Não deixo de confrontar os colegas que espalham fake news sobre vacinas, diz médica brasileira que viralizou em post da Unicef
Depois de um ano de pandemia, diz a paulista Maria Flávia Saraiva, muita gente está cansada de lutar contra a desinformação. Mas a médica da família acha fundamental manter o esforço, especialmente em sua área: 'Uma coisa é receber notícia falsa de parente, outra coisa é quando vem dos próprios profissionais da saúde'.
A médica Maria Flávia Saraiva se vacinou no último dia 22 de janeiro contra a covid-19 e resolveu compartilhar o momento em sua conta no Instagram.
A ideia, mais do que dividir um momento pessoal, era "dar o exemplo".
Ela vive em Sorocaba (SP) e trabalha como médica da família em dois municípios do interior paulista com realidades diametralmente opostas.
Indaiatuba está entre os maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, na 76ª posição entre os 5.572 municípios, enquanto Capela do Alto está quase duas mil posições abaixo.
Esta última tem cerca de 20 mil habitantes, uma população rural em sua maioria, muito desassistida e com alto índice de analfabetismo. "Às vezes é preciso desenhar a receita para o paciente", ela conta.
Nesse sentido, Maria Flávia acredita que os profissionais de saúde têm obrigação de combater a desinformação e as notícias falsas. Especialmente nos locais em que as populações têm acesso mais difícil a informação clara e de qualidade.
Mas não só. Não foram poucas as vezes em que ela teve que desmistificar nas unidades de saúde dos dois municípios as "fórmulas milagrosas" contra a covid-19 - de bicarbonato de sódio a cloroquina - que, na verdade, não têm qualquer eficácia comprovada contra a doença e, em alguns casos, podem causar efeitos colaterais ou dano à saúde dos pacientes.
Post compartilhado pela Unicef
Junto do registro do momento em que foi imunizada, a médica compartilhou uma imagem da mãe ainda criança.
"Essa menina da primeira foto, com o lado esquerdo do corpo paralisado (olhem o bracinho torto) é a minha mãe, enquanto se recuperava da poliomielite, a paralisia infantil, há mais de 60 anos."
"Nesses anos de trabalho eu nunca vi, atendi ou soube de algum caso de criança com essa doença, pois ela é considerada erradicada do país desde 1989, graças às campanhas de vacinação!" (O último caso de pólio registrado no Brasil foi em 1989, e em 1994 o país recebeu certificado de eliminação da doença).
Por sugestão de uma amiga, Maria Flávia marcou a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), que há décadas lidera campanhas globais de vacinação infantil.
Poucos dias depois, a organização entrou em contato com a médica por mensagem direta e pediu permissão para reproduzir o conteúdo, com o texto traduzido para o inglês. Desde então, o post foi curtido por quase 41 mil pessoas.
Nos últimos dias, ela tem recebido mensagens de apoio vindas de diversos países. A repercussão deu-lhe energia para continuar alertando sobre a importância da vacinação e combatendo a desinformação especialmente neste momento em que, passado quase um ano de pandemia, ela vê muita gente optando por evitar confrontar quem dissemina informações falsas.
"O pessoal da área de saúde que tentava explicar (por que as informações não eram verdadeiras) no Facebook, nos grupos de família foi ficando esgotado."
Ela faz questão de responder aos colegas médicos que nos grupos de WhatsApp ou nas redes sociais defendem o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra covid-19 ou os que dizem que não vão se vacinar e tentam levantar dúvidas sobre os imunizantes.
"Já entrei em discussões acaloradíssimas", conta. "Meu namorado e meus pais são contra, dizem que isso desgasta demais."
"Mas uma coisa é receber notícia falsa do meu tio que mora no interior de Minas, outra coisa é quando vem dos próprios profissionais da saúde", ela completa.
Efeitos colaterais do 'protocolo covid'
A médica chegou a pedir demissão de um outro emprego, em meados do ano passado, por discordar da decisão da prefeitura de prescrever uma série de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19 a pacientes com a doença.
A profissional pediu que o nome do município não fosse citado por temer represálias.
Pouco depois do início da pandemia, a cidade publicou um protocolo em que recomendava a administração de uma série de medicamentos, entre anticoagulantes, anti-inflamatórios, antibióticos, antiparasitários e a hidroxicloroquina, aos pacientes com sintomas da doença.
"Os remédios eram dados às vezes antes ainda da confirmação do teste laboratorial (de diagnóstico da covid)", ela afirma.
No protocolo, obtido pela reportagem, consta que os médicos não seriam obrigados a prescrever o "tratamento profilático", mas ressalta-se que apenas aqueles que o seguissem receberiam apoio jurídico caso pacientes entrassem na Justiça.
Em paralelo, profissionais da saúde de algumas unidades também receberam mensagens da administração informando que, se quisessem seguir trabalhando na instituição, deveriam seguir o protocolo.
Sentindo-se pressionada, a médica conta que a gota d'água aconteceu quando ela atendeu um paciente que, em sua avaliação, apresentava severos efeitos colaterais resultantes do "tratamento profilático".
O homem de meia idade, diz ela, voltou à unidade de saúde dois dias depois de iniciar os medicamentos, sentindo-se pior. Ele vomitava e tinha a função do fígado alterada - um quadro claro de intoxicação medicamentosa, diz Maria Flávia.
"Decidi que não seria conivente com aquilo, não vou fazer o que não acredito. A medicina é uma ciência, a gente precisa de provas científicas (de que os medicamentos de fato funcionam)", diz ela, que pediu demissão depois de quatro anos no cargo.
Sobre a política do "mal não faz" abraçada por muitos daqueles que têm tomado remédios contra vermes e parasitas, por exemplo, achando que estão fazendo um tratamento profilático contra a covid, ela rebate: "Faz mal sim. Tem efeitos hepáticos muito graves."
Da poliomielite à covid
Formada em Medicina desde 2016, Maria Flávia decidiu trabalhar no SUS quando, na faculdade, passou 10 dias em um quilombo no município paulista de Itapeva em uma expedição do Projeto Rondon, iniciativa do Ministério da Defesa que leva estudantes de diversas especialidades a comunidades em várias regiões do país.
"É uma pobreza que eu nunca imaginei que existisse no Estado mais rico do Brasil", ressalta. Marcou a imagem das casas de madeira, com chão de areia e fogão a lenha, e os problemas de saúde que ela nunca tinha visto nas visitas às cidades no entorno de Sorocaba - como fungos que atacavam crianças por causa da maneira como usavam fraldas de pano.
"Encontrei sentido ali, em ajudar quem realmente precisa. As pessoas que estão no SUS não têm outra opção a não ser passar comigo. Ou eu faço o melhor trabalho que posso ou eles não vão ter a quem recorrer", diz.
Em casa, ela cresceu ouvindo sobre a importância das vacinas.
Como a história sobre como a avó materna fez questão de vacinar todos os filhos quando a imunização contra poliomielite finalmente chegou a Três Corações (MG), ainda que as crianças estivessem já fora da idade alvo e que a filha acometida pela doença aos dois anos e meio em 1955, nesse então com 10 anos, tivesse se recuperado quase sem sequelas.
O caso da mãe de Maria Flávia, aliás, foi uma exceção. Entre as outras crianças que também tiveram pólio na cidade mineira naquela época, a maioria teve de conviver com sequelas mais graves.
Monica Ribeiro de Andrade lembra de pelo menos cinco que, assim como ela, tiveram episódios de febres altíssimas e depois experimentaram alguma restrição de movimento.
A família credita a recuperação "milagrosa" à mãe de Monica, avó da médica, que tomou a iniciativa de estimular os movimentos da filha em uma época em que a fisioterapia estava longe de ser difundida no interior do Brasil.
Ela percebeu que havia algo errado quando, depois dos dias de febre intensa - em que a menina chegou a convulsionar -, ofereceu à filha uma maçã e ela, que era canhota, agarrou-a com a mão direita.
"Ela repetiu isso uma, duas, três vezes, e minha mãe sempre estendia a mão direita. Minha avó então reparou que ela não estava movimentando o lado esquerdo do corpo."
Passada a fase aguda, ela usou a criatividade para fazer com que a filha movimentasse braço, mão e dedos das mais diferentes formas - de aulas de piano e balé à manivela do moedor de café da fazenda em que a família morava. A insistência deu certo.
"Nunca passou pela minha cabeça que alguém poderia ser contra vacina, contra algo que salva vidas", diz Maria Flávia.
Ela segue falando quando pode sobre a importância da imunização não só contra a covid-19, mas contra diversas doenças evitáveis graças às vacinas, como o sarampo.
Nas últimas semanas, tem feito "propaganda" a cada um que entra no consultório: "Já estou vacinada, hein?"
A segunda dose está marcada para esta sexta, dia 12.