Jovem trans cria “vaquinha” online para cirurgia nos seios
Rapaz de 19 anos precisa de R$ 7,5 mil para realizar uma mamoplastia masculinizadora. Em dois meses, ele conseguiu R$ 2,4 mil
Uma rápida visita a um site de “vaquinhas” é suficiente para encontrar casos dos mais curiosos de pessoas que decidiram pedir ajuda a desconhecidos para conseguir realizar algum sonho. Há doação aberta para comprar passagens para uma esportista participar de um campeonato mundial fora do Brasil, para arcar com a cirurgia de um menino cego que tem possibilidade de voltar a enxergar, para custear o doutorado de uma estudante de escola pública. E para pagar a operação de um jovem transexual que deseja retirar os seios.
Estamos falando de Lucca Ramos, de 19 anos, morador de Governador Valadares, em Minas Gerais. O procedimento que deseja fazer, que modifica o peitoral e transforma uma mama com características tipicamente femininas em outra com características típicas masculinas, é chamado de mamoplastia masculinizadora. E engana-se se você pensa que a questão é apenas estética.
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Assim como diversos outros transexuais, o jovem utiliza um acessório, uma espécie de faixa justíssima que pressiona o peito, para disfarçar a presença dos seios – que obviamente causam desconforto a quem não se identifica com o gênero feminino. Ele é conhecido como binder e sua utilização pode causar danos graves ao corpo.
“É algo como uma regata que pressiona os seios pra escondê-los em camisetas. Ele deixa ‘reto’ ali, como se não existisse nada. Causa dor por estar apertando e incômodo por ter que usá-lo durante o dia com calor e suor. A longo prazo, pode afetar a elasticidade da pele, pode quebrar a costela, perfurar o pulmão, levar a problemas na coluna e no tórax”, explicou ao Terra. “A cirurgia é necessária”, completou.
O rapaz usa a peça há 5 anos, desde que começou a transição, e, por disso, desenvolveu uma inflamação no músculo das costas. As dores constantes fizeram com que ele, em março deste ano, corresse atrás das informações da operação. O passo inicial foi fazer o pedido ao plano de saúde, que o recusou por considerar o procedimento puramente “estético”. Apareceram, então, dois problemas. O primeiro: encontrar um médico capacitado que aceitasse realizar a intervenção. O segundo: arrumar R$ 7,5 mil.
“No Brasil não existem tantos cirurgiões especializados nesse tipo de cirurgia e alguns ainda se recusam a fazê-la por não concordarem com a transexualidade”, lamentou. O valor pedido, de acordo com ele, cobriria os custos da operação, mas ainda teria o das passagens de ida e volta à Brasília (onde atua um conhecido cirurgião que aceitou operá-lo), das diárias do hotel, dos remédios e do colete pós-operatório.
“Esse tipo de ‘vaquinha’ é comum entre homens trans fora do País. Meus amigos me incentivaram a fazer aí fiz para eles conseguirem me doar. Mas esses mesmos amigos divulgaram bastante em grupos da internet e das redes sociais e tudo tomou proporções maiores”, disse. Em dois meses, a página recebeu mais de 7,8 mil visitas e arrecadou R$ 2.475, 33% da quantia total necessária.
Transfobia dentro e fora de casa
Lucca estuda em tempo integral em um cursinho pré-vestibular. O esforço não é à toa: ele quer passar em Medicina em alguma universidade pública. Por ter pouco tempo livre, não consegue arrumar um trabalho fixo para juntar dinheiro. O fato de ser transexual, é claro, também não ajuda na hora de tentar alguma vaga, como já mostrou uma matéria do Terra. A única pessoa de sua família que tem condições financeiras de ajudá-lo é seu pai. Mas não existe nenhuma possibilidade de isso acontecer.
“Eu descobri que me identificava com a transexualidade aos 11 anos e comecei minha transição social aos 15. De início, todos em casa foram muito contra. Meus pais são separados, moro só com minha mãe, e ela, hoje, é tranquila em relação a isso. Minhas irmãs também. Mas meu relacionamento com meu pai é bem abalado, ele não aceita de forma alguma. E nem tenta”, afirmou.
O pai chegou a buscar orientação de religiosos e levou Lucca a consultórios de diferentes psicólogos para tentar fazer o filho desistir da transição. Em uma dessas consultas, discutiu com a profissional que se posicionou a favor do garoto.
Fora de casa, mais preconceito. Lucca nunca foi agredido fisicamente, mas os constrangimentos sempre acontecem. Um dos maiores foi em 2013, quando, ao chegar a uma escola para prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), foi acusado de falsidade ideológica, retirado da sala e obrigado a assinar um termo de responsabilidade. Tudo ao mesmo tempo em que ouvia “piadas” do fiscal e risos dos outros estudantes.
Mensagens de apoio
Na página da “vaquinha”, por outro lado, o jovem tem recebido diversas mensagens de apoio de internautas solidários à sua atitude. “Lucca, torço por ti. Posso colaborar com pouco, mas acredito muito na sua causa. As coisas sempre se ajeitam, tenha fé e força para enfrentar as adversidades. Forte e sincero abraço”, escreveu um doador chamado Leandro. “Todo apoio à causa. Não é fácil trans-gredir o cis-tema. Axé”, disse outra chamada Suzanne. “É simplesmente ridículo que a sua transição não seja um direito garantido. Te desejo toda a sorte nessa mudança e espero que você consiga todo o dinheiro logo”, opinou Guilherme. “Que Deus te abençoe e tudo corra bem. Sejas muito feliz”, desejou Elpidio.
Afinal, os planos de saúde devem ou não realizar essas cirurgias?
O advogado Dimitri Sales, da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São Paulo, acredita que os planos de saúde não podem se recusar a realizar cirurgias como a mamoplastia que foi solicitada por Lucca.
“A transexualidade consta na Classificação Internacional de Doenças (CID 10 F 640). Não concordamos com isso. A transexualidade é, na verdade, um dado na história da pessoa, não a sua vida. Trata-se de uma circunstância que, quando vivenciada socialmente, resulta na redefinição do gênero e consequente tentativa de construção do corpo, feita a partir do reconhecimento que a pessoa tem dela mesma. Mas, no nosso entendimento, já que ela consta no CID, isso deve ser usado como instrumento para promover direitos. Os planos, então, seriam obrigados a realizar os procedimentos necessários para alterar o corpo do indivíduo e enquadrar o físico à sua realidade psíquica. Para justificar um pedido negado, o que eles fazem é alegar que se trata de uma cirurgia plástica estética. Mas não é”, explicou.
O advogado contou ainda que o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem um política oficial para casos como esse, mas apresenta iniciativas pontuais. Isso quer dizer que não existe regra, mas pode ser que eventualmente algum homem ou mulher trans consiga realizar procedimentos do tipo em um hospital público.
Segundo texto publicado no site da Câmara dos Deputados, o "SUS paga a cirurgia em alguns casos, mas a lista de espera é muito grande e, para que a pessoa consiga fazer a cirurgia de mudança de sexo, é necessário que haja um diagnóstico extremamente criterioso elaborado por uma equipe de psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, ginecologistas e cirurgiões".
Para tentar por meio de algum plano, o paciente também deve ter em mãos um laudo feito por profissionais que ateste a condição de transexualidade. Se não conseguir, de acordo com Sales, pode entrar com uma ação na Justiça.
Procurada, a Bradesco Saúde, que negou o procedimento a Lucca, alegou que "cumpre rigorosamente a regulamentação vigente para o setor de saúde suplementar". "A seguradora informa que recebeu solicitação para a cirurgia de mastectomia com reconstrução da placa areolo mamilar, com a finalidade de adequação de gênero. O procedimento não foi autorizado considerando não integrar as coberturas médicas do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, editado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão que regula e fiscaliza o setor", disse, em nota.
Lei pode mudar
O Projeto de Lei 5002/13, que estabelece o direito à identidade de gênero, tramita atualmente na Câmara. De autoria do deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) e da deputada Erika Kokay (PT-DF), ele obriga o SUS e os planos de saúde a "custear tratamentos hormonais integrais e cirurgias de mudança de sexo a todos os interessados maiores de 18 anos, aos quais não será exigido nenhum tipo de diagnóstico, tratamento ou autorização judicial".
“O exercício do direito à identidade de gênero pode envolver a modificação da aparência ou da função corporal através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, desde que isso seja livremente escolhido, e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de fala e maneirismos”, diz o texto, batizado de "João W Nery" em homenagem ao primeiro transhomem brasileiro.
A proposta também libera a mudança do prenome para os maiores de 18 anos sem necessidade de autorização judicial e libera a mudança do sexo nos documentos pessoais com ou sem cirurgia de mudança de sexo.