'Não queremos colocar Marielle em um pedestal', diz irmã
Em entrevista à BBC Brasil, família diz que tem sido difícil conviver com boatos e especulações sobre a vereadora morta na semana passada, que vivia 'seu auge' e pensava em voos políticos mais altos.
A porta do apartamento onde vivem os pais de Marielle Franco, em Bonsucesso, na zona norte do Rio, se mantém aberta durante toda a tarde de uma segunda-feira abafada, com vizinhos, familiares, amigos entrando e saindo para dar apoio à família.
Por aquela porta, Marinete da Silva, sua mãe, diz que às vezes ainda fica esperando ver a filha entrar, dizendo "gente, cheguei!", e mostrando que tudo não passou de um pesadelo.
"Parece que a gente está vivendo um sonho. Não dá para acreditar", diz Marinete, mostrando fotos da filha ainda pequena, sorridente, carregando um guarda-chuva com as cores do arco-íris.
Aos 38 anos, Marielle Franco, vereadora do PSOL, foi assassinada na noite de quarta-feira passada, alvejada dentro de seu carro depois de sair de um evento sobre o empoderamento de mulheres negras. O ataque, que também matou seu motorista, Anderson Gomes, ocorreu no Estácio, próximo ao centro e à Prefeitura do Rio.
Diante de uma onda de fake news sobre Marielle, sua irmã, Anielle Silva, de 33 anos, diz que tem sido difícil conviver com a "especulação pesada" sobre a irmã, e a boatos "absurdos" de que ela teria sido financiada pelo tráfico ou teria sido casada com o traficante Marcinho VP.
"Ela não tem que ser colocada num pedestal, não é isso que a gente pede", diz Anielle à BBC Brasil.
"Mas ela era uma líder que lutava por minorias e contra tudo aquilo que vemos acontecendo todos os dias no Rio. As pessoas não entendem isso. Falam que ela era uma mulher negra, e que todo dia morrem outras mulheres negras. Acho que estão simplificando demais o que aconteceu. Ela teve 46 mil votos, tinha 70 mil seguidores no Facebook. Era muita coisa. Fica o seu legado. Eu espero que se respeite o seu legado."
'Auge'
Marielle cumpria seu primeiro mandato como vereadora, tendo sido a quinta candidata mais votada nas eleições de 2016. A irmã conta que chegava em casa empolgada, contando as novidades e os planos que o PSOL tinha para ela. "Parecia uma criança", diz Anielle.
No pleito de 2018, Marielle seria lançada como candidata a vice-governadora, em uma chapa ao lado do vereador Tarcísio Motta, ele concorrendo a governador pelo PSOL.
"Ela estava no seu auge. Estava vivendo tudo que queria viver", conta a irmã, que é formada em Letras e professora de inglês em escolas particulares do Rio.
"Estava fazendo tudo que podia. Tinha um ato na zona sul, ela estava lá. Tinha outro ato na zona oeste, ela estava lá. Ia discursar em um evento em Harvard em abril, estava superanimada. Seria sua primeira vez fora do país."
Marielle e Anielle receberam seus nomes por uma artimanha da mãe. Quando engravidou pela primeira vez, Marinete gostava do nome que estava moda, Danielle. Mas queria algo diferente, mais parecido com o próprio nome. Então veio a Marielle. Cinco anos depois veio a Anielle. O nome da caçula foi escolhido para começar com "A", como o do pai, Antonio Francisco da Silva.
O nome de batismo da primogênita, na verdade, era Marielle Francisco da Silva. Mas a filha quis transformar o Francisco em Franco por achar que seria um nome mais forte para a carreira política, conta Antonio.
Ele mostra as fotos da época da formatura da Marielle, tanto na escola quanto na universidade, e aponta para seus retratos mais recentes como vereadora.
"Ela estava cada dia mais bonita. Ela desabrochou com a idade", diz.
Ao seu lado, a filha de Marielle, Luyara, percorre uma pilha de fotos antigas para selecionar fotos suas ao lado da mãe. "Todo dia estou postando uma foto de nós duas juntas nas minhas redes sociais", conta Luyara.
'Tem que rezar'
Anielle falava com a irmã quase todos os dias, e diz que ela não dava qualquer demonstração de medo. "Nunca pediu escolta, segurança, nada", diz. O único relato recente que indicava tensão foi quando Marielle virou relatora da comissão formada na Câmara dos Vereadores para monitorar a intervenção federal.
"Ela falou, 'cara, eu fui nomeada relatora da intervenção. Tem que rezar'. Não desenvolveu além disso. Só disse: 'tem que rezar'."
A decisão de entrar para a política preocupou a família, sobretudo a mãe, que achava que a filha ficaria muito exposta. Mas Anielle diz que isso se devia sobretudo à sua proximidade com o deputado Marcelo Freixo, do PSOL, com quem Marielle trabalhou na CPI das Milícias, na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Freixo já foi sofreu ameaças e anda escoltado por seguranças.
"Tínhamos medo de que as ameaças contra ele se concretizassem, e ela estivesse junto. Nunca imaginamos que poderiam pegá-la como aconteceu, sozinha, no carro. Aquilo estava marcado para ela. Designado", diz Anielle.
'Ela não acreditava que ela ia ser eleita'
Em outubro de 2016, no domingo das eleições municipais, Marielle votou, foi para casa dos pais, "bateu um pratão" e foi para o quarto dormir. Estava exausta depois da batida pesada da campanha. Pediu que os pais a acordassem por volta das 18h, quando a apuração dos votos deveria estar começando.
"Ela não acreditava que ia ser eleita. A gente também não acreditava. Ela falava que desta vez ainda não ia dar, mas que talvez na segunda candidatura conseguisse. Falava que se conseguisse 5 mil votos já seria um bom resultado."
Enquanto Marielle dormia, seu telefone não parava de tocar, e quando acordou, recebeu a notícia que já estava com mais de 13 mil votos.
"Ela ficou uns 10 minutos parada na cama pensando: 'isso não está acontecendo', digerindo a informação."
Marielle foi eleita vereadora com 46.502 votos, e teve sua votação mais expressiva em bairros da zona sul, que concentra eleitores simpatizantes de bandeiras que defendia - o feminismo, os direitos humanos, a igualdade racial e de gênero, a igualdade social.
Já no Complexo da Maré, onde cresceu, a votação foi aquém do que a família esperava. Para Anielle, isso se deve a uma resistência na favela ao PSOL, "que tem essa mistificação de ser um partido da zona sul"; e também a uma falta de compreensão sobre o que são direitos humanos.
"As pessoas confundem o que é a defesa de direitos humanos. É triste, mas é verdade. Pensavam: 'Ah, o Freixo defende bandido. Vai liberar maconha e isso aqui vai ficar uma zona. Não vou votar nela, não.' Acho que esses pontos tiveram influência crucial."
Como uma de duas negras na Câmara dos Vereadores e a primeira nascida na Maré a ter um mandato lá, Marielle convivia com desafios diários.
"Ela matava um dragão e um leão por dia. Sempre tinha alguém para criticar, mandar uma piadinha, mesmo na Câmara. Comentários sobre ser sapatão, ser negra, ser mulher... Ou então faziam 'fiu-fiu' para ela e ela ficava 'p' da vida", conta Anielle.
"Mas ela era muito querida mesmo entre políticos de outros partidos. No velório, não sei nem quantos deputados e vereadores vieram me cumprimentar. Falavam: 'Ela era demais, era marrenta, mas eu gostava muito dela, ela não merecia isso. Ela não tinha vergonha de se assumir como vereadora negra. De alguém que saiu da Maré e venceu.'"
Casamento
Marielle tinha um relacionamento estável com Mônica Tereza Benício e vivia desde 2017 em uma casa de vila na Tijuca com ela e com a filha. A relação era antiga, mas só foi revelada para os pais recentemente, quando elas resolveram morar juntas.
"A minha mãe é muito católica. Ela não queria afrontar. Nunca quis. Então ela preferiu ficar mais retraída do que falar 'olha, eu sou (lésbica)' e tudo. Quando ela contou, a primeira reação da minha mãe foi o silêncio. Porque é difícil para ela, a gente entende, são gerações diferentes."
Hoje, Anielle diz que todos são muito próximos - e estão todos muito abalados.
Os pais de Marielle são da Paraíba. Marinete nasceu em Alagoa Grande, se mudou para João Pessoa na adolescência e lá começou a faculdade de Direito. Tivera contato com Antonio na infância - suas famílias se conheciam - e, quando o reencontrou, ele vivia no Rio. Eles casaram e se fincaram na capital fluminense.
Inicialmente o casal morou em Ramos, mas depois se mudou para o Complexo da Maré, para um dos primeiros conjuntos habitacionais lá construídos, nos anos 1970: o Conjunto Esperança.
Anielle diz que crescer na comunidade foi definidor para as duas irmãs, que eram "unha e carne".
"A gente só se tornou o que é hoje por ter crescido na Maré", diz. "Aprendemos muito cedo o que era ter dificuldade. O que é não conseguir ir para a aula por causa de um tiroteio ou a acordar e ter gente morta na porta do prédio. E a minha mãe sempre falava: 'Vocês têm que estudar. Vocês não podem achar isso normal'."
Marinete atua até hoje como advogada, nas áreas cível e previdenciária. Antonio é aposentado e trabalhava no setor financeiro.
"Eu me sacrifiquei muito para criar essas meninas. Lutei muito por elas", diz Marinete.
Adulta precoce
A carreira da mãe ficou em suspenso até que Marielle, a irmã mais velha, crescesse o suficiente para começar a assumir responsabilidades. O que aconteceu quando ela ainda era uma criança.
"Com 10 anos, a Marielle assumiu tudo", conta a mãe. "Ela levava e buscava a Anielle na escola, ia nas reuniões de pais para mim. Aos 11 anos, arrumei um estágio para ela na Suam (Centro Universitário Augusto Motta), onde eu trabalhava. A partir dessa idade, ela já pagava suas coisas."
"Ela sempre foi muito dinâmica. Sempre teve o perfil de liderança. Quando brincava de boneca, sempre queria ser a mãe, e dominar as brincadeiras", lembra Marinete.
As duas irmãs eram muito unidas, e Anielle diz que ela estava sempre defendendo a caçula, papel de irmã mais velha.
"Eu sempre gostei de jogar vôlei, mas no condomínio só tinha meninos que jogavam. Eu descia pedindo para jogar e eles não deixavam. Ela ia lá, pegava a bola e falava: 'Se a minha irmã não vai jogar, ninguém vai jogar.' Ela era ótima."
Marinete é católica fervorosa. "Aqui todo mundo é mariano", diz, acariciando um pingente de Nossa Senhora da Aparecida no pescoço.
O vínculo com a igreja era parte da vida familiar na Maré, e ainda adolescente Marielle virou catequista, dando aulas para as crianças que se preparavam para a primeira comunhão, o que fez ao longo de dez anos.
Quando podia, escapava para os bailes funk do Furacão 2000, "um dos melhores que tinha na região", diz Anielle. Ela revela que a irmã chegou a ser "Garota Furacão 2000", uma das dançarinas do baile.
"Ela falava que ia para a missa, mas ia para o baile funk. A minha mãe ficava atrás dela que nem uma louca."
Despertar político
O despertar para a política começou no Pré-Vestibular Comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), no qual Marielle entrou em 1998, em uma das primeiras turmas.
"O Ceasm não tinha material, às vezes não tinha aula, tinha muita dificuldade", diz Anielle. "Foi nessa época que ela começou a aprender a lutar para conseguir as coisas."
Marielle interrompeu o curso quando engravidou de Luyara, aos 18 anos. A filha nasceu no dia 24 de dezembro de 1998.
Mãe solteira, Marielle conseguiu retomar os estudos com ajuda da família para criar Luyara, e obteve uma bolsa integral para a PUC-Rio, onde se formou em Ciências Sociais.
Anielle lembra que a irmã voltava das aulas na PUC contando sobre tudo que estava aprendendo e sobre as diferenças entre a Maré e a universidade, que tem alunos em sua maioria de classe média alta. Na época, ela dava aula no pré-vestibular - e aproveitava para abordar questões sociais ou falar de valores no meio das aulas, fossem de Português ou de História.
"Desde cedo ela lutava pela igualdade", diz Anielle. "Uma vez ela viu uma amiga dela apanhando do namorado e foi para cima, falou que não podia, que ia chamar a polícia. Ela era sempre assim."
'Nunca pensei em entrar para a política'
Anielle conta que foi doído se deparar com o boato de que a campanha ao posto de vereadora teria sido financiada pelo tráfico.
"A gente trabalhou muito naquela campanha, e não tinha de onde tirar verba. Eu estou até hoje pagando parcelas no cartão de crédito com gastos que tive para mandar fazer adesivos, bandeiras. E para agora ter que ouvir isso", lamenta. "A família estava muito engajada para ajudar. Foi uma campanha construída no boca a boca, com muito esforço."
Enquanto conversamos, o Jornal do Brasil de segunda-feira está sobre a mesa da sala, com uma manchete anunciando em letras garrafais: "Irmã de Marielle vai ser candidata", e texto afirmando que no partido haveria "um consenso que a tragédia apresenta grandes oportunidades" para consolidar uma carreira política para Anielle.
A notícia motivou uma nota do partido expressando indignação. "A exploração da dor, do luto e da revolta legítima de milhões de pessoas para emplacar uma chamada fantasiosa a respeito de supostas pretensões eleitorais da irmã de Marielle Franco é um exemplo chocante do pior tipo de prática jornalística", afirmou. Anielle ficou chocada ao ver a notícia.
"Eu nunca, nunca na vida pensei nisso em entrar para a política, ainda mais nesse momento de dor. Eu não gosto de política, eu não gosto da política brasileira. Nunca falei nada disso para jornalista nenhum, não entendo eles colocarem a história como capa, com a história recente como ainda está", lamenta.
"Nunca foi a minha vontade. Nunca. É falsa a notícia, essa possibilidade não existe. Aliás, acho que a minha mãe teria um infarto."
Comoção mundial
A repercussão mundial da morte da Marielle, com as manifestações e protestos no Brasil e no exterior, tem sido uma forma de alento para a família.
"Ver essa comoção nos acalma, acalenta. Demonstra o quanto ela era grande, e como estava se tornando maior ainda", diz Anielle.
Manifestações de pesar vieram dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, do Papa Francisco e até da cantora Katy Perry, que quis se encontrar com Anielle e Luyara antes de se apresentar no Rio no domingo, e acabou chamando as duas para o palco para um minuto de silêncio. Em um vaso sobre a mesa da sala, as rosas vermelhas foram presenteadas pela cantora.
Anielle prefere não tecer especulações sobre quem estaria por trás da morte da irmã. Mas acha que ela foi morta "porque estava incomodando muito".
"Posso estar enganada, pode ter sido só ruindade mesmo. Mas acho que viram que ela saiu lá de baixo e estava ali, vencendo, ganhando voz, ganhando visibilidade, indo em tudo que é canto, falando, defendendo suas causa, aglomerando mais gente ao seu redor."
"Ela nunca teve papas na língua. Se ela tivesse que falar, reclamar, falava mesmo, sem medo. Acho que eles viram muito potencial ali e quiseram calar antes que ela fosse mais à frente."
Até segunda-feira, nenhuma autoridade havia entrado em contato com a família - nem para falar sobre a morte, nem sobre as investigações. "A gente fica sabendo pela mídia ou pelo partido", diz Anielle.
"Mas eu acredito na Justiça, eu quero acreditar que eles vão conseguir solucionar o caso. Eu preciso acreditar."
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