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"Em um Brasil deserto de lideranças, Lula vai fazer a festa"

13 nov 2019 - 13h41
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Cientista político critica a incapacidade do PT de seguir vida própria sem seu maior líder. Ao mesmo tempo, afirma não haver hoje outra figura que se contraponha ao ex-presidente em capacidade de liderança e articulação.Um deserto. Essa é a imagem utilizada pelo cientista político Jairo Nicolau para descrever o atual cenário político do país. Autor de livros importantes sobre o sistema eleitoral brasileiro, ele acredita que a escassez de lideranças cria o cenário ideal para a atuação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fora da prisão.

"PT está preso a um neoperonismo. É o risco de ficar muito em função de Lula", diz Jairo Nicolau
"PT está preso a um neoperonismo. É o risco de ficar muito em função de Lula", diz Jairo Nicolau
Foto: DW / Deutsche Welle

"Lula está nadando de braçada, não tem ninguém no cenário político brasileiro que se contraponha a ele em capacidade de liderança e articulação. É um território desértico, e ele vai fazer festa", avalia Nicolau em entrevista à DW Brasil.

O pesquisador do Centro de Pesquisa e História Contemporânea do Brasil, ligado à Fundação Getúlio Vargas (FGV), manifesta perplexidade com a dependência do PT em relação a sua maior liderança, o que diz não ser algo saudável. "O partido está preso a esse neoperonismo. É o risco de ficar muito em função do Lula. [A sigla] não se renova."

Por outro lado, Nicolau se assusta também com o arranjo político obtido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. "Não esperava que Bolsonaro aprovasse nada com essa configuração. São brigas diárias em seu partido de sustentação, com pessoas se agredindo, uma coisa incrível", afirma.

"Bolsonaro quebrou todos os paradigmas do presidencialismo brasileiro até agora, na campanha e no governo", acrescenta o cientista político, criticando ainda o tom agressivo e a linguagem chula que marcam o presidente nas redes sociais e em entrevistas.

DW Brasil: Lula sai da prisão mais forte politicamente do que quando entrou?

Jairo Nicolau: Quando entrou, Lula liderava as pesquisas para presidente. É uma análise subjetiva, mas fato é que a saída dele representa um trunfo para a oposição, que está destruída. O território para ele operar é mais favorável, nesse sentido, do que no governo Michel Temer, com aquela barafunda de vozes e atores. Agora, ele sai da prisão e encontra um vazio pela frente.

Bolsonaro pontuava sozinho no país. De repente, alguém aparece em cena. Nesse sentido, ele é mais poderoso, mas não acho que tenha a ver com o processo na prisão, e sim com o país. Ele é uma figura impressionante como líder político. Operando em um território fértil, sem competidor, é uma farra.

Ele não está enfrentando lideranças como Fernando Henrique Cardoso, Leonel Brizola, Miguel Arraes. O país é um deserto. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem pouco mais de 40 anos. Está se saindo bem em seu papel, mas longe de ser uma grande liderança no naipe das grandes figuras políticas dos anos 1980 e 1990.

Lula está nadando de braçada, não tem ninguém no cenário político que se contraponha a ele em capacidade de liderança e articulação. É um território desértico, e ele vai fazer festa, não só por sua competência.

A oposição se fortalece com Lula ou poderá sofrer com a estigmatização do petismo?

É impressionante que, nesse ano sem Lula, o PT não tenha conseguido ter algum destaque como crítico da reforma da Previdência, tema central do governo nos primeiros meses. Tampouco foi capaz de chefiar uma oposição aos temas comportamentais e às políticas públicas mais duras de Bolsonaro. As posições de Tabata Amaral [deputada federal pelo PDT em São Paulo], por exemplo, tiveram maior destaque relativo do que o PT, como bancada.

O partido ficou muito perdido com a derrota e com essa dependência do Lula, que não é saudável. Qualquer partido de oposição que chega em segundo lugar, sobretudo com a impressionante votação do PT, tem que oferecer uma agenda ao país, na economia, no meio ambiente, o que não aconteceu, pois o partido está preso a esse neoperonismo. É o risco de ficar muito em função do Lula.

Ele fundou o PT em 1979, há 40 anos. Por mais que tenha sido o maior partido de massas do Brasil, com capacidade de mobilização muito grande, ficou muito dependente da figura do Lula e seu carisma nesses anos todos. É paradoxal para um partido que é o maior em termos de militância e recursos não se renovar e não criar novas lideranças que ocupem o espaço aos poucos.

O PT é uma grande máquina organizacional, que tem dinheiro, prefeitos, deputados, uma fundação de formação, mas todo mundo sempre dependente do Lula. É uma situação limitadora, não só porque Lula vai envelhecendo, mas porque ele não pode disputar a eleição de 2022.

O partido precisa se renovar. Essa dependência é uma situação estranha para um partido que tem tanto poder e tanta força. Não é o PSL de Bolsonaro, que não precisa de partido, pois a organização é mera formalidade. O PT pode sobreviver sem Lula, mas parece que não quer. A euforia de sábado [após Lula deixar a prisão] não tem a ver só com a suposta reparação de alguém preso injustamente, mas com essa sensação de que o Messi voltou ao jogo. Sem ele, o time não consegue jogar.

A agenda econômica do governo foi um dos alvos centrais de Lula nos primeiros discursos. Ele ainda pode ter adesão junto à massa de trabalhadores urbanos que rejeitou o petismo em 2018 e flerta com o discurso do empreendedorismo?

Lula tem ótimas condições de se comunicar com esse mundo urbano, por sua biografia. Mas o Brasil mudou muito, em termos socioeconômicos, e não voltará a ser o país industrial em que Lula se formou liderança. O PT perdeu para Bolsonaro em ambos os turnos no ABC paulista.

São Bernardo é uma cidade de classe média, com shoppings, serviços. Recentemente, a Ford fechou, não tem grandes indústrias de automóveis mais. O fenômeno dos trabalhadores de Uber e serviços de entrega é recente. Não sei se Lula consegue ajustar o discurso para esses novos trabalhadores precários urbanos, cada um empreendendo à sua maneira. Eu realmente tenho dúvidas.

O sucesso dele está condicionado a se desvincular de uma crise econômica que começou a ser produzida pelo próprio PT. O governo Lula entregou o país com crescimento alto, commodities explodindo e desemprego muito baixo.

Dilma Rousseff conseguiu manter até certo momento, mas entregou um país pior do que recebeu. É claro que, nesse período, os indicadores sociais melhoraram muito, mas em termos de política econômica, a crise começou no governo Dilma, com alta da inflação, juros e desemprego.

Não dá para colocar o desemprego na conta de um governo que está no poder há oito meses. Mas retórica é política. Bolsonaro convenceu o Brasil de que é o novo, fazendo carreira há 27 anos. Depende também do quanto a direita consegue lembrar a sociedade sobre a responsabilidade do PT nessa crise econômica atual.

Como a volta de Lula ao cenário político impacta a agenda do governo?

A gente vive uma situação nova, de um confronto que nunca existiu. Tal como nos filmes de Velho Oeste, são dois inimigos que nunca estiveram juntos na mesma cidade. Pela primeira vez, estarão no mesmo ambiente. Quando Lula conheceu Bolsonaro, ele era um deputado do baixo clero que nunca esteve à altura de um debate com o presidente. Agora, o cenário mudou, estamos diante do maior líder popular de esquerda e o maior de direita que o país já produziu. É um bom embate. O confronto vai começar agora.

Pelas declarações do Lula, ele subestimou esse fenômeno. Acho que ele não percebeu esse Brasil em que a rejeição ao PT é mais acentuada do que quando ele foi preso, com uma polarização agressiva nas redes sociais. O partido, por sua vez, teve muita dificuldade para fazer oposição no primeiro ano de governo. Apesar do interregno do Temer, fazia anos que o PT não estava desse lado.

Quando o Lula fez oposição, era contra Fernando Collor e o PSDB, outra época. Agora, o Brasil virou muito mais para a direita, com um governo bastante conservador, que exige um novo tipo de atitude.

Minha impressão é que os dois ainda estão se estudando, vendo como o adversário vai operar, a intensidade das críticas do Lula, que, por sua vez, deve estar esperando reações por parte do governo. Não dá para fazer muita especulação porque é uma novidade muito grande.

Um aspecto é incontornável: ele vai animar a tropa dele. O PT e pequenos partidos da esquerda que o orbitam, como PCdoB e Psol, ganham vitalidade após o baque da derrota eleitoral e desse primeiro ano difícil de fazer oposição ao Bolsonaro. A esquerda ganhou uma figura que faltava, uma liderança agregadora, capaz de chegar nas cidades e entrar na negociação para montar chapas únicas nas eleições para prefeito, conversar com segmentos diferentes, tentar unidades.

Mas até que ponto a ação do Lula afeta o governo, a economia e a política pública, é difícil falar. A oposição parlamentar é muito circunscrita, são de 130 a 150 deputados, contando com PDT e PSB. Lula não muda isso.

É claro que ele pode fazer um estrago, porque tem muita influência, postura crítica ao governo, apoio dos segmentos mais populares que levam muito em conta a opinião dele. Nesse sentido, ele pode afetar a credibilidade de Bolsonaro como liderança, coisa que ele já fez no primeiro discurso. Mas o sucesso do governo depende pouco disso.

O senhor tem se mostrado surpreso com o arranjo político formado no governo Bolsonaro, que aprova sua agenda no Congresso embora mergulhado em crises permanentes.

É impressionante. Para mim, uma surpresa total. Não esperava que ele aprovasse nada com essa configuração. São brigas diárias no partido de sustentação dele, com pessoas se agredindo, uma coisa incrível. Em meio às baixarias dos filhos com Alexandre Frota e Joice Hasselmann, os projetos são aprovados. Tem uma dimensão circense que parece não contaminar totalmente a política. Fica um bate-boca na tribuna, e depois vota todo mundo junto.

Durante seu governo, ele fez questão de não seguir os cânones sob os quais governos operam no Brasil. Ou seja, montar uma base de sustentação partidária no parlamento e organizar seu governo dando aos partidos o tamanho que eles têm no Congresso.

Tanto nas eleições do Reino Unido como na Espanha, vê-se uma tentativa de reconfigurar um governo de coalizão unitário para implementar políticas. Em todas as democracias, parlamentaristas ou presidencialistas, a ideia de que precisa haver uma base relativamente estável para implementar políticas é o beabá, o que diz o manual.

Até agora, Bolsonaro tem feito questão de não fazer coalizão estável, tampouco oferecer os ministérios do governo aos partidos. Basicamente, são ministérios de pessoas fora da vida partidária, o que não ajuda nem um pouco na articulação e dificulta seu apoio parlamentar.

Além disso, ele não faz qualquer questão de manter certos padrões de etiqueta, a dita liturgia do cargo. Ele vai para o Twitter, agride jornalistas, fala coisas mais pessoais em entrevistas, com linguagem chula. Ele quebra o padrão não só da governabilidade clássica, como também o estilo de ser presidente.

A postura se assemelha à adotada por Collor?

Collor também era uma figura que gostava de chamar atenção, andava de jet ski, mas era uma coisa de estilo. É diferente do tom agressivo que marca Bolsonaro nas redes sociais e em suas entrevistas. Quem iria imaginar que, um dia, um chefe de Estado ia falar sobre a feiura da esposa de outro chefe de Estado. Independentemente de os eleitores gostarem dessa postura, isso gera ruídos.

Alguns ministros e seus filhos operam no mesmo diapasão, do confronto, da linguagem chula. É uma tropa que segue os mesmos cânones. Não tem um filho leve, moderado, que converse, ou um ministro relevante, que faça um estilo mais elegante da negociação política. Fora Paulo Guedes e Sergio Moro, de certa forma, os ministros seguem o estilo truculento dele.

Das pessoas que realmente operam o governo, são poucos os que têm estilo mais conciliador, moderado. Estão sempre destruindo pontes, é incrível. Isso vai estressando o país e se soma a um quadro de tensão permanente. Bolsonaro quebrou todos os paradigmas do presidencialismo brasileiro até agora, na campanha e no governo.

Mesmo nessas condições, ele vem aprovando a agenda econômica com facilidade no Congresso.

O Congresso está chamando um pouco a responsabilidade para si. Se Bolsonaro quisesse fazer o jogo tradicional, seria uma festa, porque é o parlamento mais conservador da história do país. Bastava ele fazer um ajuste e só tocar, mas ele não gosta da vida parlamentar. Ele está ali para animar o circo.

O que ele gosta muito é do confronto, das provocações, quase como se estivesse em campanha. É isso que o alimenta, ele cresce no confronto e encolhe na gestão. Ele prefere delegar a governar o país.

Esse arranjo se sustenta por todo o mandato, ou o cenário é instável?

O cenário é instável, o Brasil vai penar. É um desgaste sem fim. Mas, eventualmente, ele aprende. Ultimamente, ele está mais silencioso. A reação dele ao Lula foi mais leve do que outras vezes. Ele colocou o Moro para falar. Ele tem essa natureza explosiva, mas pode mudar o comportamento, deixar os filhos e outros batendo e se preservar um pouco mais.

Esse estilo belicoso que ele alimentou parece ser seu modus operandi. Talvez, com um pouco menos de conflito por questões pequenas, a sobrevivência dele seria bem mais fácil. É muito ruído, briga com a Globo, universidades, o partido. Ele não consegue fazer política com seu próprio partido.

Do ponto de vista institucional, temos que ir com ele. Não dá para suportar outro impeachment, salvo haja um crime de responsabilidade comprovado.

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