General que derrubou Jango dormia com revólver, diz filha
Era com um revólver embaixo do travesseiro que o general Olympio Mourão passava as noites nos anos seguintes ao golpe de 1964. Responsável por principiar a incursão militar ao Rio de Janeiro, então capital federal, em 31 de março daquele ano, Mourão ficou marcado como o homem que derrubou o presidente João Goulart. Mais tarde, o general recriminaria o conturbado período que se seguiu na história brasileira, conta sua filha, Laurita Mourão de Irazabal, funcionária aposentada do Ministério das Relações Exteriores, em entrevista ao Terra.
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O sono em companhia de uma arma de fogo revela um lado pouco conhecido do general. Naquele momento, o militar, que se antecipou ao acordado nas Forças Armadas e fez suas tropas marcharem antes da hora para tomar o poder, se mostrava amargurado e arrependido com os rumos que transformaram uma revolução contra a ameaça comunista em golpe de Estado. Homem de língua felina, como define Laurita, Mourão dizia o que pensava a quem quer que fosse. Não por acaso, colecionou desafetos em nome de um ideal democrata que, na prática, não encontrou em lado algum.
Sua fidelidade às próprias convicções rendeu noites de apreensão, nas quais a morte era aceita como próxima. “Ele dizia: ‘se aparecerem aqui, não vão me pegar vivo, porque eu acabo com a minha vida antes que acabem com ela’”, revela Laurita. “Ele tinha receio que podia ser vítima de um ato do gênero, porque muitos o foram”, acrescenta.
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Amizade com Jango
A angústia do general remete inicialmente a 1961, ano em que comandava o Exército na região de Santa Maria (RS). No Sul, o militar mantinha círculo de amizade com figuras como o governador gaúcho Leonel Brizola e o general Osvino Ferreira Alves - principal conselheiro de João Goulart -, além do próprio Jango. Laurita conta que o presidente nutria simpatia e gratidão por seu pai, o qual, do ponto de vista legalista, sempre se manifestou favorável à ascensão de Jango ao poder após a renúncia de Jânio Quadros, naquele mesmo ano.
O que colocou Jango e Mourão em campos opostos foi o viés socialista do líder da República. Em conversas abertas na intimidade existente entre eles, Jango afirmou que seu governo seria de extrema esquerda, o que se constituiu de golpe nas convicções do general. “O Mourão sempre teve horror ao comunismo, era um democrata nato”, conta Laurita, cuja memória aguçada não sugere os 88 anos de idade.
Segundo ela, diante do conluio esquerdista que se anunciava, o pai se viu obrigado a lutar em sentido oposto e, de posse das informações que possuía, estabeleceu sua própria conspiração conjuntamente aos colegas das Forças Armadas. O segredo do general? Ser um orador persuasivo, conta Laurita. “Ele começava a falar e os soldados ficavam loucos. Era um homem que não gritava com ninguém. Tinha todo o regimento nas mãos”, destaca.
Estopim da crise
Nos meses que antecederam ao golpe militar, o movimento tomou forma, mas carecia de efetividade. O estopim da crise - ao menos para o general Mourão - foi o Comício da Central, no Rio, em 13 de março de 1964, no qual Jango alegadamente desrespeitou as Forças Armadas, diante de um público que vibrava, empunhando bandeiras vermelhas pela legalização do Partido Comunista Brasileiro.
Assistindo à manifestação de sua casa, em Juiz de Fora (MG), Mourão imediatamente disparou telefonemas e convocou a tropa a marchar até o Rio de Janeiro. “Ele ficou tão horrorizado, que disse: ‘Vou sair agora!’. E saiu”, revela Laurita. Em respeito à hierarquia, Mourão ainda telefonou para o general Castelo Branco, de quem era muito amigo. Ao ouvir um “não faça isso, pois não é a hora”, respondeu com rispidez: “Castelo, eu vou sair e sabe o que eu penso de você? Você é um medroso!”, lembra Laurita, que afirma ter suavizado a expressão utilizada pelo pai, muito mais jocosa.
Com veículos deficitários, Mourão conquistou a adesão de descontentes com sua tropa empolgada e chegou ao Rio para a vitória, em uma investida que culminou na derrocada de Jango. De acordo com Laurita, o pai descartava um governo militar e desejava um presidente civil, indicando Magalhães Pinto como candidato em uma suposta eleição que aconteceria em 30 dias. Sem o pleito, contudo, a revolução pretendida por Mourão virou golpe militar.
Juiz militar
Nos anos que se passaram, o general foi transferido para o Nordeste. Negou cargos na Petrobras e na embaixada de Portugal e assumiu como juiz no Superior Tribunal Militar. Lá chegou ao posto de presidente do órgão, embora tenha desagradado aos militares expedindo habeas corpus até para os chamados subversivos, presos políticos acusados de atentar contra a ordem e o governo. Quando cobrado pelo general Costa e Silva, então presidente da República, Mourão alegava estar cumprindo a lei e que, se ele estava descontente, que tratasse de modificá-la.
Em dezembro de 1971, Laurita estava em Paris quando o general sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Ela havia deixado o Brasil poucos meses antes de a revolução ocorrer, alertada pelo pai quanto à sua iminência. Voltou ao País, porém, a tempo de se despedir. Naquele momento, Mourão estava privado da sua principal vocação: a fala. Assim, calado seguiu até a sua morte, em maio de 1972, descontente com uma democracia pela qual lutou - mas que nem o governo de Jango, nem o militar, buscou implementar.