
"A gente tenta o máximo possível preservar a vida do paciente, até se expondo em algumas situações", diz uma profissional.
"Apesar da nossa situação ruim de material e tudo mais, o material humano está sendo nota 10. Vejo cada um tentando o máximo para salvar uma pessoa e enfrentar uma situação que chega no limite. É muito triste."
Para médicos ouvidos pela reportagem, a crise expôs um problema antigo no Estado.
"A gente tinha até desistido de (esperar) alguma ação dos governantes, porque eles sempre usam a saúde como massa de manobra para poderem se eleger, mas de efetivo não faziam nada. Isso tem anos já", diz uma médica concursada.
"Agora, a pandemia do coronavírus mostrou o tamanho da deficiência da saúde aqui no Amazonas. E só tende a piorar."