Narcomilícias no Rio: os fatores que acirram a disputa na zona oeste da cidade
Quase 30 ônibus foram queimados na região em represália de criminosos à morte de um miliciano; antes rivais, grupos do narcotráfico e milícias agora se aliam pelo controle de comunidades
A zona oeste do Rio de Janeiro vive nesta segunda-feira (23/10) mais um episódio dos violentos confrontos de grupos criminosos com a polícia ou entre si pelo domínio da região.
Quase 30 ônibus, em diferentes pontos da zona oeste, foram alvos de incêndios criminosos e levaram a capital fluminense ao "estágio de mobilização" — quando há riscos de ocorrências de alto impacto na cidade.
Os incêndios teriam sido provocados por criminosos em represália à morte de Matheus da Silva Rezende durante troca de tiros com agentes, também nesta segunda. Conhecido como Faustão ou Teteu, ele era sobrinho de Zinho, chefe de uma das principais milícias da região.
O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), afirmou em entrevista coletiva no início da noite de segunda que Matheus foi morto em uma operação da Polícia Civil — cujas unidades e agentes Castro parabenizou por "neutralizarem um dos maiores criminosos da atualidade do Rio de Janeiro".
Segundo o jornal O Globo, Faustão era considerado o segundo homem na hierarquia da milícia e seria o principal encarregado nas disputas entre bandos rivais na zona oeste.
Sem distinção entre milícia e tráfico
Para a polícia, já não há mais distinção entre milícia e tráfico, porque ambos imitam os "modelos de negócio" um do outro — o que pode ter sido um motor para a escalada de mortes e outros crimes violentos na área nos últimos meses.
O Comando Vermelho (CV), facção criminosa originalmente focada no tráfico de drogas, agora se alia a milicianos da zona oeste pelo controle de comunidades na região.
Ter o domínio da área significa poder explorar o comércio ilegal de drogas e de produtos e serviços, como a venda de gás de botijão, acesso à internet, transporte por van e outros — agora feito por milicianos e traficantes, indistintamente.
Neste mês, outros episódios relacionados à intensificação desses conflitos na zona oeste estão o triplo assassinato de médicos na orla da Barra da Tijuca, no começo do mês, e o desvio de armamentos de um arsenal do Exército em São Paulo, na semana passada.
Segundo a Polícia Civil, as armas furtadas dos militares provavelmente seriam usado na disputa pelo controle territorial de favelas da região que ocorre há mais de um ano e meio.
Na disputa em que o armamento do Exército seria usado está uma narcomilícia da Gardênia Azul agora aliada ao CV.
Foi no bairro que foram encontrados mortos quatro suspeitos da chacina de três médicos de São Paulo no dia 5 de outubro.
A execução teria sido ordenada pela cúpula do CV, de acordo com a polícia, porque a ação não atingiu o seu objetivo, a eliminação de um rival, e chamou a atenção para as atividades na região.
A Polícia Civil afirma que sua principal linha de investigação é a de que um engano causou o ataque com as mortes dos ortopedistas Diego Ralf Bonfim, irmão da deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP), Marcos de Andrade Corsato e Perseu Ribeiro de Almeida, além de ferimentos graves no também médico Daniel Proença.
Perseu teria sido confundido com Taillon Barbosa, um miliciano rival dos autores da chacina, e que foi recentemente solto da prisão.
Os quatro médicos bebiam em um quiosque na calçada oposta ao Hotel Windsor, onde estavam hospedados para um congresso de ortopedia.
Um salto nos crimes violentos na zona oeste
Esse conflito entre grupos criminosos gerou nos últimos meses uma escalada de mortes e outros casos violentos na área. Os efeitos já aparecem nas estatísticas de violência.
Um levantamento do Instituto Fogo Cruzado apontou que, de 1° de janeiro até 12h de 20 de outubro de 2023 (quando a contagem foi encerrada), ocorreram na zona oeste carioca:
- 241 mortos em homicídios (129,5% sobre os 105 do mesmo período de 2022)
- 13 chacinas com 47 mortos (291,6% a mais que os 12 em 4 massacres no ano anterior)
- 728 tiroteios (55,88% a mais que os 467 do ano passado)
Em comparação, a zona sul, a mais rica do município, registrou, no mesmo período:
- 6 mortos em homicídio (o dobro do ano anterior)
- nenhuma chacina, como foi em 2022
- 47 tiroteios (menos 4 casos, queda de 8,51% sobre os 51 de 2022)
"As disputas na região explodiram após a morte do Ecko (Wellington da Silva Braga), chefe da principal milícia, em junho de 2021", afirma o Instituto Fogo Cruzado em texto sobre o levantamento.
"O irmão dele, Zinho [Luiz Carlos da Silva Braga], e um ex-aliado, Tandera [Danilo Dias Lima], passaram a disputar bairros. Com a milícia fragilizada, o Comando Vermelho passou a tentar tomar as áreas. A disputa em Jacarepaguá [zona oeste do Rio] é uma das mais críticas."
Segundo Carlos Nhanga, coordenador regional do Fogo Cruzado, a disputa entre esses grupos na zona oeste do Rio não começou agora, mas se intensificou pela entrada de novos atores na disputa pelos territórios.
"Antes, era dominado por uma milícia", afirma ele.
"Hoje, tem facções do tráfico entrando. A morte do Ecko gerou um novo cenário. Não existe vácuo de poder. Determinadas ações [como a morte do antigo chefe da milícia] têm consequências, pelos dados históricos do Rio de Janeiro."
O pesquisador Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), diz que as mortes violentas na região de Jacarepaguá e Barra da Tijuca afetaram os indicadores gerais de violência do Sudeste e do país.
Segundo o Monitor da Violência do G1, os homicídios caíram 3,4% no Brasil no primeiro semestre de 2023, em comparação com o mesmo período do ano passado.
A queda se deu em quase todas as regiões. E o exceção foi o Sudeste, onde os assassinatos cresceram. Na região, o maior aumento ocorreu justamente no Rio de Janeiro: 17,3%.
"Os dados de 2022 e 2023 mostram que tivemos uma reversão da tendência nacional no Sudeste, que foi afetada pelo Rio", diz ele.
"E quando olhamos, vemos que o aumento se deu mais na zona oeste da capital e em alguns municípios da Baixada Fluminense."
Liga da Justiça
A maior milícia do Rio, então chamada de Liga da Justiça começou a atuar há pelo menos 15 anos dizendo que tinha o objetivo de combater o avanço do tráfico de drogas.
A organização criminosa foi criada por policiais que expulsaram traficantes e dominaram bairros da região. Policiais civis e militares, bombeiros, guardas municipais e integrantes da Forças Armadas, além, de criminosos comuns, integravam o bando. Em alguns casos, tiveram apoio de moradores.
A quadrilha cobrava, por meio de intimidação e violência, taxas ilegais de moradores e comerciantes, a pretexto de combater o crime.
Os milicianos também impunham a venda de produtos, como gás em botijão e água mineral, e serviços, como acesso clandestino à internet, TV a cabo pirata e transporte por vans.
Com o tempo, transformaram o domínio em poder político e conquistaram mandatos parlamentares. O modelo foi replicado em outros bairros por outros criminosos.
Os chefes do grupo criminoso original, segundo a Polícia Civil, eram Natalino Guimarães, que se elegeu deputado estadual, e seu irmão, Jerônimo Guimarães, o Jerominho, que foi vereador na capital fluminense.
Com base eleitoral no bairro de Campo Grande, ambos sempre negavam ter ligações com o crime ou qualquer atividade ilegal.
Natalino foi preso ainda no mandato, ao qual renunciou. Depois de cumprir dez anos de cadeia por vários crimes, entre eles o de formação de quadrilha, os dois desistiram das carreiras parlamentares, embora tentassem influir na política.
Cumpriram suas penas e foram soltos. Jerominho foi morto a tiros em agosto de 2022, em um ataque a tiros na rua durante o dia.
Na época em que os irmãos Guimarães estavam na cadeia, a chefia da Liga da Justiça foi assumida por Carlos Alexandre da Silva Braga, o Carlinhos Três Pontes.
Policiais atribuem a ele a entrada da milícia da zona oeste do tráfico de drogas.
Três Pontes foi morto pela polícia em abril de 2017. Seu irmão, Ecko, assumiu o comando da Liga. Ele expandiu os negócios e se tornou o criminoso mais procurado do Rio de Janeiro. O nome do grupo foi mudado para Bonde do Ecko.
Ecko foi morto durante uma operação policial em 2021. A quadrilha, então, passou a ser comandada por um irmão de Ecko e Três Pontes: Luiz Carlos da Silva Braga, o Zinho.
Mas o bando rachou. A dissidência é chefiada por Danilo Dias Lima, o Tandera, que era aliado de Ecko.
Os dois grupos começaram a guerra pela zona oeste, há mais de um ano, com assassinatos, tiroteios e destruição de vans controladas pelos rivais.
Com a entrada de traficantes de outros bairros, o confronto se agravou. A facção Comando Vermelho investiu no conflito. São dela os criminosos que se aliaram aos narcomilicianos da Gardênia Azul, origem dos algozes dos médicos.
Fronteira urbana
Antiga zona rural do Rio de Janeiro, a zona oeste concentra a maior parte da população da cidade.
É uma área de urbanização relativamente recente, acelerada a partir dos anos 1980 — uma fronteira urbana.
Algumas características da região ajudaram no desenvolvimento dos grupos criminosos. O modelo de negócios dessas quadrilhas, a partir do domínio territorial armado, focava loteamentos, compra e venda de imóveis e oferecimento de serviços de infraestrutura.
"Tudo estava por ser feito na zona oeste", explica Hirata. "As milícias intermediavam."
Outro fator que impulsionou esses grupos criminosos foi que boa parte dos investimentos feitos para os grandes eventos nos anos 2010 — Copa do Mundo, Olimpíada, Jornada Mundial da Juventude — se deu na zona oeste, observa o pesquisador.
Isso levou à valorização acelerada dos imóveis situados naquela região, o que favoreceu os milicianos.
No mesmo período, a política de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), de atuação comunitária para desarticular quadrilhas, não focou na área.
Quase todas foram instaladas em áreas de tráfico — apenas uma, no Jardim Batam, foi montada na zona oeste.
"A zona oeste se tornou mais homogeneamente miliciana", diz Hirata. "Agora tem a disputa ali. Depois da morte do Ecko, houve uma disputa pela sucessão, ainda em curso, pelo Zinho, Tandera e outros. Isso ajuda a entender o caso dos médicos."
Sem diferença
A Polícia Civil do Rio afirma que tem feito um trabalho intenso de combate aos milicianos da zona oeste, o que teria desestabilizado os grupos criminosos daquela região.
Enfraquecidas, menores e mais capilarizadas, as milícias, segundo a corporação, teriam procurado alianças com traficantes.
As ações dos criminosos na região, de acordo com a Secretaria de Polícia Civil, são monitoradas de várias formas.
Agentes da Subsecretaria de Inteligência, da Delegacia Repressão a Entorpecentes (DRE) , da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco) e também de delegacias locais acompanham as ações dos suspeitos.
Segundo a Polícia, isso resultou na "neutralização" e prisão de criminosos, além de ações contra fontes de recursos dos criminosos. O prejuízo teria chegado a R$ 2,5 bilhões em dois anos.
Por nota, a Secretaria de Polícia Militar informa que a corporação "vem empreendendo esforços no combate à criminalidade", segundo o texto "com ações de inteligência, pautadas por critérios técnicos e pelo previsto na legislação vigente, tendo como preocupação central a preservação de vidas".
"Os dados relativos à letalidade nos últimos meses estão diretamente ligados às disputas territoriais entre grupos criminosos rivais, principalmente na zona oeste da cidade do Rio", diz a PM na nota.
"Nesse contexto, a corporação destaca as incessantes ações conjuntas com a Secretaria de Estado de Polícia Civil para estabilizar as localidades, assim como para localizar e retirar de circulação os marginais envolvidos em tais mobilizações."
Segundo a nota, desde o início de 2023 "a Polícia Militar prendeu quase 25 mil pessoas, apreendeu quase 3.200 adolescentes, mais de 4.600 armas de fogo e 389 fuzis foram retirados das ruas".