Índios e ribeirinhos forjam aliança para 'autodemarcar' terras usando GPS
Por causa das invasões de grileiros e mineradores e descaso do governo, comunidades que viviam em conflito na beira do rio Tapajós põem diferenças de lado e se unem para "demarcar" território.
"Com essa ferramenta, esse menino tão jovem consegue mostrar tão rápido os limites do nosso território", diz Francisco Firmino da Silva, olhando com admiração para Nelison Saw Munduruku, um garoto de 17 anos operando um receptor de GPS.
Silva é um morador antigo e respeitado da comunidade de Mangabal, que fica às margens do Rio Tapajós.
Nelison é membro do povo munduruku, na Amazônia, e está usando novas tecnologias para ajudar os habitantes da comunidade a demarcar suas terras.
O que chama a atenção é que Nelison está ajudando inimigos históricos do povo Munduruku: as comunidades não-indígenas fundadas por seringueiros.
É um exemplo de alianças que estão se constituindo na luta por demarcações de terras que protejam tanto indígenas e como comunidades ribeirinhas.
Interesses compartilhados
"Todos nós dependemos do rio Tapajós", diz o cacique Juarez Saw Munduruku. "Nós estamos sendo ameaçados da mesma forma pelos grandes projetos do governo, pelos madeireiros e pelos mineradores."
Segundo o cacique, os munduruku estão retribuindo iniciativas anteriores dos beiradeiros, nome dado na região aos ribeirinhos.
Em 2013, a comunidade Mangabal se juntou aos munduruku quando estes se mobilizaram contra a construção da hidrelétrica São Luiz do Tapajós. Ainda em 2014 e 2015, os ribeirinhos apoiaram os Munduruku na autodemarcação da Terra Indígena Sawre Muybu, que seria inundada pela obra.
As iniciativas e manifestações foram bem sucedidas e a construção da hidrelétrica está suspensa, pelo menos até o momento.
Agora, um grande número de guerreiros indígenas - 38 munduruku, dois satere maué e sete de outros povos da região do rio Trombetas - estão ajudando a comunidade de Mangabal.
Muitos enfrentaram longas jornadas para chegar até lá.
Em outubro de 2013, depois de muita luta, os moradores de Mangabal e da comunidade vizinha, Montanha, confirmaram a posse de seu território.
A área se tornou um Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), que, segundo a legislação, reconhece a ocupação tradicional das famílias, garante seu usufruto exclusivo da floresta - de forma ecologicamente equilibrada - e proíbe a venda e o arrendamento de terras em seu interior.
Invasões de terra
Nos últimos meses, foram os moradores de Mangabal que precisaram de apoio, porque, com quase quatro anos de ausência do Estado, aumentaram as invasões de madeireiros e garimpeiros ilegais em suas terras, que somam 550 quilômetros quadrados.
Até setembro desse ano, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela gestão compartilhada do PAE, não havia respondido às solicitações da comunidade para demarcar a terra e retirar os invasores.
Por anos, os habitantes receberam ameaças de grileiros, que diziam ter documentos e ser os donos das terras.
Mas propriedades privadas são proibidas na região. Os moradores de Mangabal tentaram avisar os grileiros e, diante do impasse, procuraram as autoridades, sem sucesso.
Finalmente, decidiram que a solução seria realizar a demarcação por conta própria - um processo que chamaram de "autodemarcação".
Na primeira expedição, realizada pelos moradores em setembro, 18 quilômetros foram demarcados e eles descobriram que invasores haviam derrubado inúmeras palmeiras de açaí para extrair palmito.
O açaí é uma importante fonte de alimentação para as famílias e elas o extraem de maneira sustentável, sem abater as árvores.
Eles também encontraram sinais de que esses invasores planejavam voltar - havia árvores derrubadas, esperando serem levadas por madeireiros, e cinco trilhas clandestinas cruzando a floresta até a rodovia Transamazônica, localizada a apenas dois quilômetros de distância.
Pressão
Finalmente, depois da repercussão na mídia e da atuação do Ministério Público Federal, a que a comunidade recorreu, Mario Sergio da Silva Costa, superintendente do Incra na cidade de Santarém, visitou a comunidade, no dia 17 de novembro.
Ele incentivou os moradores a colocarem mais pressão sobre as autoridades.
"É importante que vocês denunciem o que está acontecendo para as autoridades", disse. "A partir daí, nós podemos agir."
No fim de novembro, a comunidade e os grupos indígenas foram para a segunda expedição. Eles encontraram garimpeiros em suas terras e tentaram explicar a eles que eventuais documentos de posse não eram válidos ali.
Mas as ameaças aos moradores aumentaram e a situação ficou tensa.
Alianças
Apesar de serem trabalhosas, as expedições trazem benefícios.
"É um privilégio. Estou seguindo os caminhos por onde meu pai andou quando cortava seringa", disse Solimar Ferreira dos Anjos.
As comunidades munduruku e ribeirinhas estão se fortalecendo. Jovens de entre 13 e 16 anos desempenham funções fundamentais nas expedições, como a caça de animais para alimentar o grupo.
Mas o mais importante de tudo é a confiança que se estabeleceu recentemente entre os grupos indígenas e as comunidades ribeirinhas.
"Essa aliança está cada vez mais forte", disse Ezequiel Lobo, que irá liderar expedições futuras e já ficou conhecido como "chefe dos guerreiros" de Mangabal.
"Nós vamos permanecer com os munduruku e os outros povos indígenas para sempre."
Esse tipo de aliança, que já vêm ocorrendo desde 2013 diante das ameaças e construções de grandes empreendimentos na Bacia do Tapajós, é um dos inesperados resultados do crescimento da influência dos ruralistas no Congresso Nacional.
Desde que Michel Temer assumiu o poder, em março de 2016, houve uma série de iniciativas para enfraquecer medidas de proteção ambiental, interromper a demarcação de terras indígenas e facilitar grandes projetos na Amazônia.
A violência rural também aumentou. De acordo com a Anistia Internacional, 66 ativistas rurais, pequenos agricultores e camponeses foram assassinados no Brasil em 2016.
Diante de tamanhas ameaças, grupos que historicamente vivam em conflito na Amazônia estão se unindo.
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