E se o ato antigoverno ocorresse sob intervenção militar?
Paulistanos se reuniram neste fim de semana para defender o impeachment da presidente Dilma. Parte deles chegou a pedir uma intervenção militar no País. Com base nos acontecimentos das décadas de 1960 e 1970, o Terra produziu uma reportagem fictícia para mostrar o que provavelmente teria acontecido com manifestações contra o governo (e com jornalistas) se vivêssemos mais uma vez sob uma ditadura
Cerca de duas mil pessoas se reuniram no último sábado na Avenida Paulista, uma das principais vias de São Paulo, para protestar contra a reeleição da presidente Dilma Rousseff (PT). Enquanto parte dos participantes carregou faixas defendendo um impeachment, outra empunhou cartazes com pedidos de intervenção militar no País, nos moldes do golpe de 1964. Como em um passe de mágica, o desejo deles foi atendido. No entanto, como sabemos, em um regime militar qualquer protesto contra o governo é violentamente reprimido.
Os militares chegaram, com plenos poderes para "manter a ordem" por meio da força, assim como nas décadas de 1960 e 1970. Eles agora eram a lei. Portando cassetetes e armas de fogo, não precisaram de muito tempo para dispersar o ato. Os cidadãos foram surpreendidos por bofetadas e tiros à queima roupa. Entre os atingidos estavam homens, mulheres (incluindo grávidas), adolescentes e idosos. Alguns manifestantes ficaram gravemente feridos e três morreram no local, abatidos pelos tiros disparados pelas forças militares.
Entre os participantes do protesto estava o músico Lobão, crítico assíduo do atual governo. "Vamos nos unir", disse ao público, no microfone, em cima de um carro de som. Capturado pelos oficiais, ele foi encaminhado ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, órgão criado para vigiar manifestações políticas). Após seis horas de interrogatório, confessou que tramava uma conspiração para derrubar o regime.
O ex-deputado federal Eduardo Bolsonaro foi outro que encabeçou o protesto - e sofreu as consequências disso. Seu mandato foi cassado com base no Ato Institucional nº 5 (AI-5), que prevê a cassação e a suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão, e ele, em seguida, foi preso. Eduardo é filho do ex-deputado Jair Bolsonaro, que, igualmente acusado de crimes contra o governo, está desaparecido há três anos.
Ato Institucional Número 5 (AI-5)
Entre os poderes que as autoridades militares ganharam para reprimir seus opositores estavam: fechar o Congresso Nacional e outros legislativos, cassar mandatos, suspender direitos políticos de qualquer cidadão, intervir em estados e municípios, decretar confisco de bens e suspender o direito de habeas corpus para crimes políticos.
Outros manifestantes não identificados tiveram os olhos vendados, as mãos algemadas e foram levados até viaturas que dispararam em alta velocidade. Não se sabe exatamente para onde foram. A mãe de um dos presos disse, sob condição de anonimato, que ainda não sabia o paradeiro do filho. Após peregrinar por oito delagacias diferentes, ela não obteve nenhuma informação relevante.
Procurados pela reportagem, os oficiais negaram todas as apreensões. Familiares e amigos dos desaparecidos, porém, garantem que, desde então, não tiveram notícias deles.
Alguns poucos sortudos conseguiram fugir. Um deles, também sem se identificar, contou que suas vidas não serão tranquilas daqui para frente. Terão que morar em abrigos clandestinos, adotar documentos falsos e usar codinomes para se comunicar. De tempos em tempos, para evitar que sejam pegos novamente, deverão se separar de seus amigos e parentes e viver em cidades espalhadas pelo País.
Relato de sobrevivente
Uma manifestante contou que conseguiu escapar da repressão, mas que semanas antes havia sido apreendida em outro protesto contra o regime. Ela, que hoje faz parte de um desses grupos que vivem na ilegalidade, relatou tudo que sofreu na prisão.
Levados a salas especiais existentes dentro das delegacias, ela e seus companheiros passaram por diferentes formas de tortura para que revelassem nomes de seus líderes e "aprendessem a respeitar as autoridades".
Ela disse ter passado pela “cadeira do dragão”. Após ser abusada sexualmente, foi colocada nua em uma espécie de cadeira elétrica revestida de zinco que transmitia choques por seu corpo. Sua cabeça era enfiada em um balde de metal algumas vezes para que fossem aplicados mais choques. Em seguida, ela foi levada a uma cela baixa e pequena, que a impedia de se movimentar, onde os oficiais alternavam sistemas de refrigeração e aquecimento. A militante não sabe dizer por quantos dias exatamente permaneceu ali, sem roupa, água e comida.
Um de seus companheiros ficou em uma sala ao lado da sua, onde era praticado o pau-de-arara. Com uma barra de ferro atravessada entre punhos e joelhos, ele, também nu, foi pendurado em uma posição que causava dores terríveis. De tempos em tempos, militares apareciam para aplicar choques, fazer queimaduras e dar pancadas por todo o corpo. Uma das mais populares era a chamada de “telefone”, em que, com as duas mãos em forma de concha, o torturador dava tapas ao mesmo tempo contra os dois ouvidos do preso, causando o rompimento dos tímpanos.
Este texto é uma reportagem ficcional, baseada em relatos e registros históricos da época em que os militares, com apoio de uma parte da população, intervieram na política brasileira sob o pretexto de livrar o País da "ameaça comunista" e permaneceram no poder por 21 anos. Não só o teor do texto é ficcional como sua própria existência, já que não poderia ser publicado se vivêssemos sob uma ditadura. A Lei de Imprensa estabelecida no Brasil em 1967, durante o governo dos militares, criou regras que institucionalizaram a restrição à liberdade de expressão e a punição dura de jornalistas. Nós, da redação, poderíamos até mesmo ter o triste destino dos personagens narrados nesta reportagem fictícia, destino que foi bem real e dolorido para muitos que lutarem para garantir que hoje tivéssemos liberdade de manifestação, de expressão e de escolhermos democraticamente nossos governantes.