'É justo isso você entregar uma jovem para Estado e receber só ossos carbonizados?', questiona mãe de policial morta
Mães de policiais mortos em serviço fundam associação para oferecer apoio a familiares e combater estigma da profissão.
Se Zoraide Vidal e Francilene Pinheiro tivessem se conhecido antes, teriam provavelmente compartilhado as angústias com a rotina de trabalho dos filhos policiais. Mas foram apresentadas uma à outra por compartilharem a mesma dor: ver os filhos, ainda jovens, assassinados em serviço - e, em vez de solidariedade, receberem olhares de desconfiança da sociedade.
"Quantas vezes as pessoas não questionam: 'Seu filho não estava envolvido não? Não estava envolvido com bandido? Vai ver estava envolvido com traficante, por isso que mataram ele'", diz Francilene, que tem 66 anos e há 11 perdeu seu filho único, o policial civil Thiago Pinheiro, aos 26 anos.
Com o aumento da violência no Rio e a escalada de mortes de policiais no Estado - apenas em 2017, 107 policiais militares e sete policiais civis foram assassinados - a dupla resolveu oficializar o trabalho voluntário que vinha fazendo ao longo dos últimos dez anos e fundou, em agosto, a Associação de Mãe de Polícia (Amapol) .
A missão do grupo, composto por sete mulheres, é oferecer apoio a mães e familiares de policiais civis que, como elas, se sentem desamparadas após a morte deles, bem como a famílias que têm dificuldades de lidar com casos de invalidez, ferimentos graves ou distúrbios psicológicos.
"Se o Estado já não cuida deles enquanto estão na ativa, imagina então quando são feridos e ficam de cama. Como é que uma família vai cuidar de uma pessoa que ficou tetraplégica sem recursos? Resolvemos fazer essa parte que ninguém quer", resume Zoraide.
'Acaba com a família inteira'
Ao receber a reportagem da BBC Brasil, as duas mães vestiam camisetas com o logotipo da Amapol - um coração estampado no peito com as palavras "Mãe de Polícia" - e traziam no pescoço pingentes com a foto dos filhos, sorridentes, trajando suas becas nas respectivas formaturas em Direito.
Nas paredes da sede provisória da Amapol, o apartamento de Zoraide em Copacabana, há fotos de sua filha por toda a parte.
Ludmila Fernandes Fragoso tinha 24 anos quando foi assassinada após um assalto na Baixada Fluminense, em agosto de 2006. Identificada por levar a arma e o documento de policial civil, foi torturada e morta a pauladas. O corpo foi encontrado carbonizado dentro de seu carro. Ludmila era recém-casada e estava grávida do primeiro filho.
"A minha filha era de carne e osso, mas teve uma morte tão brutal que a gente só pôde pegar a carcaça dela. Eu não pude nem vê-la no caixão. É justo isso, você entregar uma jovem para a Secretaria de Segurança Pública e receber só ossos carbonizados?", questiona Zoraide.
'Vocês têm a mesma dor'
Thiago Pinheiro, filho de Francilene, foi morto quatro meses depois de Ludmila, três dias antes do Natal de 2006, ao ter seu carro roubado em Cascadura, na zona norte do Rio, a caminho do trabalho.
Ao entrar no carro, o assaltante viu a arma que Thiago tentara esconder debaixo do banco. Rendeu a moça que ele levava de carona e obrigou-a a dizer se ali tinha polícia. Ela apontou para o Thiago, e ele foi assassinado com um tiro nas costas. O carro foi deixado para trás.
Thiago era inteligente, "namorador" e "muito querido", descreve Francilene. Ela resistiu quando ele passou para o concurso da Polícia Civil, onde serviu durante cinco anos. "Não criei meu único filho para ir para a polícia, polícia é toda corrupta", lembra.
Em 2004, Thiago sobreviveu a um assalto em que levou cinco tiros, mas ainda assim não deixou a profissão. "Ele era apaixonado pelo que fazia", diz.
"Eu acho que mãe nenhuma, hoje em dia, gostaria de ter um filho policial. Quando passei a aceitar a ideia, aconteceu", diz Francilene, lembrando o choque do assassinato.
"Não tem nem explicação. É uma dor que não existe. É uma perda incalculável. Quando acontece, tira teu chão, você fica perdida. É uma escuridão."
Zoraide e Francilene se conheceram após outra morte brutal, que chocou o Brasil há dez anos: foram apresentadas uma à outra no enterro do menino João Hélio Fernandes, que morreu ao ser arrastado do lado de fora do carro, após um assalto, por sete quilômetros. Ele ficou preso pelo cinto de segurança e os pais não conseguiram tirá-lo do veículo a tempo.
"Fomos à missa separadamente e uma outra mãe falou: 'Vocês duas têm a mesma dor. São mãe de polícia'", lembra Zoraide.
Até então, ela se sentia isolada, ou mesmo persona non grata, nos grupos de familiares de vítimas da violência. Porque em muitos casos as outras mortes haviam sido causadas justamente por violência policial.
Ela conta já ter sido quase "massacrada" em um evento ao lado de mães de vítimas de chacinas. "Estou aqui com a mesma dor de vocês. Aqui não tem essa de favela e polícia", argumentou Zoraide, que trabalhou por quase 30 anos prestando assistência jurídica a moradores do Morro do Borel, na Tijuca - e só conseguiu acalmar as mães depois de ser reconhecida por algumas delas.
A partir de então, a dupla passou a frequentar enterros de outros policiais para fazer os primeiros contatos com suas famílias - como fez em agosto, após a morte de Bruno Guimarães Buhler, o Xingu. O agente Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) morreu durante uma operação na favela do Jacarezinho.
Burocracia
Zoraide afirma que os parentes enfrentam burocracia prolongada até conseguir receber as pensões por morte, bem como nos litígios judiciais relacionados ao processo. Quando o policial é morto em serviço, por exemplo, a família tem direito a uma pensão especial. Francilene, entre muitas outras mães, precisou entrar na justiça para receber esse direito. Já teve ganho de causa, mas até hoje não recebe o acréscimo, 11 anos após a morte do filho.
Até mesmo o enterro pode virar uma via-crúcis, como no caso do cabo de Polícia Militar Júlio Cesar Silva de Oliveira, de 36 anos, assassinado em setembro. Os criminosos roubaram seus documentos, e sem eles, sua mulher, Jessica Oliveira, custou a conseguir liberar o corpo no Instituto Médico Legal (IML). Na época, ela fez um apelo comovido pedindo que os bandidos devolvessem os documentos: "Já tiraram o meu marido de mim. Só quero ter o direito de enterrar o meu marido", pediu.
Já policiais feridos costumam ter dificuldades financeiras por causa da política de abonos salariais, diz Zoraide. Quando são forçados a sair de cena, os salários despencam sem os abonos, e o mesmo ocorre com as pensões por morte.
A Amapol se concentra em ajudar as vítimas de violência na Polícia Civil, onde a filha de Zoraide e o filho de Francilene serviam.
"Quando jovem, o policial dá o sangue pelo Estado. Quando ele perde o sangue ou perde a vida, a família fica totalmente abandonada", diz Zoraide, que é advogada da OAB-RJ, tem 69 anos e há mais de dez anos se dedica à iniciativa, desde a morte de Ludmila em 2006.
"O policial tem família, não é filho de chocadeira não. E nem é Rambo que pode ser atropelado e depois a lataria desamassa", diz ela, que está em busca de uma sede permanente para receber famílias e policiais que enfrentem problemas com drogas, ferimentos ou distúrbios psiquiátricos.
A delegada Sânia Burlandi, diretora do Departamento Geral de Recursos Humanos (DGRH) da Polícia Civil, rechaça as críticas de que as famílias de policiais ficariam "abandonadas".
"Essa informação não procede. Dentro das possibilidades da Polícia Civil, é feito um grande esforço para o acolhimento de todos os policiais e seus familiares que requerem assistência".
A Polícia Civil afirma dar apoio constante aos policiais e seu familiares por meio do Serviço de Atendimento ao Servidor (Seras), e realizar doações de fraldas para cadeirantes. De acordo com a assessoria de imprensa, a instituição não tem psiquiatras em seus quadros, mas possui uma policlínica que conta com três psicólogos que atendem sob demanda.
Na PM, críticas semelhantes
Em 2014, a cabo da Polícia Militar do Estado do Rio (PMERJ), Flávia Louzada fundou o grupo "A Vida do Policial É Sagrada como Toda a Vida É".
Inicialmente, o objetivo era ajudar viúvas e órfãos de policiais militares mortos.
Com 107 PMs já mortos esse ano, o grupo, que tem 80 policiais como voluntários, tem sido cada vez mais requisitado - não apenas no apoio a familiares, como também para ajudar policiais que ficaram paraplégicos, tetraplégicos ou sofreram amputações após serem feridos em serviço.
"Eles ficam abandonados. Não podem voltar ao serviço porque foram feridos de forma irreversível. O número está crescendo e isso não tem visibilidade", diz Louzada. "Ainda mais agora, com o Estado em crise e sem dinheiro para nada."
De acordo com a PMERJ, 351 PMs foram feridos neste ano. Louzada diz que há burocracia para obter o auxílio-invalidez, e faltam recursos para insumos básicos, como fraldas e pomada para escara. Já as famílias enfrentam um processo demorado até receber a pensão a que têm direito.
Louzada diz ainda que PM não oferece mais atendimento psiquiátrico, havendo apenas atendimento psicológico que, segundo ela, é insuficiente.
"Muitos anos atrás, em cada batalhão havia um psicólogo. Agora não. O policial está trabalhando no limite entre a vida e a morte, sem equipamento, sem blindagem dos contêineres. A tropa está doente, vivendo no limite, mas não tem a quem recorrer", lamenta.
Questionada sobre a política de apoio aos policiais militares e a seus familiares, bem como sobre a oferta de atendimento psicológico e psiquiátrico, a Polícia Militar do Estado do Rio informa apenas que todos os policiais militares mortos por ações violentas ou acidente têm direito ao seguro de acidente pessoal. A indenização é paga "em até um mês após a abertura do processo", informa, por meio de sua assessoria de imprensa, "se os documentos estiverem de acordo com o exigido".
Pedindo ajuda para ajudar
No início do ano, Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj) deu início a uma parceria com PM para prestar assistência a parentes de policiais mortos, trabalho que a comissão já vem realizando há quatro anos.
A comissão procura oferecer outras formas de apoio e benefícios sociais às famílias, para além da pensão paga pelo Estado.
"A gente trabalha muito com o atendimento psicológico das famílias. Há uma demanda absurda", diz Antônio Pedro Soares, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Alerj.
"Tentamos convencer as mães a aceitar algum atendimento psicológico. Elas prolongam muito esse luto, e vemos que isso traz consequências mais sérias para sua saúde do que observamos com outros familiares."
Com a parceria recém-firmada com a PM, a comissão espera ter mais acesso às famílias de policiais. Antes disso, o trabalho de mapear as vítimas e entrar em contato com suas famílias dependia em grande parte de informações veiculadas na imprensa.
Zoraide afirma que, na Amapol, um dos grandes desafios é obter informações sobre as famílias e policiais que precisam de assistência, já que esses dados, afirma, não são compartilhadas pela polícia.
As mães esperam que a situação melhore agora já que, no fim de setembro, a Amapol foi uma das dez entidades da sociedade civil eleitas para o Conselho de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (Consperj) no biênio 2017-2019 - ao lado de ONGs como o Viva Rio e o Instituto Igarapé.
O órgão consultivo tem objetivo de ajudar o Estado a formular políticas públicas para promover segurança e reduzir a violência.
"Somos a primeira associação de mães de vítimas a conseguir entrar no conselho", comemora Zoraide, torcendo que o diálogo com Secretaria de Segurança Pública ajude-as a fazer seu trabalho e ter um impacto maior.
"Temos a boa vontade de ajudar, mas para isso sabemos que é preciso andar de braços dados com o Estado", diz. "Mas por enquanto o Estado não faz nem deixa ninguém fazer."
Após a morte de sua filha, Zoraide afirma nunca ter recebido qualquer tipo de assistência do governo. Um ano após o assassinato, na semana do aniversário de Ludmila, chegou pelo correio um cartão com uma fotografia sorridente do ex-governador Sérgio Cabral, desejando-lhe parabéns.
"Ela já estava morta há um ano. Para você ver a falta de organização", diz Zoraide. "Isso para não dizer que nunca recebi nada do Estado."