'Exército de likes' do Brasil pode influenciar chances de 'Ainda Estou Aqui' no Oscar?
Campanha de fãs nas redes sociais dão visibilidade ao filme Ainda Estou Aqui no Oscar. Mas será que o burburinho digital pode ter alguma influência na votação membros da Academia?
Duas semanas após ganhar o Globo de Ouro, a atriz Fernanda Torres concedeu uma entrevista ao programa Jimmy Kimmel Live, um dos principais talk shows dos Estados Unidos.
O vídeo, publicado no dia 17 de janeiro, já foi visto mais de 3,5 milhões de vezes, uma marca bem acima de outras entrevistas com celebridades publicadas no perfil do programa no Instagram.
Na semana anterior, por exemplo, um vídeo com a atriz e cantora Selena Gomez alcançou 450 mil visualizações.
Brasileiros também lotaram de comentários as publicações da entrevista nas redes sociais do talk show.
"Foi aqui que invocaram a tropa?", disse um espectador no canal do YouTube do programa.
Não é de agora que os brasileiros parecem determinados a fazer bombar toda e qualquer postagem nas redes sociais sobre o filme Ainda Estou Aqui e sua protagonista, ambos cotados a estar entre os indicados ao Oscar que serão anunciados na manhã da quinta-feira (23/1).
Uma foto da brasileira publicada no perfil oficial da publicação, ainda em novembro, bateu 1 milhão de curtidas e dezenas de milhares de comentários em menos de 24 horas.
Na madrugada de 6 de janeiro, logo após Torres ganhar o prêmio de Melhor Atriz em Drama no Globo de Ouro, brasileiros comentaram e curtiram em pedo todas as publicações do perfil da premiação no Instagram.
No vídeo que o Globo de Ouro publicou com o discurso da atriz americana Demi Moore, que tinha acabado de ser premiada na categoria de Melhor Atriz em Comédia ou Musical, a maioria dos mais de 3 mil comentários era de brasileiros impacientes pedindo que fosse publicado também o discurso de Fernanda.
"Poste logo a Fernanda Torres ganhando para eu poder engajar bastante e ir dormir", escreveu um brasileiro.
"O adm [administrador da página] sabendo que irá fazer o maior post de sua história como social media", escreveu outro.
Quando finalmente foi publicado, o corte foi o mais assistido e comentado no perfil da premiação naquela noite. Hoje, soma mais de 77 milhões de visualizações e de 326 mil comentários.
O "exército de likes" de brasileiros que está engajado em promover — e defender — Fernanda Torres e Ainda Estou Aqui já deu algumas outras demonstrações do seu poderio.
O crítico francês Jacques Mandelbaum, do jornal Le Monde, sentiu na pele como é estar na mira da "tropa".
Ele publicou uma resenha negativa de Ainda Estou Aqui, em divergência com a voz quase unânime dos críticos internacionais sobre o filme. Novamente, brasileiros inundaram a rede social do jornal de comentários.
"Tô vendo que o Brasil tem mais uma página pra derrubar", disse um deles.
"Provocaram, agora aguentem", disse outro.
"Pão de queijo é melhor que croissant", provocou mais um.
O jornal apagou a maioria dos comentários dos brasileiros.
Outro alvo foi a apresentadora argentina Paula Galoni, cujo perfil chegou a cair após pressão de brsileiros.
No dia 10 de janeiro, Paula, Victoria Casaurang e Mercedes Cordero fizeram piadas depreciativas sobre a aparência da atriz no programa Vamos Las Chicas.
Uma delas disse que Fernanda Torres não estava convencida de que ganharia o prêmio e, por isso, não teria penteado o cabelo para a ir à cerimônia do Globo de Ouro.
A pressão foi tanta que elas tiveram que fechar os comentários de seus perfis após o episódio.
O comportamento e a influência dos brasileiros nas redes sociais é uma das diferenças em relação à última vez que o Brasil disputou um Oscar, em 1999 com Central do Brasil, também de Walter Salles, e estrelado por Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres.
Essa "tropa" do Brasil pode ter alguma influência sobre como votam os quase 9,5 mil membros da Academia — entre eles, 53 brasileiros?
Afinal, como funciona a votação do Oscar e qual o peso que as curtidas nas redes pode ter na hora em que são definidos os indicados e vencedores?
A BBC News Brasil conversou com especialistas na indústria cinematográfica que votam em premiações internacionais para entender se tanto engajamento pode ajudar a fazer com que o Brasil ganhe uma estatueta inédita.
Quem define os indicados e ganhadores do Oscar
O Oscar, mais importante prêmio do cinema, é concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, formada por profissionais da indústria do cinema.
Ou seja, diretores, produtores, atores e técnicos de diversas áreas votam para definir quem vai ser indicado e premiado.
A Academia passou por transformações significativas nos últimos anos, especialmente após a campanha #OscarsSoWhite (#OscarsTãoBrancos, em tradução livre), lembra a crítica de cinema Cecília Barroso, editora do site Cenas de Cinema e votante no Globo de Ouro.
O movimento expôs, em 2016, a falta de diversidade racial entre os indicados e vencedores da premiação.
"A Academia foi envelhecendo e enfrentava um problema: a predominância de homens brancos. Isso gerou questionamentos sobre a falta de representatividade e como isso refletia nas indicações", diz.
A Academia tomou então medidas para tornar seu rol de membros mais diverso, como incluir mais profissionais de fora dos Estados Unidos, mulheres e negros.
O número de profissionais aptos a votar aumentou em 65% em uma década, segundo levantamento do jornal Los Angeles Times.
Barroso destaca que essa mudança, associada a ascensão do movimento de combate ao abuso sexual #MeToo em 2017, aumentou a diversidade não só da Academia, mas das listas de indicados e vencedores.
"Começamos a ver essa transformação nas próprias escolhas da premiação", diz a crítica.
O documentarista e antropólogo Emílio Domingos, diretor de filmes como Black Rio! Black Power! (2023) e Favela é Moda (2019), ingressou na Academia neste novo momento, em 2022.
"Pessoas que faziam parte da Academia sugeriram o meu nome. Mandei meu currículo e minha filmografia, que foram submetidos a uma análise", conta Domingos.
"O Oscar representa uma indústria audiovisual muito forte, a mais tradicional no mundo, e eu faço filmes independentes sobre juventude negra e periferia. Foi um inusitado, mas, ao mesmo tempo, honroso."
Ele é hoje um dos 53 brasileiros aptos a votar no Oscar e participa agora de sua terceira edição.
"É importante ocupar esses espaços, trazer esses olhares de mais pessoas negras, latino-americanas e de outros locais do mundo para ampliar esse olhar sobre o que é o cinema", diz Domingos.
"Não podemos desconsiderar o quanto o Oscar dita padrões estéticos e padrões do cinema. Isso é inegável."
Como funciona a votação do Oscar
O caminho para um filme no Oscar começa com a elegibilidade.
Ou seja, para ser considerado para a premiação, uma produção deve atender critérios específicos para cada categoria, entre eles de duração, exibição e formato.
Por exemplo, para se tornarem elegíveis, os filmes devem ter estado em cartaz no ano anterior em uma sala de cinema comercial, por sete dias consecutivos, em pelo menos uma das seis principais áreas metropolitanas dos Estados Unidos — Los Angeles, Nova York, Baía de São Francisco, Miami e Atlanta.
Na categoria de Melhor Filme Internacional, cada país pode submeter apenas um filme à categoria, escolhido por uma comissão nacional.
O filme indiano Tudo que Imaginamos Como Luz, por exemplo, que concorreu a prêmios como o Globo de Ouro, não foi indicado pela Índia para o Oscar — o que o tornou inelegível para essa categoria.
No Brasil, essa seleção é feita pela Academia Brasileira de Cinema, que todos os anos nomeia uma comissão responsável pela indicação.
Em algumas categorias, como Melhor Filme Internacional, Documentário e Efeitos Visuais, existe uma votação preliminar à nomeação, em que é elaborada uma lista, com 10 a 15 candidatos por categoria.
Essa short list, no jargão da indústria, é divulgada em dezembro e é definida por comitês especializados.
Ainda Estou Aqui foi pré-selecionado para a categoria de Melhor Filme Internacional e Fernanda Torres aparece na lista de cotados para nomeação de Melhor Atriz.
Com isso, começa a votação para determinar os indicados de cada categoria.
Nesta etapa, apenas os membros da respectiva área indicam os candidatos — atores indicam atores, editores de filmes indicam editores de filmes, e assim por diante.
A exceção é a categoria de Melhor Filme, em que todos os membros podem votar.
No caso de Filme Internacional, como é o brasileiro, a votação é feita por um comitê.
Os membros escolhem seus favoritos em cédulas virtuais, em ordem de preferência. Os cinco mais votados de cada categoria se tornam os indicados, que serão divulgados nesta quinta.
Para decidir, os votantes têm acesso a uma plataforma do Oscar para assistir a todos os filmes.
"É uma experiência intensa de descobrir novos realizadores no mundo inteiro, ver ter contato direto com uma produção muito atual", diz Domingos.
Com os indicados definidos, se inicia a votação final, que também é online. Nesta fase, todas as 23 categorias do Oscar estão disponíveis para votação dos membros.
Os votos são apurados pela empresa de auditoria PriceWaterhouseCoopers (PwC).
Os resultados são revelados na cerimônia do Oscar, que será neste ano em 2 de março.
A força da campanha
Neste processo de indicação e votação, é possível que uma torcida, como a "tropa" de brasileiros, influencie a premiação?
Para os especialistas na indústria do cinema ouvidos pela reportagem, a resposta é sim.
Isso porque a campanha de um filme para o Oscar é uma peça fundamental em sua trajetória na premiação.
Estúdios investem em marketing para conquistar os votos dos membros, promovendo exibições exclusivas e eventos com elencos e diretores.
Mas o caminho para o Oscar não depende apenas do mérito do filme ou da atriz, ressalta a crítica de cinema Isabela Boscov.
Em entrevista à BBC nesta semana, ela afirmou que fazer campanha — participação em eventos, entrevistas, aparições públicas, sessões do filme com debates para votantes da premiação — é crucial para levar o prêmio mais importante do cinema para casa.
Emílio Domingos relata que, como membro da Academia, é impactado pelas campanhas.
"Quando chega o período de novembro a dezembro, já começo a receber mensagens de pessoas que são candidatas do mundo inteiro", diz o documentarista.
"As próprias redes sociais têm posts patrocinados que começam a aparecer na timeline do meu Instagram. Então, sem dúvida alguma, é importante existir uma campanha massiva para os filmes serem vistos", relata.
Para a crítica Cecília Barroso do sucesso de uma candidatura ao prêmio depende diretamente desta campanha, que inclui entrevistas, sessões comentadas e participação em eventos de destaque.
"É fundamental. Diria que mais de 70% do que faz o filme é campanha", diz Barroso.
No caso de Ainda Estou Aqui e de Fernanda Torres, o engajamento dos brasileiros nas redes sociais é elemento crucial para dar visibilidade internacional a filmes que não são produzidos nos Estados Unidos ou Reino Unido, pontua a crítica.
Por isso, ressalta Barroso, o apoio do público e o barulho nas redes sociais podem fazer diferença.
Ela diz que postagens constantes sobre o filme e a atriz têm gerado um efeito cascata, ampliando a presença da produção brasileira na mídia internacional.
"Esta movimentação está fazendo com que a imprensa estrangeira corra atrás da Fernanda Torres para entrevistas", explica Barroso.
"E a Sony, que é a distribuidora do Ainda Estou Aqui, tem feito uma campanha grande e boa. Além disso, a Fernanda Torres é muito carismática e tem conquistado os jornalistas, que estão encantados com ela."
A documentarista e jornalista especializada em cinema Flavia Guerra, que também vota no Globo de Ouro, também acredita que as curtidas em massa nas redes podem ajudar a dar visibilidade ao filme e a sua equipe.
Mas ela pondera que isso não necessariamente vai determinar o voto dos membros da Academia.
"A relação é mais indireta. Quanto mais hypado o filme está, quanto mais as pessoas encaminham vídeos e fotos, mais ele fica na cabeça dos votantes", explica Guerra.
"Isso pode levar alguém a assistir à produção, mas não significa que isso vá garantir um voto."
Para ela, o reconhecimento de Fernanda Torres no Globo de Ouro foi um marco essencial para colocar Ainda Estou Aqui e a atriz no radar dos eleitores do Oscar.
"Tenho certeza de que, quando a Viola Davis anunciou a vitória de Fernanda Torres, muitos votantes do Oscar pararam e pensaram: 'Preciso assistir a esse filme'. Esse tipo de visibilidade é crucial."
Guerra também pontua que campanhas consistentes são fundamentais para sustentar a presença do filme, algo que envolve não apenas engajamento online, mas também ações estratégicas de marketing.
No entanto, ela pondera que os votantes do Oscar têm critérios próprios e podem não ser diretamente influenciados pelo apelo popular.
"O engajamento brasileiro ajuda a amplificar o filme no exterior, mas o voto final considera aspectos técnicos, narrativos e artísticos, e não apenas a popularidade."
Ainda assim, Guerra acredita que a indicação de Fernanda já seria uma vitória significativa para o cinema brasileiro.
"É improvável, mas não impossível que ela vença. Só o fato de estar na corrida já representa um grande reconhecimento."
Emílio Domingos, por sua vez, comemora o clima de Copa do Mundo em torno do cinema e a redescoberta da paixão por parte do público.
"O cinema, de maneira geral, vem passando por uma crise de público. Para mim, enquanto cineasta, é importante ver que uma nova safra de filmes brasileiros tem levado o público ao cinema e tem mobilizado a sociedade. O cinema serve para isso também."