'Espionagem eletrônica pode levar a retrocesso na liberdade criada pela internet'
Diante das denúncias de que cidadãos brasileiros e de diversos países da América Latina estariam sendo alvo de espionagem pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, na sigla em inglês), especialistas alertam para um possível fortalecimento dos argumentos favoráveis a um controle maior da internet - no sentido oposto ao que pregavam os Estados Unidos.
Segundo documentos coletados pelo informante Edward Snowden, o ex-técnico da CIA que vazou informações sobre o programa secreto de monitoramento da NSA - conhecido como Prisma -, o Brasil teve "bilhões" de telefonemas e mensagens (de e-mail) espionados.
Para Greg Nojeim, diretor do centro de estudos Center for Democracy and Technology, em Washington, "há um risco de que agora aumente a regulamentação dos países sobre a internet", fazendo com que a rede mundial sofra restrições regionais, com os países se protegendo de possível intromissão internacional e com isso tirando a liberdade global que a rede poderia ter.
"Os Estados Unidos estão perdendo credibilidade em seu argumento contra a regulamentação da internet por órgãos internacionais. E isso é uma pena, porque para a internet continuar sendo uma ferramenta de livre expressão global, é importante que os governos se mantenham longe do controle da internet", afirmou.
Nojeim considera "preocupantes os pedidos pela internacionalização ou nacionalização do controle da internet porque pode ser um retrocesso à liberdade de expressão no mundo".
Intromissão
Segundo os documentos vazados por Snowden, a NSA teria acesso a uma enorme quantidade de dados provenientes de conversas individuais de usuários de internet e telefonia.
O vazamento também revelou que o programa Prisma permitia espionar os servidores de nove das maiores empresas de tecnologia, incluindo Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, PalTalk, AOL, Skype, YouTube e Apple.
As empresas negaram conhecimento do monitoramento de dados pela NSA. O diretor da agência de segurança dos Estados Unidos, Keith Alexander, disse que as operações de escuta têm ajudado a manter a segurança dos cidadãos americanos, mas se negou a dar detalhes.
Ao comentar as declarações de Snowden, o presidente Barack Obama disse que é impossível ter 100% de segurança com 100% de privacidade.
O chamado Patriot, a lei antiterror aprovada nos Estados Unidos após os ataques de 2001 ampliou os poderes de intromissão das autoridades americanas.
Greg Nojeim comentou que a Constituição americana prevê que o governo deva ter motivos plausíveis para vigiar comunicações de cidadãos americanos dentro do país. Outras nações têm regulamentações parecidas. "As coisas são diferentes é na arena internacional, onde as regras são mais frouxas", disse Nojeim.
Ele afirmou ainda que a UIT (União Internacional de Telecomunicações, agência das Nações Unidas especializada em tecnologias de informação e comunicação) atualmente ensaia assumir um papel regulatório sobre a internet e criticou a possibilidade. Segundo ele, as autoridades de segurança e vigilância é que devem ser controladas por leis "para que os cidadãos se sintam seguros de que só estarão sendo vigiados, se houver razão para isso".
Direito à privacidade
Segundo especialistas, a alternativa à maior regulamentação da internet seria uma mistura de pressão internacional, das sociedades civis e das empresas.
"Acho que o governo brasileiro deve, junto com outros governos, pressionar os Estados Unidos a revelar mais sobre os critérios usados para a vigilância de não-americanos fora dos Estados Unidos", afirmou Nojeim.
Ele destacou também o valor da privacidade para os negócios. "As empresas precisam da confiança de seus clientes para vender. E os clientes vão continuar pressionando para saber detalhes sobre como seus dados estão sendo vigiados. Nos Estados Unidos, a Microsoft e o Google entraram na Justiça pedindo mais detalhes sobre a vigilância da NSA a seus clientes, acho isso muito positivo", acrescentou.
De acordo com a ONG britânica Privacy International outro ponto crucial seria a atuação da sociedade civil pedindo mais transparência e respeito à privacidade na internet. A organização entrou nesta semana na Justiça com um processo contra a espionagem de cidadãos pelo governo britânico em parceria com a NSA.
"A vigilância maciça e indiscriminada desrespeita o direito humano mais básico à privacidade. A escala e o escopo deste programa, que monitora todo o povo britânico e grande parte do mundo, não podem ser justificados como necessários ou proporcionais", afirmou Eric King, pesquisador da Privacy International.
A ação judicial, sob o IPT (Investigatory Powers Tribunal) de Londres, apresenta duas acusações ao governo: não dispor de mecanismos legais para o público ter acesso aos dados acessados pelas autoridades britânicas e repassados à NSA (via o programa Prisma), e pela interceptação e arquivamento indiscriminados de dados via escutas de cabos submarinos de fibra óptica (pelo programa Tempora).
Na cena internacional, representantes da sociedade civil apertaram o lobby no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra.
No início de junho, as ONGs Association for Progressive Communications e Repórteres sem Fronteiras entregaram um documento com a assinatura de outras 150 organizações internacionais pedindo uma resposta do Conselho às denúncias de espionagem da NSA.
As solicitações incluíam: a organização de uma sessão especial sobre o tema, um novo comunicado sobre o direito à privacidade e pressão aos Estados-membros da ONU para reportarem publicamente suas práticas e leis de vigilância de comunicações eletrônicas e telefônicas.
Assunto sensível
Em nota, a UIT declarou que o assunto era "sensível" e se negou a intervir no caso denunciado pelo jornal O Globo no domingo de que a agência de segurança americana teria montado bases de monitoramento de mensagens eletrônicas e de rastreamento telefônico em Brasília e em Nova Déli, a capital da Índia.
"A UIT não comenta leis ou ações nacionais. O secretariado da UIT reconhece que este é um assunto sensível e tem confiança de que um acordo pode ser alcançado dentro do espírito de consenso e cooperação que caracteriza a UIT", informou o comunicado.
O texto ainda declarou que "o papel da UIT é apoiar e aconselhar os países com base nas melhores práticas internacionais".
A nota da UIT se referia ao pronunciamento do ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota. No domingo, em Paraty, ele condenou a denúncia de espionagem de comunicações eletrônicas e telefônicas de brasileiros pela NSA.
Segundo ele, o Brasil pretendia "promover no âmbito da UIT o aperfeiçoamento de regras multilaterais sobre segurança das telecomunicações".
E o governo brasileiro também queria propor à ONU "iniciativas com o objetivo de proibir abusos e impedir a invasão da privacidade dos usuários das redes virtuais de comunicação, estabelecendo normas claras de comportamento dos Estados na área da informação e telecomunicações para garantir segurança cibernética que proteja os direitos dos cidadãos e preserve a soberania de todos os países".
Segundo a UIT, nos últimos anos, vários países têm submetido propostas relacionadas a questões de segurança para vários órgãos das Nações Unidas.
Com sede em Genebra, a agência é composta pelos 193 países membros da ONU e por mais de 700 organizações do setor privado e acadêmico. Fundada em 1865, em Paris, foi criada para padronizar ondas de rádio, e é essencialmente técnica, mas tem sido cada vez mais cortejada por alguns países para se tornar um órgão internacional regulador da internet.