História da Independência do Brasil foi escolhida em concurso, aponta pesquisador
Após três anos de pesquisas em documentos, Tiago Rogero revela divergências históricas na versão eurocentrada ensinada nas escolas
A Independência do Brasil não foi um acontecimento simples, tampouco benevolente. Dom Pedro I, a princípio, não queria o fim da escravatura e os povos indígenas e africanos tiveram um papel importante na emancipação do nosso país de Portugal. No entanto, a versão contada nas escolas exclui esses detalhes, já que foi escrita por um viajante alemão e escolhida em um concurso.
Quem lança luz sobre essa perspectiva é jornalista Tiago Rogero, que encabeçou uma pesquisa de quase três anos para o Projeto Querino. Conforme conta em entrevista ao Terra, o concurso para decidir qual seria a história oficial do Brasil foi promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no ano de 1846. Quem venceu foi um pesquisador e viajante alemão chamado Carl Von Martius.
Ser ter qualquer relação com a história, Von Martius elenca a "raça" portuguesa como "um poderoso rio", enquanto os indígenas e os escravos africanos são citados como "pequenos confluentes" na História do Brasil.
"É majoritariamente branca, por ser europeia e masculina. Os feitos contados levam em consideração somente os feitos dos grandes senhores, homens brancos poderosos", aponta Rogero. "Essa foi a história escolhida, que parte do grande trabalhador europeu com pouquíssimas influências do indígena e do africano".
Negros e indígenas na Independência
A narrativa hegemônica da história da Independência limita as contribuições dos povos indígenas à apreciação da natureza, enquanto as dos povos africanos se resumem ao trabalho árduo e forçado, conforme explica. No Projeto Querino, Rogero resgata em oito episódios, no formato de podcast, o nascimento da nação independente, mas baseado em documentos históricos.
A pesquisa para o primeiro episódio da série teve como objetivo entender qual foi a participação das pessoas negras e povos indígenas nesse processo de emancipação do país, por exemplo, nas guerras de independência. Para tanto, é importante lembrar que a Inglaterra já tratava da abolição da escravatura e outros países da América do Sul também caminhavam nesse sentido.
Isso porque, anos antes, os africanos escravizados no Haiti organizaram uma revolução, na qual mataram todos os seus senhores e tomaram a nação para si. "Havia um medo da elite e da classe política brasileira que houvesse uma revolução dessas aqui", conta.
Essa preocupação levou aum combinado entre a elite e Dom Pedro I, para que ele se tornasse líder da nação independente. Foi quando ele, então, viajou pelos estados do Sudeste para garantir aos grandes proprietários de terras que haveria independência.No entanto, o imperador assegurou que não haveria o fim da principal fonte de renda dos ricos, a escravidão.
"A gente mostra no Projeto Quirino que todas as principais riquezas do Brasil foram geradas pelo trabalho escravo, de africanos e indígenas", explica o pesquisador Tiago Rogero.
Os episódios do projeto estão disponíveis no Spotify, gratuitamente. Rogero diz que não há pretensão, no entanto, de que essa versão levantada pelo grupo de historiadores se sobreponha às outras versões da Independência do Brasil, pelo contrário.
"A gente não quer que essa versão contada pelo Projeto Querino seja hegemônica. Queremos que seja inserida no debate, para que as pessoas tenham consciência crítica", aponta. Mesmo assim, os próximos passos para o projeto devem seguir uma linha educacional, adaptando o conteúdo para melhor distribuição em salas de aula de todo o Brasil.
"O passado explica o presente"
Nem mesmo o Hino Nacional da Independência foi resultado da proclamação da independência, pelo contrário. Versos como "Brava gente brasileira!/Longe vá, temor servil/Ou ficar a pátria livre/Ou morrer pelo Brasil" foram criados meses antes da conhecida proclamação de Dom Pedro I, em 1822.
No entanto, há algo na composição que marca o Brasil mesmo duzentos anos depois: o "temor servil" ainda não deixou nosso país. Não quando há mais de 33 milhões de brasileiros em situação de fome e extrema pobreza, segundo a pesquisa mais recente do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan).
"Pessoas negras são vistas como cidadãos de segunda categoria e que a sociedade brasileira deve ser majoritariamente branca se ela quiser buscar a civilização", critica Rogero.
Segundo Rogero, a demora para o fim da escravatura no País, a Independência forçada e outros contextos melhor aprofundados ajudam a explicar contextos contemporâneos que o Brasil encara neste momento.
"Quando o Império é obrigado a acabar com a escravidão, com o Brasil às vésperas de uma guerra civil, são os grandes senhores que eram beneficiados que promovem o golpe no ano seguinte, que institui a República", explica Rogero. "A partir do momento em que não dá mais para escravizar as pessoas negras, começa a ter uma política de Estado para branqueamento e eliminação da parcela afrodescendente da população".
"Isso explicaria por que que, durante a pandemia, o presidente da República decide não comprar vacina", continua.
No entendimento de Rogero, movimentos desse tipo fazem parte de uma mesma linha de pensamento, que consideraria que pessoas negras - que formam em grande parte o grupo dos mais pobres no país - são menos seres humanos que as pessoas brancas do Brasil.
*Com edição de Estela Marques