'Meu filho morreu para quê? Nada mudou', lamenta mãe de militar assassinado em ação no Rio
Cabo Michel Mikami morreu aos 21 anos com tiro no rosto, em caso que ainda aguarda resolução judicial; 'passaram três anos, história caiu no esquecimento', diz Michele Mikami.
Pouco mais de três anos após seu filho mais velho ter sido assassinado por traficantes durante operação do Exército no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, Michele Mikami lamenta que nada tenha mudado na situação de insegurança do Estado e que os responsáveis não estejam presos: "Caiu no esquecimento", diz ela à BBC Brasil.
Michel Augusto Mikami, cabo do Exército, morreu aos 21 anos, com um tiro no rosto, enquanto seu pelotão realizava uma ação de apoio a outros militares, acuados em um tiroteio com criminosos, em 28 de novembro de 2014. Hoje, ela teme que sua história se repita com outras famílias na intervenção federal decretada pelo presidente Michel Temer.
"Meu filho morreu para quê? Se pelo menos o Rio de Janeiro tivesse mudado, a gente poderia falar: 'morreu por uma boa causa'. Mas infelizmente a gente vê que foi por nada. Nada mudou, até piorou."
"Ele tinha tantos sonhos, amava o que fazia e queria seguir a carreira. A a gente ficava feliz de ouvir ele falar", conta.
Um contingente de cerca de 3 mil militares ocupou parte do complexo de 16 favelas de abril de 2014 até junho de 2015, em operação para Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a mais longa do tipo até o momento - já foram realizadas 44 no país desde 2010, a maioria com menos de dois meses de duração.
Nessas operações, as Forças Armadas recebem poder de polícia em uma área delimitada, quando se avalia que há esgotamento das forças tradicionais de segurança pública.
A ocupação do Exército não conseguiu acabar com a presença no tráfico na região e a ocorrência de tiroteios. Houve vítimas dos dois lados do conflito - como o caso de Vitor Santiago Borges, morador da Maré ferido em ação equivocada de militares, que metralharam um carro com cinco pessoas em fevereiro de 2015 na comunidade Salsa e Merengue. Principal vítima, ele perdeu uma perna e ficou paraplégico em decorrência do ataque.
Tanto ele como a família de Mikami ainda lutam na Justiça contra a União para serem indenizados.
Do sonho de ser bombeiro no Japão ao Exército
A ocupação da Maré, iniciada meses antes da realização da Copa do Mundo, recebeu corporações de diversas partes do país para evitar expor militares moradores de comunidades do Rio de Janeiro a retaliações de grupos criminosos.
Em geral, cada missão durava dois meses e, nesse período, os soldados serviam por 12 dias seguidos e retornavam para sua casa por outros 12 dias. Mikami era lotado no 28º Batalhão de Infantaria Leve, sediado em Campinas (SP).
Nascido em Vinhedo, no interior de São Paulo, o cabo passou parte da sua infância e adolescência no Japão, terra da família do seu pai.
Sua mãe conta que ele tinha o desejo de ser bombeiro lá, mas que isso não era possível por não ter a nacionalidade japonesa.
Quando eles tiveram que voltar ao Brasil por causa das dificuldades geradas pela crise mundial de 2008, seu filho, com quase 16 anos, já pensava em entrar para o Exército. Antes de ser enviado para a Maré, ele chegou a servir por seis meses na Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti.
Segundo Michele, o trabalho no Rio foi o mais difícil. Quando ele foi morto, faltavam quatro dias para concluir sua missão. Ao longo dos dois meses em que serviu, sua mãe notou uma rápida piora em seu comportamento, que atribui ao estresse do ambiente de "guerra" em que vivia na operação.
"Meu filho era muito fechadão, ele não se abria. Só que a gente percebeu, pelo comportamento dele, que ele mudou. Começou a ficar muito agressivo, muito nervoso, qualquer coisa ele estourava", lembra.
"Na penúltima vez em que ele retornou para casa, eu tive uma crise de choro, pedi que ele não voltasse (ao Rio). Mas foi o que ele disse: 'a partir do momento que a gente dá o nome para ir numa missão, não tem como retroceder'."
Após a morte do filho, Michele conta que a família teve acesso a registros em vídeo da operação do Exército na Maré feitos por soldados. "Aí eu pude entender o porquê daquele comportamento. É coisa de guerra. A gente via sacos de areia no meio da cidade, e os meninos se escondendo, agachando. E era noite, a gente via rajada de tiro passando por cima da cabeça deles."
Nenhum condenado
A voz de Michele embarga ao lembrar que ninguém foi condenado pela morte de seu filho.
Há um processo criminal tramitando na Justiça Militar em que seis homens, acusados de envolvimento com o tráfico de drogas, são apontados como os assassinos. Cinco deles estão foragidos, entre eles Tiago da Silva Folly, identificado como chefe do Terceiro Comando Puro, facção que domina parte da Maré.
Segundo a denúncia do Ministério Público Militar, o 1º pelotão, integrado por Mikami, fazia patrulhamento a pé pela Vila dos Pinheiros, quando foi acionado para dar apoio ao 2º pelotão, acuado então por tiros de traficantes. Havia mais 13 militares envolvidos além de cabo.
Durante essa ação, ele acabou atingido por um tiro no rosto. Segundo laudo de balística, o projétil encrustado no capacete do militar era de calibre compatível, entre outros, com o fuzil AK-47 de origem russa, armamento utilizado por traficantes.
"No calor do momento, alguns generais, comandantes do Exército, nos prometeram: 'a gente vai ficar em cima, não vai deixar que isso acabe em pizza como tudo no Brasil'. Mas passaram três anos e caiu no esquecimento, infelizmente", lamenta a mãe.
Luta por indenização e punição
A família hoje luta na Justiça para receber uma indenização da União. Entre danos morais e materiais, a defesa solicita R$ 5,2 milhões. Em julho, a Justiça de Campinas determinou pagamento de R$ 500 mil - ambas as partes recorreram.
Na ação, a defesa da família argumenta que a operação em que o cabo morreu contava com número insuficiente de homens, o que o deixou vulnerável ao ataque de criminosos. Sustenta também que Mikami não usava equipamento adequado para sua segurança, criticando a qualidade do capacete e o fato de ele portar uma arma não letal (bala de borracha).
A União, por sua vez, nega ter responsabilidade sobre a morte de Mikami e diz que não há provas de causalidade entre alguma ação ou omissão do Exército e seu falecimento. Argumenta também que o risco de morte em ação é inerente à função de militar. Sustenta ainda que não haveria equipamento capaz de evitar sua morte, já que o tiro atingiu seu rosto.
Uma sindicância interna do Exército concluiu que o militar não agiu com imprudência ou imperícia e classificou sua morte como um "acidente em serviço". A instituição decidiu também promovê-lo postumamente a 3º wargento e conceder a Medalha do Pacificador com Palma, a maior honraria dada pelo Exército por atos de bravura. Também foi concedida à família uma pensão de cerca de R$ 3,5 mil.
'Ação política'
Para Michele, o anúncio da intervenção militar no Rio em pleno ano de eleição presidencial é como uma reprise da ocupação do Exército em que seu filho morreu.
"Eu vejo que isso é como enxugar gelo. É política. Em 2018 está se repetindo o que aconteceu em 2014, porque era ano de reeleição. Mas infelizmente quem pagou por isso foi o meu filho."
O Exército não respondeu aos questionamentos da BBC Brasil sobre as críticas da família às condições em que Mikami atuava na Maré.
O presidente Michel Temer vem negando qualquer intenção política por trás da intervenção. Por meio de nota, a Presidência da República disse que a iniciativa "atendeu ao ditame constitucional que prevê a intervenção diante da grave ameaça da ordem" e "também responde à demanda do governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, e à expectativa da sociedade fluminense, que, por ampla maioria, apoia a medida".
O posicionamento ressalta ainda que a intervenção visa "garantir direitos individuais" da população do Rio "sistematicamente violados por ação do crime organizado que mantém parcela substantiva da população do estado sob o permanente constrangimento do medo e da violência".
Já a ex-presidente Dilma Rousseff disse, por meio de nota, que a ação militar na Maré durante o seu governo foi pontual e não se compara à intervenção decretada por Temer. Segundo ela, a operação sucedeu "um acirramento dos conflitos entre facções criminosas na Maré, levando a uma grave instabilidade e com consequências danosas e dolorosas para aquela população".
Dilma reiterou ainda o comunicado que divulgou em 2014 lamentando a morte de Mikami "no cumprimento do dever" e expressou novamente sua "dor e solidariedade à família e aos amigos de Michel".
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