Eleição na Argentina: por que Javier Milei preocupa governo Lula
Se vencer disputa, radical favorito nas pesquisas promete ser dor de cabeça por ameaçar Mercosul e constranger Brasília ao rejeitar Brics, avaliaram fontes do governo, empresários e analistas ouvidos pela BBC News Brasil. Interdependência entre países reduz risco de ruptura.
Quando perguntado a respeito da integração da Argentina ao Brics e sobre que relação uma eventual gestão sua teria com o atual governo socialista espanhol, Javier Milei, o candidato radical que lidera a corrida para as eleições presidenciais argentinas, respondeu com uma de suas frases conhecidas: "Os socialistas não são defensores da liberdade". E se calou quando as repórteres brasileiras insistiram para que ele respondesse se fazia referência ao Brasil ou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Foi na semana passada, no mesmo dia em que o economista, que se autodefine como libertário, já tinha usado, diante de empresários e diplomatas estrangeiros, outra de suas formulações públicas típicas - que "não fará acordo com comunistas" e que sua política exterior será com Estados Unidos e Israel, mas que o empresariado é "livre" para comercializar com quem quiser.
Logo após as eleições primárias argentinas o apontarem como favorito, em 13 de agosto, Milei, da Liberdade Avança (LLA), repetiu que o Mercosul "deve ser eliminado" e que, se eleito, não permitirá que a Argentina seja incorporada ao Brics ampliado - o país acaba de ser convidado ao grupo formado por Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul "graças ao apoio decisivo de Lula", como disse o chanceler argentino Santiago Cafiero.
Se não surpreendem, o conjunto das declarações do presidenciável argentino são avaliadas como "preocupantes" e como merecedoras de "atenção" por setores do governo brasileiro, em Brasília, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil em condição de anonimato.
Empresários e analistas também ouvidos pela reportagem coincidiram que Milei tem potencial para se tornar uma dor de cabeça para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva caso eleito, ainda que todos avaliem que uma ruptura total entre Brasil e Argentina é pouco provável, dada a enorme interdependência entre os vizinhos.
Na Casa Rosada, se cumprir o que tem falado, o candidato pode turbinar o mal-estar já instalado no Mercosul, em meio a uma longa e complicada renegociação do acordo comercial do bloco com a União Europeia. Pode ainda frustrar os planos do governo Lula de ter a Argentina como uma aliada do Brasil no Brics ampliado, já que os dois países seriam os únicos da América Latina na nova configuração do grupo.
Amorim: "A preservação do Mercosul é uma preocupação legítima"
"Tudo é meio imprevisto, em caso de vitória dele", disse uma alta fonte do governo em Brasília. "Ele é o que gera o maior grau de incerteza", disse outro funcionário da administração Lula na capital brasileira.
Procurado pela reportagem, o ex-chanceler e assessor especial da Presidência, Celso Amorim, respondeu por escrito que a relação entre os dois países é um "patrimônio".
"Obviamente não podemos comentar assuntos internos da Argentina, mas a preservação do Mercosul é uma preocupação legítima. É um patrimônio de mais de trinta anos e é parte do patrimônio de paz e prosperidade que criamos e que queremos fortalecer", disse Amorim.
O influente assessor diplomático direto de Lula também comentou a questão do Brics. "Da mesma forma, saudamos o ingresso da Argentina nos Brics, um reconhecimento da importância geopolítica dessa grande nação, que fortalece o poder de negociação de nossa região como um todo", escreveu Amorim.
Três fontes diplomáticas de Brasília complementaram as declarações do ex-chanceler, convergindo ao dizer que hoje já é feita "uma ginástica" para que o Uruguai não deixe o Mercosul. "Imagine se a Argentina também quiser sair, será complicado", disse uma delas.
O Brasil exerce a presidência rotativa do bloco sul-americano em meio a tensões abertas com o governo uruguaio, de centro-direita. O presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou defende abertamente a flexibilização do Mercosul e pressiona para ser autorizado a fazer acordos comerciais isolados com países como a China.
Além da animosidade com Brics e Mercosul, Milei também retiraria fôlego de iniciativas que o governo Lula tenta retomar, como a Unasul, com os países da América do Sul, e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).
Em entrevista recente à agência de notícias Bloomberg, perguntado se poderia se aproximar do presidente Lula, Milei respondeu que não.
"Na verdade, eu acho que é preciso eliminar o Mercosul porque é uma união aduaneira defeituosa que prejudica aos argentinos de bem. É um comércio administrado por Estados para favorecer a empresários que tiram vantagem (...). Onde o Estado se mete faz estragos", disse Milei.
Na mesma entrevista, Milei disse "que não fazemos pacto com comunistas" (em referência à China), mas que o país asiático pode ser sócio do setor privado. "Eu não promoveria a relação nem com China, nem com Cuba, nem com Venezuela, nem com Nicarágua e nem com a Coreia do Norte".
O Brasil e a China são os principais sócios comerciais da Argentina, enquanto Pequim é também um investidor direto de peso no país.
Nos últimos dias, no entanto, enquanto o economista "mantém seu discurso radical", como disse um empresário com negócios na Argentina ouvido pela reportagem, seus assessores tentam amenizar suas palavras à medida que aumentam suas chances de chegar à Casa Rosada.
A economista Diana Mondino, apontada como provável ministra das Relações Exteriores em um eventual governo Milei, disse a interlocutores brasileiros que não se pretende sair do Mercosul, mas que ele seja reformulado e que a relação com o Brasil seria pragmática e entre as prioridades da suposta administração.
"Na hora que ele sentar lá, na cadeira presidencial, caso seja eleito, verá que não poderá se desvencilhar do Brasil. O Brasil é o principal parceiro da Argentina. Ele não pode brigar com o Brasil, como tem sugerido", disse um outro assessor de Lula, sob a condição do anonimato.
"Bofetada"
Seja como for, o professor de Relações Internacionais da Universidade Torcuato Di Tella, Juan Gabriel Tokatlian, disse à reportagem que caso Milei seja eleito e não confirme a adesão da Argentina ao Brics será "uma bofetada no presidente Lula".
"E é preciso lembrar que o Brasil foi, é e será o sócio estratégico da Argentina", disse Tokatlian. Para ele, pelo menos num primeiro momento, os dois países poderiam viver uma reedição do que foi a relação "azeda" entre Bolsonaro e Alberto Fernández - mas na mão inversa e no campo ideológico e das declarações.
As referências de Milei a 'socialistas' e 'comunistas' e ao suposto giro para privilegiar Estados Unidos e Israel na política externa levaram analistas argentinos a recordarem a estratégia do ex-presidente Jair Bolsonaro.
"Milei busca construir uma semelhança com Bolsonaro. Não que seja Bolsonaro, mas ele tenta construir essa semelhança", disse o analista político argentino Raúl Timerman, do Grupo de Opinião Pública (GOP).
Timerman e Tokatlian, da Universidade Torcuarto Di Tella, de Buenos Aires, observaram que é preciso "ficar atento também" ao papel que os setores de segurança pública, inteligência e Defesa (Forças Armadas) teriam em um eventual governo Milei - outra área em que ele poderia buscar ter associação com Bolsonaro, já que sua candidata a vice-presidente, Victoria Villarruel, não repudia os militares que atuaram na ditadura, questiona as políticas de direitos humanos e condena "os grupos guerrilheiros armados" naquele período.
"Pela primeira vez temos uma pessoa na chapa presidencial que é tolerante com as ditaduras e que tem uma visão ideologizada sobre os direitos humanos. A vice-presidente (de Milei) quer reforçar o papel das Forças Armadas no combate ao narcotráfico. É preciso estar atento, acompanhar isso", disse Tokatlian.
Uma fonte do governo Lula em Brasília aponta diferenças "abismais" entre o contexto brasileiro e o argentino e entre Bolsonaro e Milei. As diferenças não descartam, porém, que uma vitória de Milei seja um terremoto para o sistema político argentino. Daí que não só o impacto externo como também as consequências das medidas internas de um futuro governo Milei estão no horizonte de preocupação da administração brasileira, diz uma fonte.
Lula e Massa
Milei, à frente de um pequeno e novo movimento, disputará o primeiro turno da eleição presidencial em 22 de outubro com o ministro da Economia e candidato Sergio Massa, da União pela Pátria (peronismo/kircherismo), de vertente de centro-esquerda, e com a ex-ministra de Segurança do governo Macri, Patricia Bullrich, da coalizão Juntos pela Mudança (Juntos por el Cambio), tradicional oposição ao peronismo e que integrou o governo Mauricio Macri. Outros candidatos estão na corrida à Casa Rosada, mas Milei, Bullrich e Massa são os que teriam mais chances de ser eleitos, de acordo com os resultados oficiais das primárias.
As pesquisas mais recentes, realizadas após as primárias, apontam o crescimento de Milei, com cerca de 32% a 35% das intenções de voto, Massa com cerca de 25% a 26%, e Bullrich com 20,9% e 23%, nos levantamentos das consultorias políticas Analogías e da Opinaia. No entanto, como os levantamentos não previram a possibilidade de Milei como favorito nas primárias, existe cautela em torno das previsões. Os resultados oficiais das primárias deram Milei à frente, mas com pouca diferença para Massa e Bullrich.
Nesta reta final de campanha, o governo Lula tem feito acenos ao governismo de Massa e rebate os questionamentos sobre suposta intervenção na política interna do vizinho.
Na segunda-feira (28/8), em Brasília, o presidente Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, receberam Massa para falar de acordos comerciais e investimentos brasileiros. Ato seguido, a imprensa argentina deu destaque a declarações atribuídas ao presidente brasileiro sobre Milei. "Está mais louquinho que Bolsonaro", teria dito Lula, segundo o jornal Página 12, de Buenos Aires, citando assessores de Massa que o acompanharam na reunião com o presidente brasileiro.
As supostas declarações de Lula ganharam destaque também nas emissoras de televisão local, como na América TV, por exemplo, e a foto de Massa com o presidente brasileiro ilustrou o comunicado à imprensa sobre a reunião distribuído pelo Ministério da Economia argentino.
Uma fonte do governo brasileiro evitou confirmar as declarações de Lula. "Observe que o presidente Lula não fez declarações públicas (como as atribuídas a ele na Argentina). Ele pode ter suas preferências, mas o governo brasileiro terá relação com qualquer um dos candidatos que chegue a ser eleito", disse o alto funcionário.
Preocupação Regional
Além da política externa, as possíveis medidas no âmbito interno em um eventual governo Milei também têm sido acompanhadas não só pela gestão Lula como por governos e políticos da região, além de empresários e analistas.
Entre os planos já ventilados por Milei estão o fim do Banco Central (que seria "dinamitado"), a eliminação de programas sociais, mudanças radicais na legislação trabalhista e nas áreas de saúde e de educação públicas, que deixariam de ser custeadas pelo Estado. O economista propõe um ajuste ainda maior do que o que é hoje exigido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) à Argentina e nega que exista uma crise climática.
"Não é que Milei seja de direita, ele é louco", disse o ex-presidente José 'Pepe' Mujica, um referente para a esquerda da região, à imprensa uruguaia. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, também de esquerda, disse à imprensa colombiana que as declarações de Milei eram similares às de Hitler. Milei reagiu dizendo que "os socialistas não me surpreendem e são parte da decadência".
Os sinais de alerta não vem só à esquerda. A consultoria de risco global Eurasia Group escreveu aos clientes no mês passado: "Milei não tem um plano claro para atingir seus objetivos, e sua provável futura presidência vai ser altamente disruptiva".
A Argentina é um país com ampla e forte estrutura sindical e de movimentos sociais e a preocupação, em relação aos efeitos internos, é sobre qual seria a reação caso os chamados direitos adquiridos sejam afetados pelo próximo governo. Perguntados se os planos internos de Milei geram inquietação, fontes do governo brasileiro disseram, sem entrar em detalhes: "É uma decisão dos argentinos, mas as declarações dele são preocupantes".
Um diretor executivo de uma empresa com negócios no Brasil e na Argentina e que está baseado em Buenos Aires disse que no meio empresarial existe preocupação sobre as "medidas radicais" de Milei.
"Nós entendemos que, com a crise atual, o que as pessoas querem é esse discurso radical. E, em geral, os empresários ficam satisfeitos quando um político diz que a presença do Estado será mínima ou inexistente", disse o empresário.
"Mas Milei nos gera preocupação. O que ele planeja fazer, como a reforma trabalhista, precisa de apoio do Congresso. Hoje ele não tem esse apoio. E como ele faria diante da resistência dos sindicatos e movimentos sociais? E nosso temor é que as medidas econômicas que ele tente aplicar provoquem ainda mais inflação, ou hiperinflação", seguiu.
Segundo dados oficiais, nos últimos doze meses, entre julho do ano passado e julho deste ano, a inflação argentina foi de 113,4%. No âmbito empresarial, contou uma fonte da Bolsa de Comercio de Buenos Aires, a preferência seria por Bullrich, "que é pró-mercado, mas não radical como Milei".
Após as eleições primárias, a situação econômica ficou ainda mais turbulenta. O governo desvalorizou o peso em quase 20%, o dólar paralelo disparou e a expectativa é que a inflação de agosto possa chegar aos dois dígitos, de acordo com economistas.
"Se Milei colocar em prática o que diz, como a reforma trabalhista e a privatização da saúde e da educação, haverá conflitos. E devemos notar que ele não contaria com votos do Congresso Nacional", disse o analista Timerman.
Neste caso, a preocupação, segue o analista, também é sobre como o setor de segurança poderia reagir diante dos possíveis protestos e manifestações - que costumam fazer parte da Argentina.