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Guerrilheiros colombianos atravessam fronteira por garimpo ilegal na Amazônia

Documentos da Polícia Federal apontam que estrangeiros suspeitos de ligação com uma dissidência das antigas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) estão entrando em território brasileiro atraídos pelo avanço do garimpo ilegal de ouro no Brasil

4 out 2021 - 06h50
(atualizado às 08h10)
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O rio Japurá, na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, é afluente do rio Solimões
O rio Japurá, na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, é afluente do rio Solimões
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Estrangeiros suspeitos de ligação com uma dissidência das antigas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) estão entrando em território brasileiro atraídos pelo avanço do garimpo ilegal de ouro no Brasil nos rios da Amazônia. A informação consta de documentos obtidos pela BBC News Brasil e foi confirmada pela Polícia Federal.

As investigações apontam que os dissidentes estão extorquindo garimpeiros ilegais que atuam de forma clandestina nos rios da região e cobrando uma espécie de "pedágio" para poderem continuar trabalhando. Em agosto, a PF e o Exército brasileiro realizaram uma operação no município de Japurá (AM), a 745 quilômetros de Manaus, depois de receberem informações de que havia dissidentes na área urbana da cidade. Dois colombianos foram presos.

As Farc eram um dos grupos armados que, por quase 50 anos, esteve em conflito com o governo colombiano. Em 2016, comandantes da organização e o então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, firmaram um cessar-fogo que previa o desarmamento da organização e a possibilidade de o grupo participar da vida política do país. Em 2017, a maioria dos rebeldes se desmobilizou e passou a formar o partido político Força Alternativa Revolucionária do Comum, também conhecida pela sigla Farc. Mais de oito mil fuzis foram entregues pelos guerrilheiros.

Parte deles, porém, decidiu não aderir ao acordo e continuou a atuar na região, especialmente em território amazônico. São esses dissidentes que as autoridades brasileiras acreditam que estejam ingressando em território nacional desde então. Nos últimos anos, serviços de inteligência receberam a informação de que alguns deles fazem a "escolta" de carregamentos de drogas enviadas da Colômbia para o Brasil pelos rios da região.

Os documentos obtidos pela BBC News Brasil fazem parte de uma investigação conduzida pela Polícia Federal após a operação de agosto e que tramita, agora, na Justiça Federal do Amazonas. Segundo eles, a novidade agora é que esses dissidentes estão extorquindo garimpeiros ilegais brasileiros que atuam na extração ilegal de ouro nos rios da região, especialmente nos rios Purué e Joamim. O processo contém fotos tiradas por informantes da PF que mostram homens armados com fuzis e uniformes semelhantes aos usados pelos guerrilheiros abordando dragas de garimpo.

Soldados em formação no pelotão de fronteira de Vila Bittencourt, às margens do rio Japurá, na divisa com a Colômbia
Soldados em formação no pelotão de fronteira de Vila Bittencourt, às margens do rio Japurá, na divisa com a Colômbia
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil / BBC News Brasil

Segundo o superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Leandro Almada, há suspeitas de que o ouro extraído ilegalmente no Brasil esteja sendo usado para financiar as atividades dos dissidentes na Colômbia.

"Indivíduos supostamente dissidentes de grupos paramilitares estrangeiros atuariam na faixa de fronteira da região de Japurá e teriam envolvimento com o tráfico de entorpecentes, realizando escoltas de carregamentos de drogas e, mais recentemente, atuando na extorsão de garimpeiros ilegais que atuam na região de fronteira. Não temos dados concretos, mas existe a possibilidade de tais recursos estarem sendo utilizados para o financiamento desses grupos baseados no exterior", disse o delegado em nota enviada à BBC Brasil.

"Segundo levantamentos na região, os dissidentes ingressam ilegalmente em território nacional, muitas vezes com documentos falsos, e atuam nas áreas de garimpo da faixa de fronteira abordando ribeirinhos e garimpeiros, ou infiltrados na zona urbana de Japurá, onde adquirem mantimentos", explicou o delegado.

A suspeita de que dissidentes estejam usando o ouro ilegal brasileiro chama atenção porque, na Colômbia, há pelo menos nove anos existem registros de que grupos paramilitares comando minas ilegais no país vizinho.

"Isso é algo que aconteceu na Colômbia. Há minas ilegais administradas pelas Farc e outros grupos ilegais no meu país, de modo que não me estranharia que esses criminosos que atravessam a fronteira comecem a atuar dessa maneira no Brasil", disse o embaixador da Colômbia no Brasil, Dario Montoya Mejia.

O diplomata afirmou também que as autoridades dos dois países vêm intensificado as ações de cooperação na região para sufocar atividades de organizações criminosas.

Bilhetes com carimbo das Farc

Entre os indícios que, segundo a PF, ligam o casal colombiano preso em agosto deste ano a grupos dissidentes das Farc estão um bilhete apreendido com o casal que contem o carimbo da Frente Carolina Ramirez, um dos sub-grupos da dissidência das Farc que atua no sul da Colômbia. O casal foi encontrado depois de invadir a casa de uma moradora de Japurá ao fugir da polícia e do Exército.

A investigação da PF suspeita de que a dupla atuava como emissários responsáveis por obter mantimentos, remédios e outros insumos para dar suporte ao grupo na selva. Além do bilhete, a PF encontrou um uniforme camuflado, botas, artigos para sobrevivência na selva e uma balança de precisão. As suspeitas aumentaram depois que um laudo de peritos da PF constatou que a mulher detida apresentou nomes e documentos falsos às autoridades brasileiras.

Carta com carimbo da Frente Carolina Ramirez foi encontrada com casal preso pela PF. Policia suspeita que a dupla trabalhe para o grupo
Carta com carimbo da Frente Carolina Ramirez foi encontrada com casal preso pela PF. Policia suspeita que a dupla trabalhe para o grupo
Foto: Reprodução / BBC News Brasil

Em seu depoimento, a dona da casa invadida, cujo nome não será divulgado por motivos de segurança, disse ter sentido ameaçada.

"Aí, na hora que eles entraram, empurraram a porta e quase jogaram as duas (sua filha e cunhada) aí embaixo e falaram que iam ficar aí e foram direto pro meu quarto. A gente pediu para sair, não saíram. Falaram que iam ficar aí, porque se eles não ficassem aí não, (a gente) sabia o que podia acontecer […] Me senti (ameaçada) […] se a gente não fizer o que eles estão pedindo, (a gente) se lasca depois", disse.

Japurá é um município localizado no extremo oeste do Amazonas, com pouco mais de 1,7 mil habitantes e 55,8 mil quilômetros quadrados e coberta majoritariamente pela floresta amazônica. É uma das áreas mais remotas do Brasil, equivalente a 35 vezes o tamanho da cidade de São Paulo.

Sua única ligação física com a capital do estado, Manaus, é o rio Japurá, em uma viagem que pode levar até uma semana. Nas últimas décadas, o município se tornou uma importante porta de entrada para drogas produzidas na Colômbia com destino ao Brasil, especialmente o "skunk", uma espécie de maconha considerada mais potente que a maconha normal.

O ambiente passou a ficar ainda mais tenso com o avanço da extração ilegal de ouro na região. Segundo a PF, nos últimos três anos, houve um aumento da atividade garimpeira na área. Dezenas de dragas e centenas de garimpeiros aproveitam a pouca fiscalização das autoridades na região e levam dragas que revolvem o leito do rio em busca do minério ao mesmo tempo em que liberam mercúrio na água e no ar. Apesar desse cenário, a cidade conta com apenas dois policiais civis e seis policiais militares.

"Japurá fica numa região muito isolada e muito pobre e que precisa de um reforço da segurança", reconhece o chefe do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) da Polícia Civil do Amazonas, Paulo Mavignier.

Região é próxima a local de conflitos

O município de Japurá fica em uma das regiões mais isoladas da Amazônia e faz fronteira com a Colômbia
O município de Japurá fica em uma das regiões mais isoladas da Amazônia e faz fronteira com a Colômbia
Foto: Reprodução / BBC News Brasil

A prisão da dupla e os relatos sobre a presença de dissidentes da guerrilha colombiana em Japurá trouxe de volta a lembrança de um episódio ocorrido há 30 anos em uma região próxima à cidade, mais precisamente no rio Traíra, que corre pela divisa entre o Brasil e a Colômbia. No dia 26 de fevereiro de 1991, um destacamento do Exército foi atacado por guerrilheiros das Farc. Na ocasião, três militares brasileiros morreram.

Como resposta, o Brasil mobilizou aproximadamente 400 militares para a região durante a Operação Traíra, em março daquele mesmo ano. Registros feitos pela imprensa à época indicam que pelo menos sete colombianos foram mortos.

O professor do Departamento de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, Thiago Fernandes, explica que atividades ilegais como tráfico de seres humanos, drogas e de armas são comuns em regiões de fronteira, especialmente naquelas marcadas pelo isolamento como a do Brasil com a Colômbia. Ele diz, no entanto, que o episódio ocorrido em Japurá mostra que avanço do garimpo ilegal no Brasil funciona como um fator de atração para grupos criminosos estrangeiros.

"Os garimpos servem de polo de atração. Esse ouro vai atraindo esses outros grupos ilegais, incluindo as Farc e dissidentes. O avanço do garimpo ilegal no Brasil cria mais uma oportunidade de financiamento para esses grupos criminosos. É compreensível que eles avancem em nosso território em busca de uma nova fonte de renda", afirmou.

A BBC News Brasil questionou o Exército sobre o episódio ocorrido em Japurá e que medidas estão sendo tomadas sobre o ingresso de dissidentes no Brasil.

Em nota, o Exército disse que recebeu as informações sobre a existência de dissidentes na região por meio de denúncias feitas pela população do município e que "realiza, diuturnamente, operações preventivas e repressivas com o intuito de combater os ilícitos praticados nas regiões de fronteira".

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