Governo Bolsonaro: o que faz do plano de mudar a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém algo tão polêmico
Mudança proposta por presidente eleito pode provocar não só atritos com palestinos e países árabes, mas também reações da comunidade internacional.
O plano do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), de transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém representa uma guinada na política externa brasileira e coloca o Brasil ao lado de somente outros dois países - Estados Unidos e Guatemala - que adotaram medida semelhante.
A mudança da embaixada brasileira representaria um reconhecimento da cidade como capital de Israel, o que pode provocar não apenas atritos com palestinos e países árabes, mas também reações da comunidade internacional, cuja posição é de que o status de Jerusalém deve ser decidido em negociações de paz.
O entendimento é de que o reconhecimento de Jerusalém Ocidental como capital de Israel só deve ocorrer ao mesmo tempo em que Jerusalém Oriental for reconhecida como capital de um futuro Estado palestino. Por isso, os países mantêm suas embaixadas em Tel Aviv, a capital comercial de Israel.
Até agora, nos 70 anos desde a criação de Israel, a postura da diplomacia brasileira sempre foi de equilíbrio entre os dois lados.
Bolsonaro confirmou que pretendia transferir a embaixada no início de novembro. Nesta terça-feira, contudo, ele afirmou que a mudança ainda não estava definida.
"É uma guinada muito grande e mudará a maneira como o Brasil é visto no mundo diplomático como um todo, sobretudo no contexto da ONU", disse à BBC News Brasil o cientista político Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Isolamento e exportações
Para Stuenkel, as implicações vão além da questão específica do conflito entre Israel e Palestina e podem resultar no isolamento diplomático do Brasil.
"Limita o papel do Brasil como um ator que defende o multilateralismo, sobretudo no sistema ONU, e pode reduzir sua capacidade de buscar apoio em relação a outras questões, como por exemplo a reforma do Conselho de Segurança, que com essa decisão se torna muito menos provável."
Há também o temor de que, se levada adiante, a decisão possa afetar as exportações brasileiras para países árabes, que estão entre os principais importadores de carne vermelha e de frango do Brasil, especialmente com o selo halal, que atesta técnica de abate conforme preceitos islâmicos.
Esses países apoiam a Palestina no conflito e poderiam reagir ao alinhamento do Brasil com Israel. Stuenkel acredita que o risco não é de boicote, mas sim de medidas que levem a menos acesso do produto brasileiro a esses mercados, como aumento de tarifas.
Poucos dias após o anúncio, o Egito cancelou uma visita do ministro de Relações Exteriores brasileiro, Aloysio Nunes Ferreira, programada para esta semana.
Disputa histórica
O status diplomático de Jerusalém é uma das questões mais polêmicas no conflito entre Israel e palestinos. Enquanto Israel a considera sua "capital eterna e indivisível", os palestinos reivindicam uma parte da cidade (Jerusalém Oriental) como capital de seu futuro Estado independente.
A disputa pela cidade, que abriga locais sagrados para judeus, cristãos e muçulmanos, vem desde a criação do Estado de Israel. Quando, em 1947, em sessão presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, a Assembleia Geral da ONU decidiu pelo plano de partilha da Palestina entre um Estado árabe e outro judeu, Jerusalém foi designada como "corpus separatum" (corpo separado), sob controle internacional.
Esse plano, porém, não chegou a ser implementado, e logo após a declaração da Independência do Estado de Israel, em 1948, a guerra árabe-israelense teve como resultado a divisão de Jerusalém: a parte ocidental ficou sob controle de Israel, e a oriental, com a Jordânia.
Em 1967, Israel capturou a parte oriental da cidade e, desde então, ocupa a cidade inteira e vem construindo assentamentos em Jerusalém Oriental. Esses assentamentos são considerados ilegais pela comunidade internacional, posição que é contestada pelo governo israelense.
No ano passado, quebrando décadas de tradição diplomática e cumprindo uma de suas promessas de campanha, o presidente americano, Donald Trump, anunciou o reconhecimento oficial de Jerusalém como capital de Israel e a transferência da embaixada americana, até então localizada em Tel Aviv, para a cidade.
Guatemala e Paraguai
Na época, Trump argumentou que a mudança não significava "nada além do reconhecimento da realidade". Mas a medida foi recebida com críticas pela comunidade internacional pela possibilidade de comprometer a neutralidade dos EUA na mediação do conflito e colocar em risco o já frágil processo de paz entre israelenses e palestinos.
Duas semanas após o anúncio, a Assembleia Geral da ONU adotou uma resolução rejeitando o reconhecimento de Jerusalém por Washington. Ao todo, 128 países, inclusive o Brasil, aprovaram a resolução. Somente oito países apoiaram os EUA: Israel, Guatemala, Honduras, Micronésia, Palau, Nauru, Togo e Ilhas Marshall.
Em maio deste ano, quando a embaixada americana foi finalmente realocada para Jerusalém, protestos na Faixa de Gaza se estenderam por semanas e deixaram dezenas de palestinos mortos.
A decisão dos EUA foi seguida somente pela Guatemala. O Paraguai também chegou a transferir sua embaixada para Jerusalém, mas, poucos meses depois, com um novo presidente no poder, reverteu a medida.
Mas para James Phillips, especialista em Oriente Médio do centro de pesquisas conservador Heritage Foundation, a decisão dos EUA e, caso levada adiante, a do Brasil, representam um gesto simbólico para corrigir o que ele considera uma injustiça: o fato de Israel ser "o único país do mundo que não pode escolher em que cidade abrigar embaixadas".
"E não há nada que impeça uma embaixada em um Estado palestino no futuro, inclusive em Jerusalém Oriental, se isso for negociado", disse Phillips à BBC News Brasil. "Os EUA deixaram claro que transferir a embaixada para Jerusalém não impede também reconhecer um futuro Estado palestino, caso ambos os lados possam negociar isso."
Eleitorado evangélico
Apesar do possível impacto nas relações externas, tanto a posição de Bolsonaro quanto a de Trump são vistas como questão de política doméstica, em um momento em que cresce a força do eleitorado evangélico em ambos os países.
"Os evangélicos, tanto nos EUA quanto no Brasil, tendem a ser muito pró-Israel", disse à BBC News Brasil o cientista político Harold Trinkunas, da Universidade de Stanford, na Califórnia. "É uma maneira de demonstrar comprometimento com seus interesses."
O plano de Bolsonaro, confirmado ao jornal israelense Israel Hayom, em sua primeira entrevista exclusiva a um veículo de imprensa estrangeiro após a eleição, foi condenado por líderes palestinos e elogiado pelo premiê israelense, Binyamin Netanyahu, que indicou a intenção de viajar a Brasília para a posse do novo presidente, em 1º de janeiro de 2019.
Bolsonaro disse que pretende aprofundar a relação com Israel e que o país "pode contar" com o voto do Brasil na ONU. Em anos recentes, houve alguns episódios tensos nas relações entre os dois países.
Em 2014, depois de o Brasil ter chamado para consultas seu embaixador em Tel Aviv por conta do que condenou como "uso desproporcional da força por Israel na Faixa de Gaza", o então porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel disse que o Brasil era um "anão diplomático". Em 2015, o governo de Dilma Rousseff não aceitou as credenciais do candidato a embaixador de Israel em Brasília, Dani Dayan.
Na entrevista ao jornal israelense, Bolsonaro também cogitou remover a embaixada palestina em Brasília.
O Brasil reconhece o Estado Palestino desde 2010. Mas não há reconhecimento por parte da ONU, o que depende de aprovação do Conselho de Segurança. Desde 2012, a organização reconhece a Palestina apenas como "Estado observador".
Riscos
Para Trinkunas, a possível transferência da embaixada brasileira é uma sinalização aos EUA de um comprometimento de alinhar a política externa brasileira à do governo Trump. "Também pode impulsionar laços e conexões com outros governos de direita que estamos vendo ao redor do mundo."
Mas o analista vê riscos. "Pode alienar outros países, na Europa e na Ásia, que apoiam a solução dos dois Estados para Israel e Palestina. Também prejudica a capacidade do Brasil de desempenhar um papel de facilitador diplomático neutro para resolver conflitos."
Stuenkel alerta para o custo que o país pode pagar ao seguir os passos do governo americano, já que é mais fácil para a maioria dos países se afastar do Brasil do que dos EUA, que são o maior mercado consumidor do mundo e têm alianças de defesa com várias nações do Oriente Médio.
"Acho que precisamos nos preparar, isso afetará a influência diplomática brasileira muito mais do que tem sido o caso com os EUA depois dessa guinada."
Mas ao comentar a experiência dos EUA, Phillips ressalta que, apesar de ações simbólicas que alguns governos árabes podem tomar, muitos países do Oriente Médio parecem não estar mais tão focados no conflito entre Israel e Palestina.
"Acho que, em geral, esses países tendem a estar mais preocupados com o Irã e as terríveis guerras na Síria e no Iêmen", afirma Phillips.