Ele quer mudar a educação pública no Brasil
Projeto de aluno da USP que contrariou a própria família para estudar mostra a estudantes de escolas públicas que ensino superior é possível
Vinícius de Andrade estuda na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, mas chegar ao ensino superior foi um passo corajoso para ele. Primeiro porque ia na contramão da trilha seguida por sua família, em que todos trabalham desde cedo, segundo porque ele não sabia como tornar esse sonho possível — um problema que descobriu mais tarde ser muito comum entre os jovens.
Ao concluir o ensino médio, ele tinha um desejo, mas lhe faltavam referências. "Eu não sabia o que queria estudar, e nem como faria isso. Eu não tinha informação. Eu não sabia das oportunidades, ou como funcionava o Enem ou a Fuvest", relata. Foi então que, com o empurrão de um amigo, ele se matriculou num curso pré-vestibular e teve acesso a informações que nunca havia recebido antes.
Andrade nasceu e cresceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, e passou parte da vida escolar em colégios públicos. Foi aprovado no curso de Economia da USP após dois anos tentando, mas então sentiu que não bastava estar ali sozinho - seus colegas e vizinhos não estavam usufruindo do mesmo privilégio. Sua inquietude serviu como semente para a criação do projeto Salvaguarda, que visa mostrar aos estudantes da rede pública que a graduação é uma realidade possível para eles.
"Como vamos de escola em escola e entramos nas salas de aula, nós atingimos todos os alunos, dos mais decididos àqueles que não sabem nada. Se eles querem fazer faculdade, nós ajudamos. Se eles não querem, saberão pelo menos que têm direito a isso", explica o idealizador.
O projeto surgiu a partir de um trabalho para a faculdade no primeiro semestre de 2016, quando Andrade visitou quatro escolas públicas de Ribeirão Preto e aplicou um questionário para descobrir o nível de informação e interesse na graduação entre os alunos do último ano do ensino médio. Dos 193 entrevistados, apenas 13 conheciam o vestibular da Fuvest, que dá acesso à USP.
"Foi impactante. Os alunos pareciam interessados, mas ninguém estava inscrito no Enem, ninguém sabia o que era redação", conta o universitário. Aos poucos, ele conseguiu reunir dezenas de voluntários e promover uma parceria intensa e contínua com escolas públicas da região, bem como com cursos pré-vestibular, que hoje oferecem bolsas a alunos envolvidos no projeto.
Problema se estende
A falta de informação acerca do ensino superior não é um problema que se limita a Ribeirão Preto, mas é grave em todo o Brasil - assim concluiu uma pesquisa realizada pelo Salvaguarda em 2017 envolvendo 1.645 alunos da rede pública em 25 cidades de 19 estados. O levantamento foi ponto de partida para o desejo de Andrade de, no futuro, expandir o projeto para outras partes do país.
A pesquisa mostrou que, enquanto 90% dos alunos conheciam o Enem, quase metade não sabia seu significado ou utilidade. Cerca de 70% dos entrevistados disseram já terem ouvido falar do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), mas menos de 20% sabiam dizer para que ele serve.
O mesmo acontece com os programas de bolsa e financiamento oferecidos pelo governo para o estudo em faculdades privadas. Enquanto cerca de 80% dos alunos já ouviram falar de Fies e Prouni, menos de 40% sabem para que serve o primeiro, e apenas 20% sabem a utilidade do segundo.
Em Ribeirão Preto, 52% dos alunos não sabiam que há uma universidade pública em sua cidade. Esse mesmo índice é de 45% em Teresina, 39% em Manaus e 37% em Porto Alegre - capitais estaduais que possuem três ou mais instituições públicas de ensino superior.
Mais que informar, empoderar
O objetivo do Salvaguarda vai além de apenas informar alunos sobre provas e universidades. "É mais completo. Envolve empoderamento, despertar senso crítico. O importante é que eles tenham a rédea da vida deles, e é isso que a gente quer promover. Queremos dar liberdade, porque infelizmente eles ainda não são livres. E é justamente pela falta de informação", conta Andrade.
Em 2017, o projeto alcançou diretamente 1.375 alunos em 11 escolas de Ribeirão Preto e região. Deles, mais de mil se inscreveram no Enem, e seis foram aprovados na USP. Uma delas é a estudante Maria Eduarda Almeida, que está no primeiro semestre do curso de Farmácia.
"Sempre foi meu sonho fazer faculdade, mas eu tinha muita dificuldade pelo fato de a escola pública ser bem deficitária", afirma ela. "O Salvaguarda foi muito bom para o meu crescimento e experiência. Ele me proporcionou cursos que me ajudaram nos meus estudos para o vestibular e me colocou em contato com universitários da área que eu queria seguir."
O projeto conta hoje com mais de 300 voluntários, todos universitários, que se dividem entre visitas às escolas, oficinas de redação e monitoramento de grupos de Whatsapp - onde os alunos mantêm contato constante com os integrantes do projeto, pedindo dicas e informações.
As escolas parceiras do Salvaguarda - que em 2018 já são 14, atingindo mais de 3 mil alunos do segundo e terceiro ano no ensino médio - recebem visitas de voluntários mensalmente. Eles auxiliam os estudantes em suas inscrições no Enem e outros vestibulares, dão informações sobre cursos e universidades e contam suas próprias histórias de superação. Estudantes de diversas áreas, do direito à biologia, também vão às salas de aula para falar sobre seus cursos.
Andrade conta que, certa vez, disse à coordenadora de uma das escolas que gostaria de levar um estudante de Medicina para conversar com os alunos, mas ouviu a seguinte resposta: "É melhor alguém de Pedagogia ou Enfermagem, porque Medicina é sonhar alto demais para eles".
"Ou seja, existe uma limitação dentro dos próprios agentes da escola", diz o futuro economista, que enxerga o projeto como um corpo complementar necessário nesse espaço escolar. "O corpo docente da rede pública, infelizmente, não dá conta desse trabalho. Conheço professor que é bartender e mototaxista. Já ouvi professor dizendo que é proibido fazer Enem depois de sair da escola."
A primeira vez na USP
O Salvaguarda, que conta com apoio da iniciativa privada, promove ainda passeios gratuitos pelo campus da USP em Ribeirão Preto, com o objetivo de apresentar aos alunos a estrutura da universidade e aproximá-los daquela realidade.
"A visita foi incrível para mim", conta Matheus Conti, um dos 900 alunos do ensino médio que já participaram do passeio. "Foi a primeira vez que eu entrei na USP. Gostei de tudo lá: da organização, dos laboratórios, da estrutura. Eu me surpreendi demais quando cheguei."
O adolescente de 17 anos conheceu o Salvaguarda no ano passado, durante o trabalho promovido pelo projeto em sua escola, na cidade de Jardinópolis, região metropolitana de Ribeirão Preto. Desde então, ele mantém fixa a ideia de estudar na USP.
"Sempre pensei em fazer uma faculdade, e gostava de biologia, mas eu tinha muitas dúvidas sobre onde fazer. Eles me apresentaram várias opções e me explicaram como me inscrever. Eu também não sabia como fazer uma redação, e eles me ensinaram. O projeto foi muito importante nesse processo de decisão e abriu várias oportunidades para mim e para os meus amigos", afirma.
Segundo Conti, a situação entre seus colegas de classe era ainda mais complicada. "Vários não sabiam que a USP é uma universidade pública. Eles não sabiam o que é Fuvest, o que é Unesp. Hoje, muitos deles estão tentando entrar na faculdade."
Andrade lembra o caso de um estudante da Bahia que trabalha como lavrador. Os pais, também lavradores, estudaram até a quarta série e hoje ganham menos de mil reais por mês. No questionário, o garoto disse ter muito interesse em fazer uma faculdade e justificou: "Quero estruturar minha vida". No entanto, ele nunca ouviu falar de Sisu, Prouni ou Fies.
Segundo Andrade, se a informação não chegar a esse jovem enquanto ele estiver na escola, a chance de ela vir depois é muito baixa. "E ele vai continuar sendo um lavrador. Não estou diminuindo a profissão, mas o que me preocupa é que esses alunos nem sempre escolhem essas profissões. Eles estão sendo empurrados. Há uma grande falta de perspectiva."
A atual situação da educação pública no país constitui um problema gravíssimo, observa o idealizador do Salvaguarda. "Eu acredito que, se a escola for diferente, os alunos podem se tornar pessoas diferentes. Com o projeto, desejo realmente mudar a educação pública no Brasil. Sei que é complexo, mas não ao ponto de eu não poder tentar. Nada se muda sozinho, nunca."
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