“Não acredito em assassinato”, diz paixão uruguaia de Jango
Casada, mãe de duas filhas gêmeas hoje com 31 anos, Eva de León Giménez chegou aos 60 como uma avó “coruja” e recente: seu primeiro neto, Juan Pablo, tem nove meses, e todos os pensamentos estão voltados para o futuro e para ele. Nos últimos dias, porém, Giménez vem rememorando com mais força do que de costume um passado que ainda a acompanha, apesar do português “que já esqueceu” e que aprendeu ao lado de João Goulart, seu amante de 1971 até a morte do ex-mandatário no interior argentino, em 1976.
A estudante que aos 17 anos conheceu o ex-presidente brasileiro –exilado primeiro no Uruguai e depois na Argentina devido ao golpe de Estado de 1964-- mora em um apartamento comprado por Jango no bucólico bairro de classe média Parque Rodó, a menos de dois quarteirões do Rio da Prata. São seus vizinhos a embaixada dos Estados Unidos e a “rambla”: a orla de Montevidéu por onde transitam de engravatados a skatistas, e um ponto ineludível da cidade.
Giménez, que se recusa ser fotografada e diz não ter guardado nenhum registro daquela época, afirma que não fala com jornalistas há 37 anos. Diz que continua a acompanhar a política brasileira e que não acredita na hipótese de que João Goulart tenha sido assassinado, pelo fato de, segundo ela, o mandatário não ter empregados próximos com a constância necessária para que sua morte houvesse acontecido como se presume. “Havíamos chegado da Europa, e ele me chamou para ir com ele à fazenda de Mercedes (batizada de “La Villa”, em Corrientes, Argentina, onde Jango faleceu). Eu não queria ir, e a Maria Theresa foi”, conta ao Terra, quebrando o jejum de quase quatro décadas de silêncio, ao relembrar os últimos dias do político gaúcho. “Acho uma fabulação muito grande isso de que tenha sido assassinado. Eu sei que os militares foram terríveis, tanto no meu país como na Argentina e no Brasil, mas daí a dizer que Jango foi assassinado... Se foi assassinado, os cúmplices foram gente que estava com ele o tempo todo, e só eu estava com ele o tempo todo”, afirma, sobre o depoimento do ex-agente do serviço secreto uruguaio Mario Ronald Barreiro Neira.
Ela lembra com dureza dos assessores do “doutor”, como ainda o chama, e considera que Goulart estava cercado de “corruptos” e “aproveitadores”. “Ivo Magalhães era o procurador de Jango, ele e os ´milicos` ficaram sensacionais aqui no Uruguai depois da morte do doutor. Ivo, por dinheiro, vendia a mãe e morreu multimilionário.” Sobre Claudio Braga, ex-legislador brasileiro e assessor pessoal de Jango, tampouco guarda palavras amenas. “Nenhum deles gostava de mim, e não sei por quê. Creio que porque falava pouco, mas observava muito. Jango chegou a me perguntar qual dos dois me parecia mais executivo, e eu disse que Magalhães era melhor. E hoje, com 60 anos, continuo a pensar a mesma coisa.”
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Ela conta que Goulart adorava cozinhar e que uma das suas especialidades era frango com arroz. “Passei anos maravilhosos com ele, Jango foi meu pai, meu irmão, foi tudo para mim. Era um homem muito doce e me levou a muitos lugares. O que ele me deixou de mais importante foi um capital afetivo, humano e intelectual”, conta, ao se lembrar das muitas reuniões políticas das quais participava como ouvinte e onde havia interlocutores como Celso Furtado ou Darcy Ribeiro. “Eu era muito menina, então, frente a todas essas discussões, ou eu me aborrecia, ou ficava e aprendia, então decidi aprender.”
Além do gosto pela culinária, o ex-presidente também tinha curiosidade com relação ao futuro, o que o levou a consultar uma cartomante em Londres, um mês antes de sua morte, como relata sua companheira nesse momento: “Tudo o que ele mais queria era voltar ao Brasil. E essa mulher disse que o via de volta ao seu país, sendo ovacionado por milhares de pessoas. Só não disse se ele estaria vivo ou morto”, comenta, ao relembrar que o enterro de Jango, em São Borja (RS), foi acompanhado por 30 mil pessoas, em 1976.
“Eu era jovem, era livre”
Três anos depois da morte de Goulart, Giménez se casou e passou a trabalhar com o marido em uma loja de materiais elétricos, de propriedade do casal. Autodefinida como social-democrata, ela conta que Jango lhe definiu até mesmo os pensamentos políticos. “Ele dizia que ¾ do mundo ia acabar sendo comunista e outro dia li em algum lugar que algo como 67% do mundo era comunista ou socialista. Mas eu não estou de acordo com o que está acontecendo na Venezuela de jeito nenhum e também não gosto da administração da presidente argentina, sou mais social-democrata. Jango me dizia, citando Churchill, que a democracia tem muitos defeitos, mas que é muito necessária. Também me ensinou a não votar nas bandeiras, e sim nos homens. Ele me ensinou tudo o que sei de política, tudo o que sou.”
Materialmente, o que sobrou dos anos com o ex-presidente, além do apartamento, foram “algumas jóias” (outras foram vendidas em razão de necessidades econômicas, segundo conta) e uma calçadeira que ele usava, objeto que guarda como sua maior lembrança daqueles tempos.
Giménez e o filho mais velho de Jango, João Vicente, têm apenas três anos de diferença etária. “Eu tinha 18 anos quando ele tinha 15”, afirma. Dando risada, ela conta que eles viviam às turras e que chegaram a parar até mesmo em uma delegacia por conta de uma briga, mas que ao longo dos anos o trato com ele sempre foi cordial.
Sobre se Maria Thereza sabia da relação extraconjugal do marido, Giménez afirma que “ela me via com ele e eu saía nos jornais, no Uruguai, ao lado dele. Além disso, nós duas morávamos em Punta del Este. E é impossível você não se cruzar com as pessoas em Punta del Este. Agora cresceu mais, mas naquele tempo... circulávamos todos pelos mesmos lugares... e ela nunca me disse nada. Jango era muito mulherengo, acho que a vida inteira a enganou. Não sei se não me enganou também. Não creio, mas não sei.”
Sem nunca perder o tom amável, mas sempre firme e taxativa em suas afirmativas, Giménez ri com tristeza quando perguntada sobre se não gostaria de escrever suas memórias. Considera que a cabeça falha com o passar dos anos, que “as pessoas acabam inventando o seu próprio filme” e que “nunca” quis “protagonismo”. “Nem sequer a seu velório fui.” A controversa relação que manteve com Goulart é totalmente conhecida do seu núcleo familiar íntimo e ela diz nunca haver escondido sua história das filhas.
“Eu era jovem, era livre. Jango era mulherengo, e Maria Thereza também tinha seus amores”, afirma, ao comentar sobre a carga pejorativa da palavra “amante” e o consequente tratamento pouco respeitoso que disse sentir algumas vezes, por parte da sociedade e da imprensa, ao longo de todos esses anos, o que a levou a se afastar de qualquer tipo de holofote. “Não tenho nenhum problema em que digam que fui sua amante. No sentido estrito da palavra, amante é aquele que ama. O que não gosto e que sinto é o machismo que percebo quando te dizem: ´a amante`. Não há nada de espetacular na minha história. Fui o amor de João Goulart.”