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No Brasil, mulheres podem morrer por viajarem sós

Morte da artista Julieta Hernandez prova que essa estatística, infelizmente, faz sentido

9 jan 2024 - 09h26
(atualizado às 10h02)
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Julieta foi homenageada por um grupo circense em uma publicação no Instagram
Julieta foi homenageada por um grupo circense em uma publicação no Instagram
Foto: Reprodução/Instagram

País está entre os três mais perigosos do mundo para uma mulher viajante solo, atrás de Irã e Egito, segundo rankings. Morte da artista Julieta Hernandez prova que essa estatística, infelizmente, faz sentido. Há um tempo (e nem falo de tanto, mas dos anos 60), as mulheres brasileiras casadas precisavam da permissão do marido para coisas simples, como, por exemplo, viajar para o exterior. Sim, isso constava do Código Civil de 1916, e ficou em vigor até 1962. Até hoje, em alguns países do mundo, mulheres continuam com a mesma proibição. Absurdo.

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Mas, na maioria dos lugares, mulheres parecem ter resolvido tirar o atraso e, as que podem, resolveram experimentar a sensação de liberdade de viajar para onde bem quiserem e, muitas vezes, sozinhas.

Pesquisas mostram que quem gosta mais de viajar, se meter em aventuras e colocar o pé na estrada, atualmente, são as mulheres. Segundo uma análise feita pela agência Over Seas Adventure Travels, o número de mulheres viajantes solo do sexo feminino chegaria a 85% do total. Não duvido. Você também deve ter uma amiga que adora viajar sozinha e assim se aventurar mundo afora.

O lado ruim desse positivo boom é que as mulheres continuam sendo vítimas de violência em viagens. E a correr risco de vida.

Neste mês, tivemos um terrível exemplo disso. A venezuelana Julieta Hernández, de 38 anos, foi morta no meio de sua aventura. Ela fazia parte do grupo de artistas e cicloviajantes Pé Vermêi e viajava pelo Brasil de bicicleta espalhando sua arte (fotos abaixo). No fim de dezembro, a artista passou pelo interior da Amazônia, a caminho de seu país de origem.

O fim pavoroso de sua aventura é uma história de terror que gera tristeza e indignação: Julieta desapareceu no dia 23 de dezembro, enquanto percorria o interior do estado. E, finalmente, no sábado (06/01), soubemos que sua viagem teve o pior desfecho possível. A polícia confirmou que havia encontrado o corpo de Julieta e que ela havia sido estuprada, assassinada e depois teve seu corpo queimado. Uma história bárbara, daquelas que causam enjôo.

Segundo a Secretaria de Segurança de Manaus, tudo aconteceu em uma hospedaria simples, onde ela dormia em uma rede. Os suspeitos, um homem e uma mulher, foram presos.

Perigo é maior para as mulheres

Essa história, além de causar revolta, acende um alerta: viajar sozinha pelo país é uma boa ideia? Devemos falar para aquela amiga gringa que ela desista de fazer aquela viagem dos sonhos pelas praias brasileiras? E nós, podemos nos aventurar sozinhas?

Infelizmente, as respostas não são boas. No mínimo, é preciso tomar muito cuidado e evitar certas regiões e locais. De acordo com o ranking Women Danger Index, criado por duas jornalistas americanas em 2019, o Brasil é o segundo lugar do mundo mais perigoso para mulheres viajarem sozinhas. O país só perde para a África do Sul. E está na frente de países com péssima fama no que diz respeito ao direito e segurança das mulheres, como Irã, Egito e Marrocos. Para organizar o ranking, as autoras compararam estatísticas de feminicídio, assédio, segurança e serviços.

Outro estudo, feito pela plataforma Money Transfer em 2023, colocou o Brasil como o terceiro destino mais perigoso para mulheres que viajam sozinhas, atrás apenas da África do Sul e do Peru.

É chocante ver o Brasil listado como um país mais perigoso do que aqueles onde mulheres não têm quase nenhum direito, como o Irã e a Arábia Saudita, mas, se a gente pensar um pouco, vê que esses números fazem sentido.

No Brasil, em 2022, dez mulheres foram vítimas de feminicídio por dia. Quando falamos de agressões mais cotidianas, a situação fica até mais complicada. Como já escrevi antes aqui, mesmo nós, mulheres brasileiras, não nos sentimos seguras andando pelas ruas do Brasil de noite.

Agora, imagina como pode ser perigoso para uma gringa viajar sem saber nenhuma das técnicas usadas pelas mulheres brasileiras para escapar de assédios? Elas não saberiam, por exemplo, que sentar ao lado de homens em viagens longas de ônibus interestaduais noturnos, só para dar um exemplo clássico, não é uma boa ideia, ou que pegar um ônibus urbano de shortinho de noite pode ser perigoso.

Exagero? Não, vamos lembrar que o Brasil é um país onde em grandes cidades, como o Rio de Janeiro, por exemplo, ainda existem Vagões Rosa em trens, espaços só para mulheres, já que não é seguro para elas andar nos vagões com outros homens, como se eles não fossem capazes de "se controlar".

Parece coisa de antigamente, não? Sim, mas é bem atual. E combina perfeitamente com um país onde uma mulher é assassinada, estuprada e queimada por viajar sozinha. Sim, a Amazônia é um lugar perigoso para todo viajante, assim como o Brasil. Mas, para mulheres, é ainda pior. A morte de Julieta é mais uma triste confirmação disso: mulheres até já podem tirar passaporte sem autorização do marido. Mas o Brasil continua sendo um país muito difícil para as mulheres.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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