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Liberado há um ano, casamento gay ainda é raro em presídios

Primeiras mulheres a se casarem em presídio no RS afirmam que poucas detentas lésbicas sabem que têm o direito ao matrimônio

17 mai 2014 - 08h19
(atualizado às 08h22)
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Valéria (esq.) e Vera (dir.) se conheceram na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre
Valéria (esq.) e Vera (dir.) se conheceram na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre
Foto: Marcelo Miranda Becker / Terra

Valéria Dias de Oliveira e Vera Indiana Castro de Souza entraram para a história do sistema prisional gaúcho ao se tornarem as primeiras detentas a se casar em um presídio do Rio Grande do Sul. A cerimônia, comandada por um sacerdote afroumbandista há uma semana na Penitenciária Feminina Madre Pelletier – curiosamente, um prédio que no passado abrigara um convento católico em Porto Alegre -, simboliza uma série de esforços da sociedade e do poder público para garantir o respeito aos direitos da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) nos presídios brasileiros.

Apesar de a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo já estar vigente há um ano, Valéria e Vera contam que poucas presidiárias sabem que têm esse direito. "Antes do nosso casamento, ninguém achava que podia. Muitos falavam que não podia casar dois homens, duas mulheres, só fora do Brasil. Depois disso, muitas estão querendo casar. Tem gente que fala que a gente abriu a porteira", diz Valéria, 27 anos e mãe de dois filhos, que cumpre sua segunda pena no Madre Pelletier por tráfico de drogas.

As duas se conheceram no próprio presídio em 2010 e se apaixonaram "à primeira vista", como recorda Valéria. "Ela já estava aqui quando eu fui presa de novo. Quando eu vi ela, tremeu tudo. Eu falei: 'essa morena vai ter que ser minha'. A gente começou a se falar, eu mexia bastante com ela, até que a gente ficou", diz a detenta. Segundo Valéria, sua maior preocupação era mostrar para sua amada que não se tratava de um relacionamento baseado na carência imposta pelo cárcere.

"Sentei para conversar com ela e disse: 'eu não quero brincar contigo. Eu quero um relacionamento sério contigo, eu não quero que seja uma aventura de cadeia, ou que seja uma carência. Se você está carente porque não tem visita íntima, eu não quero que leve pra esse lado'", relembra. "Eu disse que lá na rua é diferente. Aqui é uma coisa, é um mundo, quando a gente bota o pé pra fora do portão é outra coisa. Fui conversando com ela antes de seguir em frente com a história de casar, e ela foi me apoiando também. Até que eu pedi ela em casamento e ela disse 'sim'."

Apesar de manifestarem publicamente o desejo de oficializar a união ainda em 2013, o relacionamento de Valéria e Vera inicialmente foi visto com desconfiança pelas outras detentas. "No começo, muitas pessoas criticavam. Até uma das madrinhas, no dia do casamento, comentou. 'Valéria, eu vou ser bem sincera: eu não acreditava nesse casamento. Eu achava que vocês estavam só chamando atenção'. A gente chegou a receber críticas no início. Falavam pra mim: 'mas como você tem filho e gosta de mulher? Vocês duas são menininhas'."

A resistência, porém, se desfez com o casamento, que contou com a presença de familiares e seguiu a tradição do matrimônio, com vestido branco, buquê, terno e alianças douradas. "Depois que viram que era mesmo verdade, que a gente está mesmo feliz, que a gente queria casar, que era o nosso sonho, agora todos nos apoiam. Falam que foi tudo muito lindo, dão parabéns, vêm nos abraçar de verdade", diz Valéria.

<p>Casamento de Vera e Valéria foi celebrado por sacerdote afroumbandista e contou com a presença de familiares</p>
Casamento de Vera e Valéria foi celebrado por sacerdote afroumbandista e contou com a presença de familiares
Foto: Neiva Motta / Divulgação

Apoio da direção do presídio

Assim que tomou conhecimento da vontade do casal, a direção do presídio trabalhou para organizar a cerimônia. "Nós sentamos com elas e perguntamos se elas realmente queriam se casar, se elas entendiam a importância disso. Teve todo um trabalho com uma equipe de psicólogas, para lembrar elas que uma coisa é um romance aqui dentro do presídio, outra coisa é você estabelecer um laço familiar para toda a vida", diz Marília dos Santos Simões, diretora da penitenciária.

Demorou cerca de um ano, porém, para que a festa saísse do papel. "A gente não sabia se ia conseguir casar. Primeiro, a gente não ia conseguir porque os documentos da Vera ainda não estavam prontos. Depois teve a greve (dos agentes penitenciários). Então era tanto tempo que, se a gente não se amasse mesmo, teria desistido já", conta Valéria.

A cerimônia foi organizada e custeada pela Coordenadoria Penitenciária da Mulher/Assessoria dos Direitos Humanos (ADH) da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), com apoio da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM). "Foi uma festa muito bonita, todas nós nos emocionamos em ver a felicidade delas", diz a diretora do presídio.

"Nossa, foi muita emoção. Porque eu não esperava que todo mundo fosse ajudar. Foi a casa toda, a direção, a chefe de segurança, as funcionárias também, mais a Corregedoria da Mulher. A gente não tirou nada do bolso, foram todos eles que nos ajudaram, roupa, tudo. A casa se empenhou um monte. Para mim, foi uma surpresa imensa, foi bem tocante. Eu pensava que ia ter um bolinho e acabou. Mas não, foi muito lindo", emociona-se Vera, de mãos dadas com a mulher. "Elas apostaram tudo no nosso relacionamento mesmo. Porque tem muitos casais aqui dentro que começam hoje e amanhã já estão com outra. E a gente não. Desde quando a gente falou que ia ficar junto, a gente foi até o final", completa Vera, 33 anos, que cumpre pena por latrocínio no Madre Pelletier.

Casal encontra tempo e espaço para romance dentro do presídio
Casal encontra tempo e espaço para romance dentro do presídio
Foto: Marcelo Miranda Becker / Terra

Lua de mel improvisada e preconceito

Após terem a união abençoada pelo sacerdote, Valéria e Vera puderam até mesmo improvisar uma lua de mel na cela que dividem. "A gente trabalha com o lixo, descendo o lixo das galerias. Mas a chefe de segurança falou no dia: 'não, vocês estão em lua de mel e hoje não vão trabalhar'. Então pudemos curtir bastante aquele nosso momento, sonhar mais um pouco", diz Valéria, que afirma que a cela garante a privacidade do casal. "Se alguém precisa conversar com a gente, batem na porta. Ali a gente tem a nossa privacidade, as nossas coisas. Vamos dizer que ali é a nossa casa provisória, tem televisão, tem ventilador, todas as nossas coisinhas, como se fosse nossa casa. Ali a gente já vai começando a criar aquele ritmo para quando nós sairmos pra rua, para quando nós tivermos a nossa casa."

O clima de romance, porém, só é interrompido quando as duas são lembradas do preconceito ao qual ainda estão sujeitas. "O meu filho mais novo, de 2 anos, está com uma mulher que é evangélica, e ela não aceitou quando viu que a gente tinha se casado. Nossa, ela ligou aqui para nossa assistência social criticando, falando um monte de coisa", lamenta Valéria. Apesar das dificuldades, Vera mantém o otimismo. "Eu sei que vai ser meio difícil, porque tem muito preconceito lá fora. Mas eu acredito que, estando juntas, nós vamos conseguir".

Vera diz que há muitos casais homossexuais nos presídios, mas poucos se transformam em relacionamentos estáveis
Vera diz que há muitos casais homossexuais nos presídios, mas poucos se transformam em relacionamentos estáveis
Foto: Marcelo Miranda Becker / Terra

Vida fora da prisão

Sonho da esmagadora maioria dos presidiários, a conquista da liberdade é motivo de apreensão para o casal. Isso porque representaria o fim do convívio diário das detentas, já que Valéria terá direito à progressão da pena cerca de um ano e meio antes de Vera.

"É possível que eu saia do presídio já no final deste ano, só que ela só vai poder em 2016. Eu não consigo me ver longe dela, sabe? Se a gente pudesse sair junto, era bom, mas infelizmente não tem como a gente sair. É aquela luta, aquela dor de deixar ela aqui nesse lugar e estar lá na rua, batalhando. Estando lá fora, eu já vou correndo atrás de casa para nós, pro nosso futuro, com as nossas quatro crianças. Para depois ela chegar e já ter o nosso larzinho bem confortável esperando ela", diz Valéria, que garante ter largado a vida no crime.

"A primeira coisa que eu quero fazer é trabalhar e alugar a nossa casinha. E começar batalhando, nem que tenha que catar papelão na rua para construir primeiro o nosso quartinho, cozinha, vamos correr atrás. Pego papelão, vou lavar banheiro com escovinha de dente, mas a vida do crime já era. Chega, porque eu tenho a minha família que precisa de mim."

Abusos e mudanças na legislação

A história feliz do casal, apesar de representar uma quebra de paradigmas, está muito distante da realidade da maioria dos presídios brasileiros. Especialmente nas penitenciárias masculinas, gays, travestis e transexuais são alvos constantes de humilhações e abusos, como estupros e agressões físicas.

Para minimizar a vulnerabilidade desta parcela da população carcerária e garantir a sua integridade física, alguns presídios brasileiros passaram a separar os detentos LGBT dos demais, em alas específicas. A primeira iniciativa do tipo foi realizada em Minas Gerais, em 2009, que foi seguido por Rio Grande do Sul, Paraíba, Mato Grosso e Pará. No mês passado, uma resolução do Ministério da Justiça determinou que a medida seja aplicada em todos os presídios do País.

A resolução, assinada pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação CNCD/LGBT e pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), determina que a transferência de travestis e gays para o espaço de vivência específico deve ser “condicionada à sua expressa manifestação de vontade”. Além disso, o decreto publicado no Diário Oficial garante aos presidiários travestis ou transexuais o direito de ser chamados por seu nome social, de acordo com sua identidade de gênero.

Fonte: Terra
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