'É triste que eu tenha que tomar esse cuidado', diz torcedor gay que vai à Copa da Rússia sobre alertas de homofobia
Uma cartilha do governo brasileiro recomenda que sejam evitadas demonstrações homoafetivas em público, enquanto o Parlamento britânico afirmou que há um risco significativo para esses cidadãos no Mundial.
Depois da Copa no Brasil, o engenheiro André Almeida, de 31 anos, decidiu que também acompanharia o Mundial seguinte in loco. Prestes a embarcar para Rússia, ele está levando na mala não só os cinco ingressos que comprou, mas também uma dose de cautela. André é gay e sabe que não poderá se comportar por lá da mesma forma que age por aqui.
Governos e ONGs vêm alertando torcedores LGBT sobre os cuidados que devem tomar enquanto estiverem na Copa do Mundo na Rússia, um país onde há forte sentimento contrário a essas pessoas e a ocorrência de agressões contra elas vem aumentando, dizem ativistas.
"Sou apaixonado por esportes, então, isso não seria um impeditivo, mas não vou tocar nesse assunto enquanto estiver por lá, falar disso com a família que vai me hospedar nem perguntar às pessoas sobre lugares gays ou ter a liberdade de conhecer alguém", diz Almeida à BBC News Brasil.
"De certa forma, não vai ser uma experiência completa. É triste que, em 2018, eu tenha que tomar esse cuidado sem ter feito nada de errado."
Um destes alertas partiu do governo brasileiro para os 60 mil cidadãos que, segundo estimativas oficiais, têm ingressos para jogos da competição marcada para começar na próxima quinta-feira.
A cartilha para torcedores divulgada pelo Itamaraty na quinta-feira explica na seção sobre as leis locais que "não são comuns manifestações intensas de afeto em público" e recomenda expressamente que não haja "demonstrações homoafetivas", além de manifestações sobre temas delicados - entre eles, os relacionados a orientação sexual.
O motivo seria uma lei de 2013, que tem o objetivo declarado de "proteger crianças de informações que advogam pela negação dos valores da família tradicional".
Mais conhecida como "lei contra a propaganda gay", ela veta a distribuição de material informativo que defenda os "interesses de relações sexuais não tradicionais" para menores de 18 anos. Isso, na prática, proíbe manifestações públicas da comunidade LGBT no país. Violar a norma pode resultar em multa e deportação, alertou o Itamaraty.
Questionada sobre a inclusão desse alerta na cartilha, Luíza Lopes, diretora do departamento consular e de brasileiros no exterior do Itamaraty, explicou que a intenção foi prevenir "experiências ruins".
"Nossa preocupação é dar as informações necessárias para orientar brasileiros da melhor forma possível e evitar que passem por situações constrangedoras, e há uma lei específica sobre isso. Não poderia ficar de fora", disse a embaixadora na coletiva de imprensa em que apresentou a cartilha.
'Risco significativo'
Uma mensagem semelhante partiu nesta sexta-feira do comitê de Relações Exteriores do Parlamento britânico, segundo o qual cidadãos LGBT correm um "risco significativo" não só pela possível "violência de grupos de justiceiros", mas também por uma "falta de proteção adequada pelo Estado".
"A cultura de extrema direita dos grupos de hooligans russos pode colocar torcedores LGBT sob um risco especial de serem alvo de violência", diz o relatório.
A ONG Fare, dedicada a combater qualquer discriminação no futebol, vem alertando torcedores LGBT sobre o assunto desde o ano passado.
A organização criou um canal especial no WhatsApp para quem deseja buscar informação e apoio ou fazer denúncias, e preparou um guia para orientar sobre esse problema no país.
"Casos de homofobia e de grupos de extrema direita que 'caçam' pessoas LGBT em aplicativos e na internet para atraí-los para apartamentos e depois gravar enquanto eles são humilhados estão aumentando" na Rússia, diz o documento.
A Fare também publicou recentemente um estudo mostrando que, após o veto a bandeiras com conteúdo radical nos estádios russos, houve um aumento no último ano de gritos de torcida marcados pelo preconceito a minorias nesses locais.
"O aumento da homofobia é algo novo nos estádios russos. Hoje, mais do que nunca, vemos torcedores chamando adversários de 'gay'. Isso é uma prática que deriva da homofobia que parte do Estado", diz o documento.
Ponta do iceberg
Piara Power, diretor-executivo da Fare, diz que isso é apenas a "ponta do iceberg". "Esses são os incidentes públicos, mas há muitos outros que não vêm à tona", afirma.
A homossexualidade foi considerada crime de sodomia na Rússia até 1993 e classificada como uma doença mental até 1999. Em 2012, uma decisão da Justiça do país baniu a realização da Marcha do Orgulho Gay de Moscou por 100 anos.
A Rússia foi considerada em 2017 o quarto país, entre 49 Estados europeus, com mais violações de direitos e discriminação de cidadãos LGBT, segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA, na sigla em inglês).
De acordo com o Centro Para Pesquisa Social Independente, uma ONG baseada em São Petesburgo, os crimes de ódio contra pessoas LGBT dobraram nos cinco anos desde a aprovação da lei contra "propaganda gay".
E o mais recente relatório da LGBT Network, a principal organização da área na Rússia, documentou 366 casos de discriminação no período 2016-2017, dos quais 104 foram ocorrências de violência física, como assassinatos e estupros.
"Os ataques são frequentes porque é um país onde a homofobia está institucionalizada na legislação. Isso manda um sinal claro para grupos homofóbicos de que não há problema em atacar gays, porque não serão investigados", diz Yulia Gorbunova, pesquisadora da ONG Human Rights Watch (HRW) na Rússia.
No entanto, destaca ela, em dois dos principais eventos esportivos sediados pela Rússia - as Olimpíadas de Inverno, em 2014, e a Copa das Confederações, em 2016 -, não foi registrado nenhum incidente do tipo com torcedores.
"Talvez porque os torcedores LGBT estavam cientes de que era um ambiente hostil a eles e agiram de forma mais discreta, mas o fato é que pessoas abertamente homossexuais na Rússia não estão seguras, e isso se aplica também aos estrangeiros."
Combate ao preconceito
A Fifa criou nos últimos anos políticas para combater o preconceito e a violação de direitos humanos em partidas de futebol, e criou um canal online para denúncias.
A entidade e os organizadores da Copa da Rússia também já se manifestaram para dizer que garantirão a segurança de torcedores gays.
Será usado ainda um sistema de monitoramento antidiscriminação em todas as partidas da Copa, permitindo ao árbitro "interromper, suspender ou até mesmo abandonar" um jogo se "um comportamento discriminatório não cessar".
"Também trabalhamos com diversos times participantes em medidas educacionais preventivas, entre eles, é claro, os anfitriões, a Rússia", disse o diretor de diversidade e sustentabilidade da Fifa, Federico Addiechi, em um comunicado.
Ao mesmo tempo, diz a pesquisadora da HRW, o governo russo tomou algumas medidas para impedir que grupos radicais criem problemas durante o evento.
"As autoridades russas não são estúpidas. Sabem que precisam garantir a segurança dos visitantes. Alguns dos líderes foram detidos e interrogados, e foram enviados alertas contra possíveis ataques e agressões", afirma.
Ambiente tóxico
Mas Gorbunova alerta que, apesar da influência do governo sobre os grupos ultranacionalistas e das ações para evitar maiores problemas durante o evento, o ambiente em geral no país é "tóxico" para cidadãos LGBT.
"É uma herança da era soviética e um reflexo dos valores cristãos num país em que não há uma separação entre a Igreja e o Estado", afirma a pesquisadora.
"O governo promove esses valores conservadores para contrapor os valores mais progressistas do Ocidente e, assim, reforça essa atitude hostil do povo. Isso não vai mudar na sociedade enquanto as autoridades tiverem essa posição."
Power, da Fare, diz que os torcedores LGBT não devem ter medo, mas recomenda cautela. "Se um casal LGBT ficar em um hotel, haverá menos de chances de ter problemas do que se ficar em um apartamento", diz.
"O mesmo se aplica a quem está em cidades maiores, como Moscou e São Petesburgo, do que em locais mais remotos, como a cidade de Samara."
Ele explica que a organização não prevê ataques a pessoas LGBT na Copa, mas diz ser bom esses torcedores terem em mente que a maioria dos torcedores serão russos, "e eles podem se ofender".
"A Copa será um período especial, com o mundo de olho na Rússia. A polícia vai conferir mais proteção, e população vai ser mais tolerante, porque sabe que terá muitos visitantes e quer exibir o país da melhor forma possível", diz.
"A questão é quanto tempo isso vai durar e se as pessoas que agora batalham por direitos iguais enfrentarão ainda mais dificuldades."