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Me acusam de 'homem-bomba': o sírio que perdeu riqueza na guerra e vive como ambulante no Rio

26 jul 2016 - 06h12
(atualizado às 08h48)
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Hadi Bakkour, de 21 anos, deixou para trás vida de luxo em Aleppo e hoje vive como ambulante no Rio de Janeiro; ele fugiu de guerra civil que se arrasta há mais de cinco anos na Síria
Hadi Bakkour, de 21 anos, deixou para trás vida de luxo em Aleppo e hoje vive como ambulante no Rio de Janeiro; ele fugiu de guerra civil que se arrasta há mais de cinco anos na Síria
Foto: Arquivo Pessoal Haddi Bakkour

O sírio Hadi Bakkour, de 21 anos, deixou para trás uma vida de luxo em Aleppo para fugir da guerra civil que vem arrasando seu país há mais de cinco anos - já são 400 mil mortos e mais de 5 milhões de pessoas obrigadas a abandonar suas casas.

Hoje, vive como refugiado no Rio de Janeiro, onde trabalha como ambulante, vendendo esfihas e pastas no centro da cidade.

Estudante de direção teatral na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Hadi mora com o irmão, de 23 anos, e o pai, de 80 anos, em um pequeno apartamento de dois quartos na Ilha do Governador. A mãe continua na Síria. "Estamos tentando trazê-la para o Brasil", diz ele.

O jovem, que fala português fluentemente, afirma passar por dificuldades financeiras.

"Nosso dinheiro está acabando. Perdemos tudo na Síria. Vivíamos em uma casa de oito quartos e éramos donos de um supermercado. Nunca nos faltou nada. Hoje, lutamos para sobreviver", conta. "Quando bate o desespero, começo a chorar."

Após contar sua história à BBC Brasil, Hadi relatou em nova conversa com a reportagem que a Guarda Municipal o impediu de vender seus produtos na rua.

Confira o depoimento.

"Me chamo Hadi Bakkour. Tenho 21 anos e estudo Direção Teatral na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Sou de Aleppo, na Síria, uma das cidades mais atingidas pela guerra que já dura mais de cinco anos.

Vim para o Brasil depois de fugir da Síria. Esta é a minha segunda vez aqui. Decidi vir para cá porque estava na idade do serviço militar e tenho uma meia-irmã brasileira, do primeiro casamento do meu pai.

Quando cheguei aqui pela primeira vez, em 2012, não queria vir, mas minha família me obrigou. Achavam que seria melhor para mim sair da Síria. Embarquei rumo ao Brasil com o meu irmão, Adel, de 23 anos, ao atravessar a fronteira com a Turquia. Naquela época, o conflito ainda não havia chegado à situação atual.

Mas eu não me adaptei. Chorava todos os dias. Decidi, então, voltar para a Síria sem avisar à minha família. Eles ficaram muito bravos.

Bombas na porta de casa

Alguns meses depois, o conflito se intensificou. Morávamos em uma casa de oito quartos em um bairro de classe média alta. Meu pai havia sido parlamentar, mas abandonou a ocupação por discordar com os rumos da política local. Ele decidiu montar um supermercado em frente à nossa casa. Além disso, tinha alguns imóveis alugados. Vivíamos confortavelmente. Éramos 'ricos' para os padrões locais.

Mas, pouco a pouco, a guerra começou a se aproximar da gente. As bombas começaram a cair na nossa porta. Perdi alguns dos meus melhores amigos. Um deles lutava a favor do governo e o outro fazia parte da resistência. A política conseguiu nos separar.

Hadi com amigos na Síria; nenhum deles permaneceu no país
Hadi com amigos na Síria; nenhum deles permaneceu no país
Foto: Arquivo Pessoal Haddi Bakkour

Em Aleppo, guardadas as devidas diferenças, vivíamos um estilo de vida ocidental. Apenas mulheres que circulavam pela medina (cidade antiga), por exemplo, usavam o véu. O restante usava até calças apertadas.

Eu não era religioso. Às vezes, ia à mesquita às sextas-feiras. Mas até tomava bebida alcóolica (o consumo é proibido pelo islamismo). Embora tenha sido criado como muçulmano, hoje me considero ateu.

Antes da guerra, a cidade era rica, cheia de atrações culturais. Estragaram tudo. Não havia um mendigo sequer na rua. E pessoas de diferentes religiões ─ judeus, muçulmanos e cristãos ─ viviam em relativa harmonia. Era só não falar de política.

O meu pai, inclusive, escreveu um livro sobre a história dos judeus em Aleppo. O sonho dele é vê-lo publicado.

Retorno ao Brasil

Decidi, então, sair novamente da Síria, pela segunda vez, e sem previsão de retorno.

Peguei um ônibus apenas com a roupa do corpo e uma mala pequena rumo ao Líbano. Uma viagem que levaria algumas horas acabou durando três dias. Tive de mudar o trajeto para evitar passar por postos de controle do (grupo autodenominado) Estado Islâmico. Como morava em um bairro controlado pelo governo, se eles (militantes) vissem meu endereço, me matariam.

Fui bem vestido porque sabia que isso talvez facilitasse minha entrada.

Na fronteira, vi situações muito tristes. À minha frente, por exemplo, um homem visivelmente humilde teve a entrada negada pelos militares. Ele ouviu: "Volte amanhã". É o que mais acontece. São famílias inteiras desesperadas para fugir do conflito.

Mas eu tive sorte.

Chegando ao Líbano, fui até o consulado brasileiro e dei entrada no visto para viajar ao Brasil (desde 2013 o governo brasileiro mantém uma política que facilita a concessão de vistos a refugiados sírios). Dois meses depois, embarquei rumo ao Rio de Janeiro via Dubai.

Hadi com o pai, Huda, na Síria; família morava em casa de oito quartos
Hadi com o pai, Huda, na Síria; família morava em casa de oito quartos
Foto: Arquivo Pessoal Haddi Bakkour

Dessa vez, queria ficar no Brasil. E acredito que, por causa disso, aprendi português rápido. Em pouco menos de um ano, avancei cinco níveis.

Fui morar com o meu irmão, que estuda Química na UFRJ. Ele morava no campus em uma quitinete com a namorada. Mas pouco tempo depois não tínhamos mais dinheiro para pagar pela moradia. Ele decidiu morar em uma barraca no meio do campus e eu fui buscar abrigo em uma igreja na Zona Sul do Rio.

Vida como ambulante

Pouco tempo depois, consegui um emprego. E com a bolsa que o meu irmão recebe da universidade, além das aulas particulares de árabe que ele dá, conseguimos alugar um apartamento de dois quartos na Ilha do Governador. Resolvemos, então, trazer meu pai, de 80 anos, para o Brasil. Meus amigos o ajudaram a sair da Síria.

Foi muito difícil. Imagina um homem de 80 anos deixando para trás tudo o que construiu para morar em um novo país sem nenhum dinheiro. Hoje, passamos por dificuldades financeiras. Mas eu e meu irmão tentamos evitar demonstrar qualquer tristeza.

Acabei deixando o meu emprego para cursar Direção Teatral na UFRJ. Passei a vender esfihas e pastas como ambulante perto da Prefeitura do Rio. Não tenho licença para atuar. Mas não tenho outra escolha. Ou eu fico aqui ou eu morro.

Desespero

Às vezes, bate o desespero e eu choro. Outro dia uma outra ambulante me viu chorando e veio me abraçar. O brasileiro é um povo muito acolhedor.

Trabalho durante o dia e estudo à noite. Volto para casa e começo a fazer a comida que venderei no dia seguinte. Vou dormir todos os dias exausto. Até prefiro porque não me dá tempo de chorar. Evito deitar sem estar com sono. Quero dormir rápido para não ficar pensando nas minhas memórias.

Agora, estamos tentando trazer minha mãe para o Brasil. Ela ficou na Síria. É muito difícil para uma mulher muçulmana deixar a casa e a família ─ ela tem uma filha do primeiro casamento. Se foi difícil para mim deixar a nossa casa, imagina para ela. Além disso, sabemos que, nas atuais circunstâncias da Síria, perderemos nossa casa se a deixarmos para trás.

Ser refugiado é ser uma pessoa perdida. Você chega a um país que não conhece. Você não entende a língua. Você não sabe se locomover. Tudo é um desafio. Você está perdido. E à procura de uma nova vida.

Diferenças culturais e estigma

A cultura síria é bem diferente da brasileira. Lá, antes da guerra, se alguém gritava por socorro, todo mundo corria para ajudar. Aqui todo mundo corre para fugir.

Não quero dizer que as pessoas não se ajudem aqui. Mas quando alguém pede por socorro, é porque há perigo envolvido. E se você ajuda, está dando valor à alma de um completo desconhecido.

Hadi durante o inverno na Síria; ele fala português fluentemente
Hadi durante o inverno na Síria; ele fala português fluentemente
Foto: Arquivo Pessoal Haddi Bakkour

Apesar de o brasileiro ser um povo acolhedor, acho que ainda é muito desunido. Não há uma vontade coletiva para mudar o que está ruim. Noutro dia, entrei em um ônibus e vi que a passagem havia aumentado. Falei para o motorista: "Seu ônibus é antigo, não tem ar condicionado e seus pneus estão carecas. O que justifica esse aumento?".

Os passageiros retrucaram me vaiando e me chamando de "vagabundo".

Se todo mundo deixar de pegar transporte público por um único dia, a empresa vai falir. Mas ninguém quer perder para ganhar depois. É uma mentalidade egoísta e individualista.

Estou falando isso porque me considero brasileiro e quero lutar pelo Brasil. Se não tivesse amor por esse país, não ficaria bravo. Sinto as dores do povo.

Aqui, de maneira geral, não sofro o mesmo estigma do que em outros países por ser muçulmano. Fico feliz por isso.

Mesmo assim, há algumas pessoas que me acusam de ser "homem-bomba".

Nesta semana, por exemplo, estava passando muito mal e fui ao hospital. Quando a enfermeira viu meu nome, me perguntou de onde eu era. E ao responder 'Síria', ela me pediu para levantar a camisa para ver se eu não estava carregando nenhuma 'bomba'.

Apesar do tom de brincadeira, eu não gosto. É uma visão distorcida.

Futuro

Escolhi fazer teatro porque acredito ser o melhor caminho para a mudança social.

Espero um dia poder voltar à Síria e colocar em prática o que aprendi aqui. Acho que o Brasil tem muito a aprender com a Síria e vice-versa.

Quero me tornar um ator conhecido e poder transmitir minhas ideias ao público. E, sem dúvida, transformar meu país.

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