Ex-árbitro alvo de racismo: 'não sou o salvador da pátria'
O caso de Márcio Chagas da Silva, que foi xingado e teve o carro danificado por chutes e bananas no RS, expôs mais um capítulo na lutra contra o racismo no Brasil
Pouco mais de dois meses do árbitro de futebol Márcio Chagas da Silva ter sido ofendido por torcedores do Esportivo e ter encontrado seu carro depredado e cheio de bananas por cima, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, não há suspeitos pelos crimes. Até o final da semana passada, a delegada titular da 1ª DP, Maria Isabel Zerman, responsável pelo caso, informou que dois suspeitos, indicados pelo clube, foram ouvidos, mas liberados por falta de provas. Nesta semana, a polícia deve ouvir três testemunhas em Porto Alegre, indicadas pelo advogado de Márcio.
Na expectativa de identificar novos suspeitos, a delegada explica que, caso sejam encontrados, esses não serão indiciados por racismo, crime inafiançável, mas por injúria qualificada, cuja pena é menor, e a fiança varia entre um e 100 salários mínimos.
O clube acabou punido com a perda de cinco mandos de campos, multa de R$ 30 mil e a perda de nove pontos, o que provocou o rebaixamento para a Divisão de Acesso no campeonato gaúcho.
Em entrevista ao Terra, Márcio relembrou o episódio ocorrido na serra gaúcha, contou o que o motivou a registrar a ocorrência e o peso das ofensas na sua decisão pela aposentadoria aos 37 anos - agora é comentarista na RBS TV, canal local. "Eu sei que meu filho provavelmente irá passar por isso. Mas ele vai ter que ter uma postura firme, porque se eu ensinar que ele tem que deixar passar, vai ser mais um na multidão."
Falou ainda que o Tribunal de Justiça Desportiva "não leva a sério" os relatos de racismo. Para Márcio, o preconceito e a violência nos jogos também são uma questão de educação, e é preciso rever a postura dos torcedores nos estádios, onde xingar e ofender o outro é "bonito". O ex-árbitro também criticou o tratamento dado aos juízes de futebol: "Somos cavaleiros solitários".
Veja os principais trechos da entrevista:
Terra - As ofensas em Bento Gonçalves começaram logo que você entrou em campo? Isso lhe abalou?
Márcio Chagas da Silva - É corriqueiro que aconteça isso por ali. Já era esperado, não foi nenhuma novidade.
Terra - Como terminaram os outros casos de racismo em que você foi ofendido e que tiveram grande repercussão?
Márcio - Teve um em 2005, quando o treinador da equipe do Encantado me chamou de "negro coitado". Expulsei ele naquele momento. Teve um julgamento na Federação (Gaúcha de Futebol) em que a punição foi pífia. Num primeiro momento, ele foi punido com 15 dias e teve uma repercussão maior em função de uma matéria da Zero Hora (jornal regional) que estava sendo feito sobre racismo no futebol naquele período. Depois, em novo julgamento, ele foi suspenso por 60 dias.
Depois, em 2006, foi com um atleta do Esporte Clube Cruzeiro. No final do primeiro tempo, eu expulsei ele, e ele me chamou de “negro macaco ladrão”. Só que o policiamento estava entrando no campo e já autuou ele. No final da partida, fomos todos até o Palácio da Polícia pra prestar queixa, e ele só não foi preso em flagrante porque era véspera de eleição, mas depois respondeu processo e pagou em cestas básicas.
Dessa vez extrapolou pela gravidade. Além dos xingamentos, teve o fato de terem afundado as portas do meu carro a pontapés e terem posto bananas por cima do veículo e no cano de escapamento. Eu sempre levei (as denúncias) adiante. Só que, dessa vez, houve essa brutalidade maior.
Terra - Os xingamentos já não eram novidade pra você, mas qual foi a primeira sensação ao chegar no carro e ver as bananas e o carro depredado?
Márcio - Eu fiquei chocado simplesmente. Pela covardia do fato ter acontecido de forma sorrateira. Eu estava trabalhando, e tudo foi feito na calada do trabalho. Não me deu a oportunidade de me defender. Preferia ter tomado um soco na cara, e ter tido a oportunidade de me defender, de bater e apanhar, mas me defender. Foi algo pensado, não foi algo espontâneo. Foi maquinado por alguém.
Terra - Não foi no calor da hora...
Não foi no calor da hora! Até porque a equipe venceu a partida. Não se abordou nenhum equívoco que eu pudesse ter tido na partida e, se tivesse, faz parte do jogo a arbitragem errar, e não teve erro algum.
Então foi algo já pensado, planejado pra me atingir de forma que eu não pudesse ver e me chocasse ao me deparar com meu carro com as portas afundadas a pontapés, as bananas postas por cima do meu carro e no cano de escapamento, que foi o mais grave ainda! Porque essas bananas não saem do veículo, poderia ter ocasionado um acidente gravíssimo, já que nós tínhamos que descer a serra.
Terra - Como você enxerga o futuro do seu filho em relação ao racismo no País?
Márcio - A minha preocupação maior foi muito motivada pela existência dele. Em fazer prevalecer uma posição firme porque eu sei que ele vai passar, assim como meus pais me disseram que eu teria que ter força e coragem para encarar esses fatos (atos de racismo), que já são históricos no nosso País, desde o período escravocrata. Ele diminuiu um pouco, mas não vai terminar. A alforria do negro tem 126 anos, se for analisar é recente. As pessoas dizem que "no estádio pode tudo". O estádio nada mais é do que um segmento da sociedade. Ele não tem nada que fuja às regras do convívio do dia a dia. Só que, no estádio, externalizam tudo o que pensam, são racistas em potencial e extravasam seu racismo.
Terra – Em março, um pouco depois do episódio em Bento Gonçalves, a torcida Geral do Grêmio emitiu uma nota dizendo que continuaria usando o termo “macaco” para se referir aos colorados porque o termo não carregaria conotação racista e inclusive é adotado pelos próprios colorados. O que você acha disso? É possível tirar o peso racista do termo?
Márcio - Eu tenho uma opinião completamente adversa ao pensamento dos torcedores do Grêmio nesse sentido. O fato da torcida do Inter se intitular “macaco” e adotar o símbolo se restringe aos 90 minutos dentro do estádio. Não que as pessoas se identifiquem como macaco, um ser involuído. Eu particularmente penso que é uma manifestação racista sim. Porque o Inter, na sua história, foi o primeiro clube no Rio Grande do Sul a aceitar jogadores negros. Não que não tenha sido racista também, porque o futebol iniciou racista no País. Nenhum clube aceitava negros, o primeiro a aceitar foi o Vasco da Gama. Os clubes começaram a aceitar os negros porque viram uma irreverência, uma qualidade técnica, uma malícia pra jogar futebol.
Eu particularmente acho de última uma torcida ofender a outra, tanto no sentido racial quanto no sentido homofóbico, porque também tem manifestações homofóbicas por parte de torcedores do Internacional aos torcedores do Grêmio. Então é uma questão educacional. Eu não vou mudar isso, vou fazer a minha parte, como eu fiz, como cidadão. Sei que não sou o salvador da pátria. As pessoas devem ter uma conscientização de saberem que o estádio não é uma praça de guerra, é entretenimento, é um local de esporte e, independentemente da agremiação pra que se torça, passados os 90 minutos, cada um vai retomar a sua vida e fim de papo.
Terra- Você ficou satisfeito com a punição ao clube?
Márcio - Fiquei satisfeito com a punição independentemente do clube que fosse pelo simples fato de demonstrarem uma preocupação com esses atos que não vêm crescendo, eles sempre aconteceram, só que hoje estão sendo denunciados com mais frequência.
Agora, com relação ao Esportivo, o clube teve um mês e meio pra identificar as pessoas e provavelmente eles saibam quem fez as manifestações e a pessoa que fez a depredação do meu veículo. Mas se omitiu porque normalmente quem agride tem o pensamento de que “não vai dar nada”, que "vai morrer na casca”, “aconteceu, a gente paga o veículo dele e cala a boca que tá tudo resolvido”. E foi esse o pensamento (do clube), tanto que no julgamento, o advogado do Esportivo chegou a fazer uma relação de que eu, como árbitro experiente, estava acostumado a escutar xingamentos de “macaco” e não me ofenderia por isso, que a maior ofensa seria o fato do meu carro teria sido alvejado, que como diz a propaganda da Ipiranga, "todo brasileiro é apaixonado por carro" e com certeza foi o único fato que me levou a ficar brabo. Isso mostra o quanto as pessoas encaram o racismo de forma banalizada.
Terra - Você ficou com algum receio de ser novamente agredido?
Márcio - Tenho muito receio, muito receio. Eu sei que o fato de ter exposto tudo o que aconteceu de uma forma pública pode me ocasionar qualquer situação mais grave, mais adiante, uma represália, uma agressão. As pessoas que agridem, quando são denunciadas, se sentem ofendidas ainda.
Terra – Qual foi o peso desse episódio na sua aposentadoria?
Márcio - Pesou bastante no sentido de refletir tudo o que eu vinha construindo nesses 15 anos. Algumas frustrações em relação à arbitragem também. Porque o árbitro é um cavaleiro solitário o tempo inteiro. Ele luta constantemente sem ter o mínimo de apoio. Eu vou falar por mim e sei que tem outros colegas que pensam assim, mas têm medo de falar. Como eu não estou mais dentro, eu posso de repente contribuir de uma forma positiva. O árbitro de futebol hoje, no Brasil, não tem acompanhamento de um preparador físico, não tem local específico de treinamento, tem que pagar sua academia, nutricionista, psicóloga, tem que pagar tudo pra investir em algo que de repente não terá retorno. Sinceramente acho um absurdo pela cobrança que a atividade tem. E pela importância que o árbitro tem no cenário do futebol, nós decidimos uma partida. Teríamos que ter um acompanhamento, um tratamento diferenciado, como se fôssemos atleta.
Além disso, o fato de Bento Gonçalves refletiu na minha vida íntima. Com relação ao meu filho, minha mãe, que ficou chocada, e minha esposa também. Isso tudo me fez questionar se valeria a pena continuar ainda lutando de uma forma solitária por uma coisa que daqui a pouco não estava mais sendo benéfico. E isso tudo aconteceu sem ter tido problema na minha arbitragem, tu imagina se tivesse.
Terra - Já que você citou a sua mãe, você entende de uma forma diferente aquele xingamento comum nos estádios e uma ofensa racista?
Márcio - Olha, eu encaro os dois xingamentos como sendo de última. Tu chamar alguém de “filha da puta” com uma normalidade como se fosse uma coisa comum, eu acho absurdo. Normalmente, esses pais que vão aos estádios levam seus filhos e, desde cedo, as crianças vão aprendendo esse tipo de manifestação. E depois só transformam isso no seu dia a dia, na escola, chamando o professor, o colega, qualquer outra pessoa porque é “bonito”. No estádio de futebol, se canta, se xinga, se ofende, e depois só reproduz isso no dia a dia. Particularmente, acho que nós devíamos rever as posturas nos estádios. Os estádios de futebol hoje são palcos de guerra praticamente. Agora, na sexta-feira, um torcedor foi morto com o arremesso de um vaso. Pô, imagina se fosse o teu filho, que foi torcer pra sua equipe e não vai voltar pra casa porque, numa briga, recebeu um vaso na cabeça? É de uma estupidez tremenda! Só porque torce pra uma agremiação diferente da do outro.
Terra - Você acha que o fato de ter ascendido como um juiz respeitado no meio ajuda a minimizar o preconceito contra você, mesmo que, como vimos, ainda aconteça? O preconceito acaba sendo maior para quem não tem um destaque ou por meio de seu trabalho?
Márcio - Com certeza. Quando tu tem um determinado destaque, as pessoas (racistas) ficam com mais receio pra se manifestar. Isso é evidente. Mas o fato de eu ter me manifestado foi também por pensar nas pessoas que passam isso no seu dia a dia. Muitas vezes ou quase sempre não conseguem um espaço de manifesto contrário até porque não tem oportunidade ou notoriedade pra desaprovar o que passam em seus ambientes de trabalho ou nas ruas. Muitas pessoas se identificaram comigo porque passam isso no dia a dia. Não posso me omitir achando que estou numa condição diferenciada das demais, que eu não tenha que me envolver porque pra mim tá bom, “deixa assim”. Não, não deixo assim porque eu penso o quanto essas pessoas sofrem, o quanto meus pais sofreram, num período muito mais complicado ainda.
Eu sei que meu filho provavelmente irá passar por isso, mas acredito que não será mais tão acentuado esse preconceito. Mas ele vai ter que ter o discernimento de saber lidar com essa situação e ter uma postura firme, porque se eu ensinar que ele tem que deixar passar, vai ser mais um na multidão.
Terra – A campanha iniciada logo após o Daniel Alves ter comido a banana, com muitas pessoas adotando a #somostodosmacacos com uma boa intenção, teve uma repercussão enorme. Independentemente do envolvimento da agência de propaganda do Neymar, o que você acha de levar adiante uma campanha usando o termo “macaco”?
Márcio - A resposta imediata do Daniel Alves foi sensacional. Achei uma ousadia da parte dele, uma irreverência, uma espontaneidade, algo inusitado. Quanto à campanha #somostodosmacacos, sinceramente acho um desfavor ao combate ao racismo, que só atenua e favorece com que as pessoas (racistas) continuem a se manifestar. Adotar o #somostodosmacacos faz cair por terra todo combate ao racismo porque dá a entender que estamos aceitando ser chamados de macacos, quando nós mesmos sabemos que isso é uma ofensa. Ser chamado de macaco direcionado ao negro é sempre de forma pejorativa, nos tratando como seres irracionais. E se tu observar a campanha, 90% das pessoas que postaram comendo a banana eram brancas. Essas pessoas brancas não vão ser chamadas de “macaco” amanhã; eu, por ser negro, vou ser chamado de “macaco”. Então eu não posso alimentar essa campanha achando benéfico porque, pra etnia negra, não serve de forma alguma no combate ao racismo que já é histórico, em que a gente só quer uma única coisa: respeito, mais nada do que isso.
Terra – Você acha que nem o fato de levantar a questão é benéfico? Ela poderia ter sido levantada de outra forma?
Márcio - Acredito que se fosse #somostodosbrasileiros ou #somostodosmestiços seria muito mais salutar. Se tu for observar, qual é a característica do brasileiro? É uma mistura. Acho benéfico que a gente toque nesse assunto que normalmente é velado, mascarado. As pessoas dizem que não existe racismo, mas existe sim, de uma forma muito forte, velada. Eu até preferiria que fosse explícito, como foi nos Estados Unidos uma época, porque pelo menos eu saberia os lugares que poderia frequentar porque seria bem aceito, e não aquele racismo velado. Com certeza esse cara que jogou a banana no Daniel Alves só tomou essa atitude porque estava em bando, na torcida, na rua ele não faria isso - e ainda pararia pra tirar foto com ele.
Muitas pessoas se sentem valentes em bando e extrapolam a sua covardia, foi o que aconteceu comigo em Bento Gonçalves. Na minha frente, nenhum teve coragem, quem se manifestou estava atrás de uma tela, não me dava a possibilidade de um revide. Isso é muito grave. Dizer depois que “aqui não tem isso (racismo)” ou entrar com uma faixa “O Esportivo é contra o racismo” é uma mentira! Eu não quero faixas nem campanha, quero ações que conscientizem as pessoas de que o convívio entre negros, índios, japoneses, italianos têm que ser aceito porque o meu dinheiro é igual ao deles, e o deles igual ao meu. Não tem diferença.
Terra - Mas é uma questão de dinheiro?
Márcio - Falo isso num tom de ironia porque, para consumirmos, nosso dinheiro não tem cor. Óbvio que o preconceito independe da situação financeira, pois a grana facilita o acesso fazendo com que os preconceituosos sejam mais tolerantes nos seus ataques.