Muito além do R$ 1 bilhão: os tributos que as igrejas não precisam pagar no Brasil
Projeto que aguarda sanção do governo pode levar a União a perdoar dívida bilionária de igrejas — que já são imunes aos tributos mais comuns pagos pelos brasileiros.
O Congresso Nacional aprovou um projeto de lei que pode levar ao perdão de enormes dívidas de igrejas com a União. O PL ainda precisa ser sancionado pelo presidente da República — se isso acontecer, o valor perdoado poderia chegar a R$ 1 bilhão, segundo apurou o jornal O Estado de S. Paulo. Mesmo que o perdão das dívidas não aconteça, os tributos que os centros religiosos não precisam pagar no Brasil já são vários.
Entenda quais são eles e o que está em jogo nas mudanças tributárias que vêm pela frente.
Perdão e isenção
O perdão das dívidas que podem somar R$ 1 bilhão será resultado de um pequeno trecho incluído como emenda em um projeto sobre renegociações de precatórios (dívidas do governo cobradas pela Justiça) que tramitava em regime de urgência na Câmara por causa do aumento das dívidas do governo durante a pandemia, o PL 1581 de 2020. A medida vinha sendo discutida na bancada evangélica desde o ano passado e foi incluída no projeto de lei pelo deputado federal David Soares (DEM-SP), filho do pastor R.R. Soares, líder da igreja evangélica Internacional da Graça de Deus — que tem uma dívida tributária de pelo menos R$ 37 milhões. O trecho incluído pelo deputado tira as igrejas do rol de instituições obrigadas a pagar a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), o imposto que incide sobre o lucro líquido das instituições e serve para apoiar a seguridade social no país. A emenda também anula autuações feitas pelo não pagamento desse tributo até hoje. As dívidas das igrejas — que podem somar até R$ 1 bilhão — são resultado de multas (e encargos) aplicadas pela Receita Federal após fiscalizações mostrarem que algumas igrejas haviam feito pagamentos a pastores e líderes sem recolher os tributos devidos, o que foi considerado como manobras para distribuir lucros, tecnicamente chamada de distribuição disfarçada de lucros o que evitaria o pagamento do tributo.Não há incidência de contribuição à Previdência sobre o pagamento de líderes religiosos se eles receberem um valor sempre igual, mas a Receita Federal identificou que algumas igrejas faziam uma distribuição de dinheiro variável, que se assemelhavam à bonificações e participações nos lucros feitas por empresas.
Impostos e contribuições. No Brasil, as igrejas e centros religiosos de qualquer religião estão entre as instituições às quais a Constituição Federal garante imunidade para impostos. "Mas isso não quer dizer que elas estão livres de qualquer tipo de tributo", explica Tathiane Piscitelli, professora de direito tributário da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas). Impostos são apenas um dos tributos (pagamentos compulsórios ao Estado) existentes no Brasil; e servem para custear em geral as atividades do poder público. Há também taxas e contribuições, que são tributos com finalidades específicas. As igrejas não são imunes ao pagamento de taxas e contribuições, explica Piscitelli, que também presidente da comissão de direito tributário da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil). A tributarista explica também que imunidade é diferente de isenção. "Enquanto a imunidade é garantida pela Constituição e impede qualquer ente público de cobrar os impostos, as isenções são escolhas políticas quanto ao pagamento de tributos específicos, e podem ser alteradas de maneira mais fácil", explica ela. E a emenda do deputado David Soares visa justamente garantir uma isenção para centros religiosos em uma dessas contribuições, a CSLL. Mas há pressão da bancada evangélica que para que as instituições fiquem livres de outros tributos, como a Contribuição sobre Operações com Bens e Serviços (CBS) — novo tributo previsto pela reforma tributária que vai substituir o PIS e a Cofins. No texto atual da reforma tributária, a CBS terá isenção para empresas que não exercem atividade econômica, como entidades de assistência social e educação — incluindo igrejas. Ou seja, o texto pressupõe que nenhuma igreja exerce atividade econômica — mesmo que a Receita Federal tenha encontrado indícios disso na fiscalização.
O que as igrejas não pagam. A imunidade a impostos faz com que nem União, nem Estados e municípios, possam cobrar de centros religiosos qualquer tributo que seja classificado cormo imposto e que tenha incidência sobre o patrimônio, renda ou serviços dos centros religiosos, explica Piscitelli. Isso significa que os templos das igrejas não pagam IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), por exemplo, que são pagos pela maioria dos cidadãos nas cidades. Também não pagam impostos sobre dízimos, rendas e contribuições feitas por fiéis. Embora não seja uma garantia do texto constitucional, uma lei sancionada no ano passado pelo presidente Jair Bolsonaro garante que Estados possam prorrogar por até 15 anos a isenção das igrejas no pagamento de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) em alguns serviços (como na conta de luz). As instituições também não precisam pagar IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) — na prática isso significa que se líderes religiosos usam carros que estão em nome da igreja, não há pagamento de imposto sobre eles. A imunidade, no entanto, não atinge o imposto de renda, que é pago pelos indivíduos e não pelas instituições religiosas. O imposto precisa ser declarado pelo próprio religioso — qualquer sacerdote que receba um pagamento mensal maior do que R$ 1.903,98 deve fazer declaração anual de imposto de renda e pagar ele mesmo o imposto devido. Não há um cálculo do Fisco de quanta arrecadação o Estado perde com a imunidade das igrejas para impostos. Mas é um valor que deve ter crescido na última década, já que a receita das igrejas praticamente dobrou no Brasil entre 2006 e 2013, segundo dados obtidos no ano passado pela Folha de S. Paulo, via Lei de Acesso à Informação. A renda das igrejas subiu de R$ 13,3 bilhões, em 2006, para R$ 24,2 bilhões, em 2013, mostra o jornal.
Polêmica. A imunidade é polêmica e gera muito debate, mas acabar com ela não seria uma tarefa fácil. Em tese, "poderia acontecer via emenda constitucional", explica Piscinelli, "mas é possível que nem assim (a imunidade fosse afastada), já que há quem argumente que a imunidade é uma cláusula pétrea da Constituição por estar ligada com a questão da liberdade religiosa." O argumento de que a isenção é importante para garantir a liberdade religiosa não é exclusivo de religiosos, sendo defendido por também por tributaristas e constitucionalistas não religiosos.
A ideia é que não se impeça nenhum grupo de pessoas de exercer sua fé por não conseguir pagar imposto. Já os críticos argumentam que muitas igrejas funcionam como empresas, o que desviaria o propósito constitucional da imunidade.