É razoável ou causa instabilidade? A polêmica decisão do STF que impede prisão de Lula antes da análise de habeas corpus
A resposta de juristas é: ambos. De um lado, eles avaliam que conceder liminar a favor do ex-presidente foi acertado, mas de outro criticam o que veem como caráter 'errático' de decisões do Supremo. Entenda.
Depois de passar a tarde desta quinta-feira reunidos, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram suspender a sessão e adiar a análise do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, ao mesmo tempo, decidiram de forma liminar (provisória) impedir a possibilidade de que o petista seja preso até a conclusão do julgamento.
Com isso, Lula ganhou tempo: a corte só volta a se reunir no dia 4 de abril, já que não há sessão na semana da Páscoa.
O julgamento do habeas corpus pode impedir que o petista seja preso após ser condenado pela segunda instância da Justiça no caso do tríplex do Guarujá, no qual ele é acusado de receber propina da construtora OAS.
O próprio STF criou as condições para que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), em Porto Alegre, determinasse a prisão de Lula: em 2016, o Supremo mudou seu entendimento e passou a autorizar a prisão após condenação em segunda instância.
Em janeiro, o TRF-4 condenou o petista a 12 anos e um mês de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O tribunal de Porto Alegre marcou para a próxima segunda-feira o julgamento dos recursos finais da defesa nessa instância - se forem recusados, conforme esperado, o petista poderia ser preso. Com a decisão desta quinta-feira, porém, mesmo que isso ocorra, ele não poderá ser detido até o julgamento do habeas corpus seja concluído no STF.
A BBC Brasil conversou com especialistas em direito constitucional e ex-ministros de tribunais superiores para entender os pontos mais polêmicos da decisão.
A decisão é razoável ou causa mais incerteza?
Para os juristas ouvidos pela reportagem, a decisão do STF de adiar o julgamento - o que na prática pode impedir que Lula seja preso caso o TRF assim o decida - é razoável, uma vez que o ex-presidente não teria culpa pelo fato de o Supremo não ter conseguido tomar uma decisão antes de concluir sua sessão nesta quinta-feira.
"Por motivos alheios à vontade de Lula, o Supremo decidiu suspender a sessão, então não é nada demais conceder a liminar (em seu favor). Os ministros só estão garantindo uma situação (a liberdade do ex-presidente), tendo em vista que a própria corte não conseguiu concluir seu julgamento", diz Marcelo Ribeiro, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral.
"Se o Supremo foi incapaz de julgar, quem tem de sofrer com isso não pode ser o réu", explica Thiago Bottino, professor da FGV Direito Rio.
Na opinião do ex-ministro do STJ Gilson Dipp, o STF "chegou à decisão correta, por linhas tortas".
"O habeas corpus foi pautado de ontem para hoje, porque havia o julgamento (no TRF-4) pautado para segunda-feira. Ou se concluía hoje, ou tinha de se conceder (a liminar). Nem precisaria (o advogado de Lula) pedir. O STF poderia conceder de ofício (isto é, por iniciativa dos próprios ministros)", diz Dipp.
Há precedentes?
Durante a sessão, a ministra Rosa Weber disse que "há precedente" no STF para suspender um julgamento de habeas corpus e, com isso, conceder uma liminar favorável ao réu - mas disse não não se lembrar do caso concreto.
Em uma pesquisa no portal do STF, a reportagem da BBC Brasil localizou um caso similar, de abril de 2015: uma liminar foi concedida para evitar a prisão de dois réus enquanto o julgamento do habeas corpus estava interrompido por um pedido de vista.
Foram localizados também alguns casos nos quais o tribunal interrompeu o julgamento de pedidos de habeas corpus, mas não concedeu liminares.
O caso de 2015 diz respeito aos empresários Arthur Augusto Dale e Ricardo Thomé, envolvidos no chamado "escândalo dos precatórios", que estourou no fim dos anos 1990.
Em 2014, já condenados pelo STJ, Dale e Thomé, que estavam em liberdade, entraram com um habeas corpus no STF questionando a duração das penas de prisão. A Primeira Turma do Supremo começou a julgar o pedido em outubro de 2014, mas o julgamento foi interrompido por um pedido de vista do ministro Luiz Fux.
Então, em abril de 2015, o STJ terminou de julgar todos os recursos de Dale e Thomé, e mandou prender ambos. O relator do habeas corpus no STF, Dias Toffoli, concedeu uma decisão liminar (provisória), determinando que ambos ficassem em liberdade até que o julgamento do pedido fosse concluído pela Primeira Turma. Na decisão, o ministro também interrompeu a contagem do prazo de prescrição.
Na época, Dias Toffoli argumentou que o resultado do habeas corpus poderia reduzir a pena de ambos: poderia ocorrer, por exemplo, que eles começassem a cumprir a pena em regime semiaberto ou aberto.
Por que a prisão em segunda instância causa tanta polêmica?
Em 2016, por 6 votos a 5, os ministros do Supremo decidiram permitir que condenados em segunda instância (ou seja, por um tribunal colegiado) poderiam ir para a prisão - até então, esperava-se até o fim da tramitação de um processo para prender um réu.
Desde então, no entanto, o tema tem sido recorrente no debate político. O ministro Gilmar Mendes, que havia votado pela prisão após a condenação em segunda instância, mudou de opinião - neste mês, por exemplo, ele concedeu habeas corpus para quatro réus condenados em segunda instância no âmbito da Operação Catuaba, que apura um suposto esquema de sonegação de impostos.
Por sua vez, a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, tem relutado em colocar o assunto em pauta novamente. Ela teme que a retomada da discussão seja vista como casuísmo - o assunto só estaria voltando à pauta por ter implicações em um julgamento de peso, como o do ex-presidente Lula.
Para os especialistas ouvidos pela BBC Brasil, o problema é que criou-se um cenário em que cada processo tem um desfecho diferente dependendo de qual ministro o julga.
"Hoje é uma loteria. O habeas corpus depende da sorte de cair com um ministro (favorável à libertação)", afirma Eloisa Machado, professora da FGV Direito SP.
A decisão causa instabilidade?
O julgamento desta quinta-feira referia-se apenas ao caso do ex-presidente Lula. Mas isso também foi alvo de críticas à corte: esperam avaliação dos ministros duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) que uniformizariam o entendimento do tribunal sobre a prisão após segunda instância de forma genérica, sem referência a um caso específico.
Houve pressão para que as ADCs, e não o habeas corpus a favor de Lula, fossem pautadas.
"O que o país quer é que o Supremo resolva a questão para todos", diz Joaquim Falcão, da FGV Direito Rio. "Mas o Supremo passou a ser um fator de instabilidade nacional. É preciso previsibilidade, mas o que estamos vendo é o contrário."
Falcão critica práticas como a falta de clareza na colocação e retirada de pautas de julgamento; manifestações públicas além dos autos; e encontros dos ministros com partes dos processos.
"Essas práticas estão se acentuando gravemente. Não estamos falando da judicialização da política, mas de uma partidarização do supremo. Aquilo virou uma arena política, mas a arena política tem que ser o Congresso."
Na avaliação de Falcão, tais condutas colocam em dúvida até mesmo a previsão de que o julgamento do habeas corpus de Lula seja retomado no dia 4 de abril - o que poderia não ocorrer, por exemplo, com a ausência de alguns ministros ou pedidos de vista. Conforme mostrou a BBC Brasil em novembro, a corte acumula centenas de pedidos de vista, boa parte ultrapassando os prazos regimentais para devolução (leia aqui).
Oscar Vilhena, da FGV Direito SP, também faz críticas ao que classifica como caráter "errático" das decisões da corte.
Isso, segundo ele, isso ocorre por dois motivos: "Primeiro, porque há uma quantidade muito grande de decisões monocráticas (ou seja, tomadas por apenas um ministro), e por isso casos semelhantes são julgados de forma diferente".
"Segundo, porque mesmo as decisões colegiadas (tomadas por todos os ministros) não são consensuais, mas sim de somatória de votos. Em cortes mais maduras, como na Alemanha ou França, os juízes debatem até chegar a uma conclusão e redigem o voto (com a posição) da maioria. Aqui, cada ministro tem o seu voto e não há consenso nas razões (para cada decisão)", diz.
"Por isso, até mesmo um assunto que foi decidido há um ano e meio (em referência à prisão após condenação em segunda instância) nem poderia voltar à pauta."