Militante que viveu ditadura conta como foram os anos pré-democracia: 'Aquilo podia significar a minha morte'
Orlando da Cunha viveu os anos “mais brandos” do regime, mas destaca que foram igualmente terríveis
O golpe militar que depôs o então presidente João Goulart em 1º de março de 1964 deu início aos anos sombrios da ditadura militar no Brasil. Os 'anos de chumbo' entraram para a história brasileira como o período mais intenso da repressão do regime. Eles foram seguidos por um período de maior abertura política, de 1974 até 1978, conhecido também como 'anos brandos', mas engana-se quem pensa que o período também não foi repleto de violência.
- Esta é a 1ª reportagem da série de três episódios ao longo desta semana com personagens que viveram a ditadura militar
“Você até se desculpou quando foi dizer isso. Não tem [período] menos violento. Tem violento ou não violento”, aponta o mecânico de automóveis Orlando da Cunha Rosa Filho, de 63 anos, ao falar dos anos em que viveu em meio à ditadura militar. De 1964 até 1985, 20 mil pessoas foram torturadas, segundo levantamento da Human Rights Watch (HRW). Pelo menos 434 morreram e 4.841 representantes eleitos pelo povo foram destituídos de seus cargos.
O filho do metalúrgico não se lembra quando o Golpe Militar no Brasil foi instaurado. Na época, estava prestes a fazer 4 anos. “Nasci em casa, naquela época”, conta ao mencionar que cresceu em Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Contudo, lembra-se bem de ter a sensação de viver preso. “Tem gente que anseia por liberdade. Todos deveriam, mas alguns mais do que outros anseiam por liberdade e [esse] sempre foi o meu caso."
Calmo e bem-humorado, ele recebeu a reportagem do Terra no início da tarde de uma quarta-feira qualquer, no apartamento do segundo andar de um prédio residencial em Santa Cecília, onde vive com a família e três gatinhos: Mimi, Iggy Pop e Missifu. Todos eles respiram arte, o local cheio de violões, guitarras e quadros pregados pelas paredes não deixa dúvidas.
A aparência descontraída, moicano já grisalho, –-irado, diga-se de passagem--, e tatuagens pelo corpo, não revela tudo o que o mecânico já passou em suas seis décadas de vida. Entre goles de Pepsi zero e tragos de cigarro, fala sobre medo, esperança e relembra sua vivência como militante em momento tão injusto da história do nosso País.
A falta de liberdade
A temática da ditadura voltou à tona graças ao filme Ainda Estou Aqui, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva sobre a história de sua mãe, Eunice Paiva. A obra, dirigida por Walter Salles, conta como ela criou os cinco filhos e se tornou advogada de direitos humanos após o desaparecimento e assassinato do marido, Rubens Paiva, em 1971, no período de chumbo do regime. A interpretação da protagonista por Fernanda Torres rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama para filha de Fernanda Montenegro.
Nas redes sociais, muitos internautas fizeram publicações resgatando histórias do período. Uma das postagens foi de Luiza Mariana Telles, filha de Orlando, compartilhada em sua conta no TikTok. Foi assim que o Terra chegou até o militante dos anos 1980.
"Meu pai foi um sobrevivente do regime militar aqui no Brasil. Viu muitos amigos sendo levados e torturados, e esse é um assunto que a gente mantém muito em casa, porque a nossa democracia é muito recente e a ditadura ainda nos assola muito”, diz no vídeo que tem mais de 300 mil visualizações na plataforma.
@ttttttelles ditadura NUNCA MAIS. #aindaestouaqui #ditaduramilitar #ditaduranuncamais ♬ som original - Fernanda Torres
Orlando e a esposa, Maga Telles, são muito politizados, e isso claramente foi passado para os cinco filhos também, que entendem do que se trata a repressão daquela época.
Para ele, entre muitas outras coisas, uma forma de expressar a liberdade é no visual, sobretudo, o cabelo. O mecânico menciona que naquele tempo, poucas crianças podiam ter o cabelo comprido, mas ele podia.
“Achava muito livre por causa daquilo, né? Tanto que até hoje eu tento expressar essa liberdade no cabelo”, revela enquanto sorri e aponta para o moicano. “Parecia que algo faltava. Não que a gente não saiba o que é, mesmo não tendo visto o início da ditadura, a gente sentia falta de alguma coisa”, afirma, desta vez com o semblante sério. Essa coisa que ele fala é a tal liberdade, tanto de ser como de decidir. “Era tudo o que não se tinha”.
O tempo passou e começou a entender o que acontecia no País. Em um episódio marcante na 8ª série, tempo em que os alunos faziam filas para entrar na sala de aula, um professor de matemática --mais revolucionário e cabeludo, como descreve-- questionou em tom de brincadeira o motivo de “marmanjos como eles” ficarem em “filinha”.
Foi nesse dia que ele e os colegas decidiram não participar mais das filas e foi um alvoroço. “Inclusive para ele. Não sei por qual motivo, notei que ele ficou preocupado com aquilo, de ter incitado aquilo, ou de alguém falar que, ‘Ó, foi o professor que falou que a gente não podia entrar em fila'", relembra. O mecânico pontua que talvez tenha sido naquele dia que mais “viu a mão da ditadura”, o autoritarismo e a censura do período enquanto era criança.
Dentro da militância
Sua jornada teve início tarde, porque tentou ser jogador profissional de futebol, e aos 20, virou bancário no Centro da capital paulista. O sindicato da classe sempre foi muito atuante, e então, em 1982, após os anos de chumbo da ditadura, passou a perceber as movimentações, entendendo a tradução do que acontecia com o trabalhador na sociedade.
“Porque está diretamente ligado ao que você vai receber no final do mês. Quem está lutando por você, quem está querendo cortar, quem está aparecendo com uma medida que está mudando a regra”, explica.
Um dia, ele e alguns amigos viram um cartaz chamando para uma reunião de um grupo de bancários do Partido dos Trabalhadores (PT). Eles foram, meio que “caindo de paraquedas”. A partir disso, as coisas ficaram mais claras. Ele descreve que no encontro ocorreu algo diferente, como se entendesse onde estava aquilo que sentia o tempo todo. Conseguia conjuminar o que sabia na teoria com a prática.
O maior envolvimento no sindicato resultou em um convite para uma luta mais ativa por parte de outras pessoas que participavam de núcleos de partidos políticos --naquela época, entidades clandestinas contra a ditadura. Ele e alguns amigos acabaram cooptados.
“Era interessante porque tinha um estudo daquele indivíduo que ia participar daquela organização, porque era clandestina, sujeita a ser presa, torturada, aquela coisa toda. Tinha lá umas duas reuniões, tipo entrevista para tentar decifrar se você era alguém que tinha mesmo esse desejo de luta, ou se você era um policial federal infiltrado, para tentar procurar alguém. Aí a gente começa a entender aquilo, não sei nem se é entender. Acho que a gente começa a ser envolvido por essa situação e ela é real. Por mais que você tenha teorizado e pensado como seria legal se fosse diferente, ali você está fazendo parte da luta. A relação já é bem diferente”, descreve.
Orlando explica como as entrevistas aconteciam enquanto Iggy sobe no sofá e pede por carinho. “Ele está aparecendo? Quer aparecer, safadão?”, ri enquanto passa a mão na pelagem rajada do segundo gato mais velho da casa.
Segundo ele, em um primeiro momento, é passado o conhecimento histórico, no qual eram percebidas as reações dos entrevistados por parte dos entrevistadores. Já na segunda vez, era passado como funcionava a atuação dessas organizações no cenário político atual e o que os aspirantes a integrante queriam ali, uma análise mesmo.
A violência nas ruas
Antes mesmo de entrar para o movimento Liberdade e Luta, a Libelu, surgido na Universidade de São Paulo (USP), ele já sabia da violência nas ruas por parte dos militares. Havia lido sobre, depois soube que seu avô foi preso durante o Estado Novo --período em que Getúlio Vargas governou de forma ditatorial o Brasil, entre 1937 até 1945--, embora a família visse isso como um peso, e ninguém comentava. “Era velado”.
A informação que tinha sobre o momento da ditadura não vinha de forma livre para o mundo. Como mencionado, havia censura --como quando os jornais publicavam receitas no lugar de matérias que não eram permitidas de serem vinculadas--, e para saber sobre, as pessoas tinham que adquirir um jornal de uma dessas tendências, que eram clandestinas, com algum militante.
“Não tinha uma banca de jornal. De todo jeito, você tinha que se movimentar para ir atrás disso. É até interessante que uma vez, conversando com uma amiga de escola, ela falou assim: ‘vocês militaram numa época também que já estava acabando a ditadura, né? Logo em seguida veio a democracia’. Mas a gente só sabe disso agora, né? Naquela época, a gente não sabia se havia um monte de general, uma linha dura, o que estava acontecendo”, frisa.
Orlando nunca foi preso ou torturado (ainda bem), mas passou muito perto disso. No ano seguinte ao que entrou para a militância, havia um chamamento para uma greve geral e ele saiu do trabalho em direção ao sindicato para acompanhar a movimentação. No local, ocorreu um quebra-quebra, vidraça quebrada, uma grande “bagunça”, como aponta.
“Os conflitos são provocados por quem está reprimindo”, explica. Ele continua dizendo que a polícia foi em peso para a rua, pessoas se aglomeraram e iam para cima dos agentes batendo, arremessando pedras. Cinco metros antes de chegar na sede, um Batalhão de Choque passou na sua frente, o que o impediu de seguir o caminho. “Naquele dia, levaram a diretoria do sindicato presa ”, relembra, sobre os momentos da pré-fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
Na delegacia, ficaram alguns dias detidos. “Mas já não era uma época em que a ditadura prendia para torturar. Foi tortura psicológica, ficha, aquela coisa toda. Eu escapei dessa. Provavelmente, se eu estivesse no sindicato, eu ia junto. Foi todo mundo”, diz em meio a risadas tensas que parecem não achar graça da situação.
Nessa ocasião, os integrantes relataram que a pressão era para contar se havia uma organização por trás. “É claro que tinha, como qualquer sindicato combativo. Para falar de uma maneira bem rudimentar e até jocosa, éramos agitador profissional. Estávamos lá para mostrar para as pessoas, por intermédio de um jornal, que tinha ali a nossa política. Cada um desses partidos tinha o seu jornal. Ali é que a nossa política estava descrita”.
Se algum dos integrantes fosse preso por estar com um desses circulares clandestinos, poderia ser preso ou não, dependia muito do momento tático dos militares. “Era mesmo na sorte”, declara Orlando. Para tentar despistar, eram usados pseudônimos e ninguém usava sua verdadeira identificação nas atas e nos periódicos que circulavam. Ele, por exemplo, era Roberto.
“Espero que isso não me comprometa. Não parece engraçado falar isso? Em 1985, pensei: 'Caramba, a gente se livrou disso, né?' Dessa ditadura e tal. Eu até acredito que as pessoas que tinham mais discernimento do que eu também tenham pensado isso. E a gente ficou tão perto, né? De um outro momento desse”, diz ao relembrar a suposta tentativa de golpe da qual o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é investigado.
O cenário de hoje é bem diferente de antigamente. Os jovens vão para barzinhos, participam de movimentos sindicais e estudantis, se manifestam nas redes sociais contra o governo A ou B livremente, mas naquele tempo, o medo era o que tomava conta da garotada.
“Eu não sei como era para as pessoas comuns, que não militavam. Para mim era um terror, porque eu sempre tinha alguma coisa, sempre tinha um jornal, sempre tinha um documento, um livro das atividades que eu estava participando. Era aterrorizante. Eu não pensava muito nisso, mas aquilo podia significar a minha morte”, detalha.
Diretas Já
Antes mesmo do movimento ‘Diretas já’ ficar conhecido, movimentos estudantis e demais integrantes da sociedade já pediam pelo fim do regime militar ditatorial. Mas foi em 1983, que o País passou a caminhar um pouco mais rumo ao fim dos tempos de repressão, pedindo por eleições diretas para a Presidência da República.
No ano seguinte, a população se empolgou e se movimentou para participar de comícios com a presença de artistas e lideranças políticas em várias partes do País, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro. De acordo com a Câmara Legislativa, as maiores manifestações reuniram cerca de 1 milhão de pessoas na capital carioca, e 1,7 milhão na capital paulista.
Entre as participações estavam os músicos Fafá de Belém, Chico Buarque, Martinho da Vila, e os ídolos do Corinthians, Sócrates, Vladimir e Casagrande. Inclusive, Orlando esteve na presença dessas entidades da Democracia Corinthiana naquele 16 de abril de 1984, no Vale do Anhangabaú, mas ficou muito longe do palco, mesmo chegando cedo.
“Estava muito, muito cheio. Mas esse muito, muito cheio para a gente não é uma dimensão do que é todo um País. Era muito, muito cheio, mas eu não estava suficientemente convencido e nem mesmo os militares que eles entregariam o poder”, aponta.
E não entregaram mesmo. Antes de adentrar neste tópico, é necessário explicar o período. Quem governava nesta época era o militar João Figueiredo --o último do regime entre 1979 e 1985-- e teve uma política econômica desastrosa, o que aflorou ainda mais os ânimos da população.
Ele era explicitamente agressivo e autoritário, outro ponto que fez o 'gigante acordar'. Um exemplo disso é uma de suas falas após se recuperar de problemas do coração: “Quando estou com vontade de bater em alguém, é sinal de que estou melhorando. E eu já estou com vontade de bater em uma porção de gente”. Ele também chegou a dizer que o ‘cheiro de cavalo’ era melhor que o de povo.
Foi em seu governo que foi aprovada a Lei da Anistia, em 28 de agosto de 1979, que permitiu que exilados e perseguidos políticos voltassem ao Brasil, que presos fossem soltos e tivessem seus processos anulados. Também em seu governo foi revogado o Ato Institucional número 5, o AI-5, que marcou o período de chumbo da ditadura, no qual permitia que o presidente suspendesse os direitos políticos de qualquer cidadão que fosse opositor e deu carta branca para que os militares partissem para a repressão e a tortura.
A volta dos perseguidos políticos também trouxe força ao movimento 'Diretas Já'. Em 1984, houve ainda a mobilização para a aprovação da emenda do deputado Dante de Oliveira, que pedia por uma eleição com voto popular, mas não teve o efeito esperado no Congresso Nacional, que em 25 de abril, foi derrotada faltando 22 votos para a sua aprovação.
Três meses depois, a Frente Liberal fez um acordo com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) no qual indicou o senador José Sarney candidato a vice-presidente na chapa de Tancredo Neves (PMDB) à Presidência da República.
Os militares foram deixar o poder em 1985. Em outra eleição indireta, Tancredo Neves acabou eleito. Porém, teve problemas de saúde na véspera da posse e não conseguiu assumir. Sarney foi quem ficou no comando durante o período.
“O ato das diretas em si foi muito frustrante. Então, naquele momento, eu poderia imaginar que a gente iria eleger um governo socialista. ‘Acabou o problema do nosso país’. E não teve nem as diretas, né? Até hoje eu não entendo isso, não consegui decifrar. Não sei se a gente tomou de volta o poder ou se eles simplesmente entregaram”, diz Orlando.
O mecânico também declara que acreditava que o maior risco para os militantes era justamente quando entregaram o poder, pois sabiam quem estava envolvido com o movimento pelo fim da repressão.
“Eles tinham dossiê, as pessoas sabiam. A gente, de uma maneira geral, tentava se proteger ao máximo. Mas eles também tinham uma força-tarefa até infiltrada para saber quem era, quem não era, que cargo tinha, qual era a importância”, afirma.
A ditadura militar não voltou. No entanto, o Brasil só teve eleições diretas em 1989, quando Fernando Collor de Mello (PRN) venceu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com 53% dos votos válidos.
A esperança está no jovem
Passar por todo esse terror, pelo medo de ser morto ou torturado, não paralisou Orlando durante todo o movimento, mas o deixou mais imediatista. “Eu queria tudo na hora, porque eu também não sabia quanto tempo eu tinha. Se eu queria uma coisa, tinha que ser para agora, não sabia se tinha o amanhã.”
Os momentos tortuosos também não o impediram de seguir a vida. Ele se casou e tem uma vida plena. Ele e a esposa são organizadores do Coral Palavra Cantada. Juntos, eles também atuam na Oficina Profissionalizante Clube de Mães do Brasil, conhecido como Castelinho, e no Costurando O Bem.
Quando questionado sobre o movimento pedindo a volta da ‘Intervenção militar’ e o ‘AI-5’, logo após a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022, ele diz que foi, ao mesmo tempo, triste e irônico.
“Triste pela falta de conhecimento das pessoas. Irônico, porque o que a gente estava vendo era o galinheiro pedindo para a raposa tomar conta. Não! É muito maluco. Não sei se essas pessoas que pediam o AI-5 sabem o que é. A ditadura chama 64 de revolução, mas foi um golpe. Chama também de intervenção militar, mas foi uma ditadura. É difícil você imaginar que uma pessoa que sabe o que é uma ditadura pedindo isso”, declara encabulado.
Por fim, Orlando tem esperanças de um futuro melhor, apesar do País ter chegado muito perto de um novo Golpe de Estado. “Achava que lá em 85, a gente se livrou disso, que não ia deixar isso para os meus filhos, mas já não tenho tanta certeza”, confessa.
O mecânico classifica a nossa democracia como ‘jovem’ --já que têm somente 35 anos--, e ainda muito frágil. O futuro, como diz, está nas mãos dos jovens, mencionando a palavra novamente, mas como sujeito na frase. Na sua visão, os jornais, revistas, a história, a arte e o cinema, como no filme ‘Ainda Estou Aqui’, podem mostrar o quanto esse período foi terrível.
“21 anos é muito tempo. Muito tempo para sufocar a arte. Como pode alguém querer que uma pessoa que te governe escolha o que você mesmo vai querer? Como o ser humano não consigo entender”, finaliza.