'Não somos racistas': a comunidade de descendentes de confederados americanos no Brasil
Motivo de confrontos nos Estados Unidos, Robert Lee é homenageado com nome de uma avenida no interior de SP e lembrado como uma figura importante entre os brasileiros descendentes de confederados.
Em 1865, 2,7 mil americanos desembarcaram no Brasil após a Guerra de Secessão, que opôs o Sul e o Norte dos Estados Unidos. Não havia mais espaço para a defesa da supremacia branca e da escravatura, valores caros para os migrantes que desembarcavam dos Estados Confederados do Sul.
Hoje, um século e meio depois, descendentes dessas famílias fazem uma festa anual para celebrar o orgulho de herdar o sangue americano e lembrar a chegada de seus antepassados em Santa Bárbara D'Oeste, município de 180 mil habitantes no interior de São Paulo.
Defensores do general Robert Lee, ideólogo da escravatura e pivô da confusão do último fim de semana em Charlottesville - quando supremacistas e antifascistas se enfrentaram com violência -, os brasileiros se esforçam para manter os símbolos do líder dos Estados Confederados do Sul, inclusive de sua bandeira - vistos como elogios ao racismo e à supremacia branca nos EUA.
Em entrevista à BBC Brasil, o presidente da associação Fraternidade e Descendência Americana, João Leopoldo Padovese, afirmou repudiar o atentado perpretado por um supremacista branco que atropelou antifascistas em Charlottesville, mas defendeu o direito de ostentar os símbolos.
"Não somos racistas. A Ku Klux Klan adotou a bandeira confederada para provocar outros grupos. Para nós, a bandeira confederada tem um significado totalmente diferente: família e história", diz ele.
Padovese, no entanto, relativiza a questão da escravidão. "Aquele período da história: como você vai julgar que o cara estava fazendo algo errado? A Constituição permitia e a Igreja permitia (ter escravos). Hoje, a gente sabe que está errado, mas, há 150 anos, eles sabiam que estavam fazendo uma coisa errada? É difícil dizer. Sou católico. Eu vou deixar de ser por causa dos crimes que a Igreja Católica cometeu?", questiona.
No interior de São Paulo, o mesmo Robert E. Lee, cuja remoção da estátua em um parque de Charlottesville foi o estopim das tensões, nomeia uma avenida dentro de um condomínio fechado de Santa Bárbara.
Os confederados brasileiros defendem as homenagens e contestam a historiografia dominante que descreve o militar como um extremista, defensor da superioridade dos brancos e da escravidão dos negros.
"Ressaltamos que o general Robert E. Lee é considerado um dos melhores generais da história dos EUA, que ele não possuía escravos e entendia que a escravidão era um grande mal. Ele liderou as tropas confederadas na sua luta pela independência. Desta forma, o general Robert E. Lee não representa os grupos extremistas de direita estadunidense", informou em nota a associação brasileira Fraternidade e Descendência Americana após os confrontos no último fim de semana.
Símbolo de ódio
Todos os anos, cerca de 2,5 mil pessoas se reúnem para comemorar a chegada dos americanos no Brasil. A festa confederada ocorre no Cemitério do Campo, onde estão enterrados os fundadores da cidade. Este é o único evento de Santa Bárbara D'Oeste no calendário oficial do Estado de São Paulo.
Durante a festa, há apresentações de danças e músicas típicas do Sul americano. Eles ainda cantam o hino confederado e fazem comidas típicas, como churrasco, hambúrguer e frango frito.
A ligação da região com os imigrantes americanos é tão presente que, até 1998, o brasão da cidade de Americana tinha alusões à bandeira confederada. Em defesa do estandarte e das estátuas, confederados americanos e brasileiros lançam mão do argumento de que grupos extremistas estão, indevidamente, "se apropriando de um símbolo que não é deles" para promover o ódio.
Mas o uso desses símbolos e as honrarias aos líderes na guerra separatista, como Robert Lee, são severamente criticados por historiadores ao redor do mundo. Segundo Bill Ferris, diretor do Centro de Estudos da Cultura Sulista da Universidade do Mississipi, nos Estados Unidos, a bandeira é hoje comparável à suástica, símbolo do nazismo. Ela também foi adotada por grupos extremistas, como a Ku Klux Klan, que defendiam a segregação racial.
O estandarte vermelho com um "X" em azul e estrelas brancas foi o principal símbolo usado pelos Estados Confederados durante a guerra civil, quando tentaram impedir a abolição da escravatura e buscavam independência em relação às 13 colônias do Norte, conhecidas como Nova Inglaterra. Depois da derrota do Sul no conflito, a bandeira não saiu de cena. Ela tem sido ostentada com orgulho em muitos Estados americanos, provocando reações cada vez mais extremas quanto ao que representa.
Há dois anos, o símbolo causou uma confusão entre motociclistas num estacionamento em um bar no Texas. O confronto iniciado por causa de um adesivo colado em uma das motos terminou com ao menos nove mortos e 18 feridos.
Os descendentes de americanos no Brasil, no entanto, tendem a ignorar a tensão relacionada a esses símbolos. Para eles, vestidos e decorações nas cores do estandarte são úteis apenas para celebrar e rememorar a chegada de seus antepassados ao Brasil e da descendência americana.
Padovese, no entanto, disse que, em 2011, grupos extremistas foram à festa e causaram problemas. "Conversei com eles normalmente. Não podemos impedir a presença de ninguém. Mas começaram a agir com um estilo de conversa que a gente não concorda e precisamos tirá-los de lá. Foi a única vez e ocorreu do lado de fora do cemitério", contou evitando dar mais detalhes sobre o caso.
Ele acha improvável que os símbolos - tão caros aos confederados - sejam proibidos no Brasil, como já ocorre hoje com a suástica nazista, criminalizada por uma lei federal.
"No Brasil, ela tem um significado diferente porque ela é um símbolo de rebeldia, de lutar por aquilo que você acredita. Para nós, é um símbolo de família, de amor, de confraternização", disse.
Ele defende que falta conhecimento às pessoas que criticam a cultura confederada. "É muito mais simples assistir a um filme que fala mal do confederado e tirar suas conclusões do que ler um livro e entender realmente o que foi a guerra civil. A guerra foi política. O Sul não concordava com algumas coisas e fez um referendo separatista. O (então presidente Abraham) Lincoln não aceitou, e o Sul pegou em armas. O Sul apenas se defendeu", afirmou.
A Fraternidade faz visitas guiadas diariamente para apresentar o cemitério particular onde estão enterrados cerca de 650 descendentes americanos e primeiros imigrantes a chegar em Santa Bárbara, além de contar a história da imigração americana na região. Cada pessoa paga R$ 5 pelo passeio. Há ainda uma parceria com a Prefeitura para que alunos da rede pública também conheçam o espaço.
Orgulho e falhas
Os confederados brasileiros sentem orgulho de seus antepassados e dos feitos que os levaram à região - ainda que essa história inclua a escravidão de muitas pessoas durante décadas, como eles mesmos reconhecem.
Em terras brasileiras, além de fundar as cidades de Santa Bárbara D'Oeste e Americana, os descendentes lembram do legado deixado pelos confederados nas áreas de saúde, como o Hospital Pérola Byington, e educação, criando a Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e a Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Padovese conta que também há orgulho e irmandade dos confederados que ainda vivem no sul dos Estados Unidos. Ele relata que os americanos já visitaram a festa no interior paulista e apoiam a iniciativa, mas reconhece que seus antepassados também cometeram erros.
"Nós temos uma cultura e sabemos que há uma certa controvérsia, mas qual não tem? Eu não posso apontar para todo mundo pelo erro do seu passado. Senão, cada cultura tem uma coisa pesada para ser apontada. Se for assim, ninguém vai ter orgulho da sua própria cultura", afirmou.